Pensemos a França para além do semiparlamentarismo e das Olimpíadas

Spread the love

Nos últimos dias, a França tem sido muito mencionada, seja por razões políticas, no que concerne às eleições legislativas com a vitória da coalizão de esquerda, seja por motivos esportivos, em virtude da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, ocorrida na última sexta-feira (26). O enfoque deste ensaio, porém, é na relação do país com a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e o seu grau de vinculação ao Sistema Europeu de Direitos Humanos (SIDH).

O tema é de interesse ao nosso sistema de pertencimento, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), no qual a Advocacia Pública, notadamente a Advocacia-Geral da União (AGU), tem relevância de atuação nos casos submetidos à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

Destaco, sobretudo, seu papel no cumprimento de resoluções, recomendações e decisões, forte no quanto dispõe o art. 53 do Decreto 11.328/2023, sem prejuízo das funções exercidas em prol do controle de convencionalidade e da observância do corpus juris interamericano nas Consultorias Jurídicas dos Ministérios com competências afetas às matérias envolvidas nas demandas interamericanas.

Quanto à França, onde se localiza o Conselho da Europa e a Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH), em Estrasburgo – a chamada Capitale de l’Europe –, vale inicialmente mencionar que o preâmbulo da Constituição de 1958[1], ora vigente, afirma a ligação do povo francês aos direitos definidos pela Declaração de 1789, confirmados e completados pelo preâmbulo da Constituição de 1946.

O país figurou como protagonista político entre os signatários originários da CEDH, assinada por Robert Schuman, mas efetivou a ratificação apenas em 3 de maio de 1974, para as controvérsias interestatais, com aceitação do peticionamento dos indivíduos perante a então Comissão Europeia dos Direitos Humanos somente em 1981[2].

A ratificação foi feita com reservas, inclusive em relação ao já citado art. 15º[3] da CEDH, referente a situações de crise, como a decorrente da pandemia da Covid-19. Laurence Burguorgue-Larsen enquadra a relação da França com a CEDH como mouvementée hier, banalisée aujourd’hui, dada a contradição referente à constatação de relutância verificada inicialmente, exatamente no país da Declaração de Direitos mais célebre e celebrada, e, em tempos atuais, em razão da heterogeneidade de interesses em relação à evolução do SEDH[4].

A CEDH posiciona-se, na estrutura das fontes internas francesas, em um nível intermediário entre as leis ordinárias e a Constituição, nos termos do art. 55 da Constituição francesa[5]. Com hierarquia supralegal a partir da publicação, os tratados podem ser diretamente aplicados em solo francês, inclusive pelo Judiciário, logo após publicados, em incidência de uma perspectiva monista[6]. Especificamente quanto à CEDH, há influência direta e indireta do seu teor na interpretação jurídica dos direitos fundamentais na França, com base na prevalência sobre a legislação do país.

Ao longo do tempo, mesmo com a regra estabelecida de forma direta e simples no texto constitucional, tanto o Conseil d’État (Corte Suprema administrativa) quanto a Cour de Cassation (Corte Suprema civil e criminal) demonstraram-se relutantes a realizar o controle da validade entre tratados e demais leis, por entenderem que tal tarefa situa-se no plano competencial do Conseil constitutionnel, apto a efetivar o exame sob a perspectiva constitucional e internacional[7].

O Conselho Constitucional, por sua vez, entendeu, já em 1975, por meio da Décision IVG, que o controle de convencionalidade, por não envolver a apreciação de uma contrariedade à Constituição, caberia à jurisdição ordinária[8]. Sua função de verificar a compatibilidade das normas francesas com a CEDH só foi admitida e levada a sério após a decisão da Corte EDH prolatada em 1999 no caso Zieliski, Pradal Gonzales et al vs. France[9], na qual foi declarada a inconvencionalidade de uma decisão do Conseil Constitutionnel que julgou constitucional uma lei sobre saúde e proteção social.

Burgorgue-Larsen pontua que houve uma mudança de postura do Conselho após a decisão regional. Começou, então, um alinhamento dos entendimentos, levando, inclusive, a um diálogo[10]. A virada metodológica quanto à aplicação da CEDH pelo Conselho Constitucional ocorreu em 2004, quando da apreciação da então denominada Constituição Europeia, proposta no âmbito da União Europeia.

