No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Trabalho doméstico: a nova velha fronteira no combate ao trabalho escravo

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Sempre que me deparo com casos de trabalhadoras domésticas em condições análogas à escravidão, em especial após a apresentação da defesa dos empregadores, me vem à mente o seguinte trecho de uma das canções de Cazuza: “Eu vejo o futuro repetir o passado”[1]. Mas, ao contrário do desfecho da canção, no caso do trabalho doméstico em condições análogas à escravidão podemos dizer que o tempo parou sim, ao menos para aqueles que estão se beneficiando da força de trabalho dessas pessoas.

Cada caso, geração após geração, é uma repetição desse ciclo, que remonta à colonização, da casa grande se apropriar não apenas do labor, mas da vida e da autonomia dessas pessoas, vítimas de uma sociedade cujo presente ainda permanece preso ao passado escravista.

Uma rápida anáglise dos principais casos de resgate dessas trabalhadoras evidencia, sem muito esforço, que a consciência comum do cidadão brasileiro ainda considera que a empregada doméstica não é bem uma empregada, mas alguém que altruisticamente se despojou de uma vida própria para servir ao bem-estar da família empregadora. Assim, em troca de seu trabalho, normalmente em jornadas exaustivas, a trabalhadora deve se contentar com a conquista de ser considerada como uma “pessoa quase da família”.

A situação piora quando essa concepção transcende os limites daqueles que submetem essas pessoas a essa forma de trabalho e alcança os órgãos do sistema de justiça, impregnando decisões que acabam legitimando a prática e a tese propagada por eles.

É neste contexto que se insere decisão da Justiça do Trabalho da Bahia negou o reconhecimento da condição de trabalhadora a uma mulher que chegou na residência dos empregadores aos sete anos, trabalhava por cerca de 15 horas por dia fazendo os serviços domésticos da residência. Além disso, também foi responsável por cuidar de duas gerações daquela família, os filhos e os netos dos empregadores. A decisão, a despeito dessas circunstâncias, considerou a trabalhadora como pessoa da família.[2]

No caso de dona Maria de Moura, mulher de 87 anos aliciada aos 12 com a falsa promessa do estudo na capital, que trabalhou desde os 12 anos sem nenhuma remuneração e com cerceamento de liberdade, a tese de defesa se repete: ela fazia parte da família. No caso da Dona Sônia, mulher negra, pessoa com deficiência, que começou trabalhar aos 13, os empregadores argumentam que sempre a trataram como membro da família e para atestar sem sombra de dúvida a possibilidade de exploração, desde que garantida a honraria de ser tratada como pessoa da família, anunciaram que iriam ingressar com uma ação de filiação afetiva. O curioso é que nesses e, possivelmente, em todos os casos, o interesse no reconhecimento da vítima como pessoa da família só desperta após as fiscalizações. [3][4]

Nesse último caso, decisão do Supremo Tribunal Federal permitiu o retorno da vítima ao local de exploração desde que ela, pessoa cuja infância, autonomia e autodeterminação foram negadas pelo trabalho infantil e trabalho escravo, manifestasse vontade clara e inequívoca de retornar. O curioso é que Sônia, pessoa com deficiência auditiva, que nunca foi ensinada a se comunicar através da Língua Brasileira de Sinais – Libras, não manifestou, ao menos no entender dos órgãos de fiscalização, essa inequívoca vontade. Mais curioso ainda é como justificar que alguém que integra a família foi privada de aprender a forma mais adequada de comunicação para pessoas com deficiência auditiva. [5][6]

Esses casos demonstram algo mais grave que apelos de defesa desesperados para justificar a subjugação de um ser humano por outro ou decisões, para dizer o mínimo, em descompasso com a garantia de direitos humanos. Elas estampam, na verdade, que a sociedade brasileira ainda permanece com profundas raízes escravistas.

Se o problema transcende os instrumentos jurídicos voltados ao enfrentamento dessa questão, é preciso que a estratégia para resolução ultrapasse essa fronteira, para tocar em uma ferida mais profunda.

Por isso, para erradicar o trabalho escravo no âmbito doméstico precisamos de um diálogo social mais amplo, que promova a fiscalização e denúncias pela própria sociedade, especialmente por aqueles mais próximos dos fatos. Um diálogo que, além de abrir os olhos da população para o problema, funcione principalmente como elemento de constrangimento para os empregadores, para os agentes do sistema de justiça e para membros do poder executivo e legislativo. Que deixe evidente que o problema existe e que as respostas social e institucional devem ser efetivas e adequadas, sem espaço para ações e decisões que tentem proteger, de qualquer forma e por qualquer argumento de ordem social, como a eventual relação afetiva entres partes, os responsáveis pela violação aos direitos humanos. Além disso, as ações e decisões devem estar atentas a reparação integral dos danos e a necessidade de efetivos mecanismos de assistência social no pós-resgate, a fim de evitar a revitimização.

Se avançarmos com medidas honestas e efetivas para combater o trabalho escravo, inclusive o doméstico, talvez possamos dizer, enfim, que o tempo não para, que o tempo não parou, e que o passado escravista da sociedade brasileira ficou onde ele pertence, no passado.

[1] Agenor De Miranda Araujo Neto, Arnaldo Pires Brandão. O Tempo não para. Álbum O tempo não para. Warner Chappell Music, Inc. 1988. Disponível em: https://lyrics.lyricfind.com/lyrics/cazuza-o-tempo-nao-para. Acesso em: 18/03/2024.

[2] https://reporterbrasil.org.br/2023/07/trabalho-escravo-familia-e-absolvida-em-caso-de-domestica-sem-salario-desde-os-7/

[3] https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/03/10/mae-e-filho-viram-reus-acusados-de-submeter-idosa-a-trabalho-analogo-a-escravidao-durante-72-anos.ghtml

[4] https://reporterbrasil.org.br/2023/06/escravizada-que-desembargador-chama-de-filha-esta-em-lista-de-funcionarias/

[5] https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/10/27/brasil-e-questionado-na-oea-sobre-domestica-resgatada-de-casa-de-juiz-em-sc.htm

[6] https://www.intercept.com.br/2023/12/11/desembargador-denunciado-por-trabalho-escravo-usou-manipulacao-psicologica-para-vitima-voltar-a-sua-casa-revelam-laudos/

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