Na França, os preparativos para a ratificação do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa começaram no mesmo dia de sua assinatura, 29 de outubro de 2004, quando o então presidente Jacques Chirac, nos termos do art. 54 da Constituição francesa, provocou o Conselho Constitucional, a fim de obter um pronunciamento acerca da necessidade de se proceder a uma revisão da Constituição do país, de forma a adequá-la à novel normativa que se discutia.

O Conselho decidiu, em 19 de novembro de 2004, que a ratificação do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa seria feita após a devida revisão da Constituição de 1958[11]. Realizado no dia 29 de maio de 2005[12], o referendo teve como resultado 77% dos votos contra a ratificação, ao passo que 45,33% foram a favor. No que atine ao controle de convencionalidade, a Decisão 2004-505-DC vale-se, em seus consideranda, não só da CEDH, mas também da jurisprudência da Corte EDH[13].

Houve uma alteração da postura de resistência, embora, como pondera Burgorgue-Larsen, com a citação inapropriada de um julgamento da Corte EDH que não era definitivo e não mais existe[14]. A autora afirma que o Conselho Constitucional ainda se vale, por vezes, de uma aplicação furtiva da CEDH, sem expressamente a inserir no bloco de constitucionalidade e na ratio decidendi. Geralmente, o Conseil faz uma leitura moderna do bloco de constitucionalidade em conformidade com a CEDH, mas sem expressamente lhe fazer referência, em uma forma de nacionalização da interpretação regional[15].

De todo modo, o contrôle de conventionnalité da legislação francesa perante a CEDH já era uma realidade muito praticada pelas jurisdições ordinária e administrativa, embora não plenamente pelo Conselho Constitucional. No exercício do controle, a norma francesa pode: (i) ser plenamente aplicada de forma isolada, se compatível com a CEDH; (ii) deixar de ser aplicada diante de um choque entre as normas; e (iii) ser aplicada de forma combinada com a convencional, a fim de lhe conferir um resultado jurídico compatível com a CEDH[16].

Trata-se de excelente parâmetro a ser conhecido e analisado também aqui no Brasil, onde se ensaia e ainda se prega e estimula a prática corriqueira do controle de convencionalidade.

Ressalto, por fim, que a jurisprudência francesa foi responsável por cunhar a interpretação da CEDH como um instrumento vivo, mesmo antes de Estrasburgo, por vezes ampliando a sua aplicação a novas situações não previstas inicialmente no documento. Vê-se, pois, como a postura nacional pode influenciar o delineamento dos termos e decisões regionais.

Em época de jogos e disputas, sigo esperançando que as relações entre ordenamentos nacionais e sistemas regionais não reflitam o desporto artístico das batalhas de esgrimas no Grand Palais, mas, sim, da modalidade de vela na Marina Olympique de Marseille, com todos seguindo o mesmo percurso, na mesma direção, dotados das respectivas técnicas, estratégias e experiências, a fim de aproveitar a força dos ventos dos direitos humanos para assentamento e reforço do respectivo sistema de proteção.

De todo modo, seja na América, seja na Europa, os contextos sociopolítico e jurídico presentes em cada país – no que concerne, sobretudo, aos formantes legal e jurisprudencial[17] a serem acompanhados pela Advocacia Pública no exercício do seu mister constitucional – são fatores determinantes da perspectiva futura a ser impressa ao arcabouço formalmente já erigido em prol da tutela de direitos. Aproveitemos a força dos ventos.

[1] Sobre o status constituticional dos direitos humanos mencionados no preâmbulo e dos princípios declarados na Constituição, vide, respectivamente, FRANCE. Conseil Constitutionnel. Décision n° 70-39 DC du 19 juin 1970. Traité signé à Luxembourg le 22 avril 1970 portant modification de certaines dispositions budgétaires des traités instituant les communautés européennes et du traité instituant un conseil unique et une commission unique des Communautés européennes et décision du Conseil des Communautés européennes en date du 21 avril 1970, relative au remplacement des contributions des Etats membres par des ressources propres aux Communautés. Journal officiel du 21 juin 1970, page 5806, Recueil, p. 15, ECLI: FR: CC: 1970: 70.39.DC e FRANCE. Conseil Constitutionnel. Décision n° 71-44 DC du 16 juillet 1971. Loi complétant les dispositions des articles 5 et 7 de la loi du 1er juillet 1901 relative au contrat d’association. Journal officiel du 18 juillet 1971, page 7114, Recueil, p. 29, ECLI: FR: CC: 1971: 71.44.DC.

[2] Um histórico dos momentos políticos que antecederam a ratificação é feito por DECAUX, Emmanuel. La France et la Convention Européene des Droits de l’Homme: un peu, beaucoup, passionnément…Revue québécoise de droit international, Special Issue, p. 258-259, December 2020.

[3] DECAUX, Emmanuel. La France et la Convention Européene des Droits de l’Homme: un peu, beaucoup, passionnément…Revue québécoise de droit international, Special Issue, p. 266, December 2020.

[4] BURGORGUE-LARSEN, Laurence. La France et la protection européenne des droits de l’homme. Annuaire français de relations internationales, vol. VI, Paris: La Documentation française, p. 598-606, 2005.

[5]FRANÇA. Constituição. Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/sites/default/files/as/root/bank_mm/portugais/constitution_portugais.pdf. Acesso em: 24 jul. 2024.

[6] Cf. BJORGE, Eirik. National Supreme Courts and the Development of ECHR Rights. International Journal of Constitutional Law, vol. 9, n. 1, p. 20, 2011.

[7] DRZEMCZEWSKI, Andrew. European Human Rights Convention in Domestic Law: a comparative study. New York: Claredon Press/Oxford University Press, 1983, p. 72-74.

[8] Nos termos do considerando n. 5 da decisão, in verbis: “Considérant qu’une loi contraire à un traité ne serait pas, pour autant, contraire à la Constitution”.Vide FRANCE. Conseil Constitutionnel. Décision n° 74-54 DC du 15 janvier 1975. Loi relative à l’interruption volontaire de la grossesse. Journal officiel du 16 janvier 1975, page 671, Recueil, p. 19, ECLI: FR: CC: 1975: 74.54.DC.

[9] COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Affaire Zielinski et Pradal et Gonzalez et autres c. France (Requêtes jointes nºs 24846/94 et 34165/96 à 34173/96). Arrêt de 28 octobre 1999.

[10] BURGORGUE-LARSEN, Laurence. La France et la protection européenne des droits de l’homme. Annuaire français de relations internationales, vol. VI, Paris: La Documentation française, p. 609, 2005.

[11] Consoante consta da Decisão n.° 2004-505-DC: “Article premier: L’autorisation de ratifier le traité établissant une Constitution pour l’Europe ne peut intervenir qu’aprés révision de la Constitution”. Cf. FRANCE. Conseil Constitutionnel. Décision n° 2004-505 DC du 19 novembre 2004. Traité établissant une Constitution pour l’Europe. Journal officiel du 24 novembre 2004, page 19885, texte n° 89, Recueil, p. 173, ECLI: FR: CC: 2004: 2004.505.DC.

Assim, para efetivar o comando decisório, em 1° de março de 2005, a revisão foi efetuada pela Lei Constitucional n.° 2005-204, que trouxe significativas modificações para o Título XV da Constituição, tendo em vista os pontos identificados pelo Conselho como contraditórios entre a Constituição e o Tratado. Cf. FRANCE. Loi constitutionnelle n° 2005-204 du 1er mars 2005 modifiant le titre XV de la Constitution. JORF n°51 du 2 mars 2005.

[12] Salvo em Saint-Pierre-et-Miquelon, em Guadalupe, na Martinica, na Guiana Francesa, na Polinésia Francesa e nos centros de votos dos cidadãos franceses situados no continente americano, quando o escrutínio seria realizado no sábado precedente, é dizer, dia 28 de maio.

[13] FRANCE. Conseil Constitutionnel. Décision n° 2004-505 DC du 19 novembre 2004. Traité établissant une Constitution pour l’Europe. Journal officiel du 24 novembre 2004, page 19885, texte n° 89, Recueil, p. 173, ECLI: FR: CC: 2004: 2004.505.DC.

[14] BURGORGUE-LARSEN, Laurence. La France et la protection européenne des droits de l’homme. Annuaire français de relations internationales, vol. VI, Paris: La Documentation française, p. 611, 2005.

[15] BURGORGUE-LARSEN, Laurence. L’“autonomie constitutionnelleaux prises avec la Convention Européenne des Droits de l’Homme. Hal science ouverte, Hal-01743264, 2018. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01743264. Acesso em: 24 jul. 2024.

[16] BJORGE, Eirik. National Supreme Courts and the Development of ECHR Rights. International Journal of Constitutional Law, vol. 9, n.º 1, p. 22, 2011.

[17] Cf. SACCO, Rodolfo. Legal Formants: A Dynamic Approach to Comparative Law. The American Journal of Comparative Law, vol. 39, p. 1-34,1995.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *