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Constantemente, nós, advogados, representando o setor regulado, criticamos a Anvisa por não pautar a sua atuação pelo que entendemos ser o melhor direito para a situação concreta. Isso não impede, contudo, que seja reconhecido o trabalho hercúleo dos servidores da agência, que tem gerado resultados positivos nos últimos anos: desde 2016, a Anvisa é membro regulatório do International Council for Harmonisation of Technical Requirements for Pharmaceuticals for Human Use (ICH)[1]; durante o ano de 2024, vem trabalhando diretamente junto à OMS para ser reconhecida como Autoridade Sanitária de Referência Internacional[2].
Esses resultados são ainda mais impressionantes quando lembramos que foram alcançados mesmo diante da redução da força de trabalho da Anvisa nos últimos anos e do crescimento exponencial das suas demandas. Para dar um exemplo específico, entre os anos de 2017 e 2023, houve uma redução de aproximadamente 30% no quadro de servidores da GGMED, enquanto o número de pedidos de registro de medicamentos submetidos para análise praticamente dobrou[3].
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Esse cenário de perda de força de trabalho da Anvisa não é recente. Em 2012, os servidores passaram mais de um mês em greve para exigir a elaboração de um plano de carreira, além da equiparação salarial entre os antigos e os novos[4]. Quase dez anos depois, em 2020, durante a pandemia de Covid-19, a situação não havia melhorado: o quadro de servidores da agência chegou ao seu número mais baixo desde 2007[5]: 1.297.
Para se ter uma ideia, desde 2006, época em que a agência contou com o maior número de servidores desde a sua criação (i.e., 2.673)[6], a Anvisa já perdeu mais de 1.000 servidores. Atua atualmente com apenas 1.600, aproximadamente. A situação atual da Anvisa é incompatível com a sua relevância econômica. A agência regula mais de 241 atividades econômicas do país, as quais representam 23% do PIB[7].
Muitos têm sido os esforços para chamar a atenção para a situação da Anvisa[8]. Primeiro, da própria Diretoria Colegiada, que, em junho deste ano, enviou um ofício à ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos reforçando a necessidade de fortalecer a regulação sanitária, por meio da implementação de melhorias nas carreiras e remuneração do corpo de servidores[9].
Ainda, em maio deste ano, o Sinagências, sindicato dos servidores das 11 agências reguladoras federais, iniciou a Operação Valoriza Regulação[10], tendo, inclusive, promovido uma paralisação nacional em 4 de julho[11], e previsto nova mobilização para esta quarta-feira (31)[12].
Também o setor regulado levantou essa questão, em ofício enviado pelo Sindusfarma – maior entidade representativa da indústria farmacêutica no Brasil – ao governo federal, solicitando urgente cuidado com a situação da Anvisa[13].
Em resposta às dificuldades enfrentadas, a Anvisa não está inerte. A agência vem adotando uma postura bastante proativa, inclusive buscando adotar estratégias para a otimização do trabalho, como é o caso da aplicação dos mecanismos de reliance[14] e do procedimento de análise das petições de registro e pós-registro com base em uma classificação de grau de risco[15], ambos aprovados recentemente pela Diretoria Colegiada.
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Mas há um limite de quanto mais eficiente a Anvisa pode se tornar e, mesmo que alcance o máximo que razoavelmente se pode esperar, ainda haverá a necessidade de mais servidores. E certamente não será a adição dos 50 indivíduos aprovados no concurso mais recente que resolverá o problema.
Para ajudar a ilustrar o quão defasada está a Anvisa em termos de servidores e estrutura, faz-se uma comparação com a FDA (Food and Drug Administration), agência que regula o maior mercado farmacêutico do mundo, estimado em cerca de US$ 602 bilhões[16] só em 2023. No mesmo período, o mercado brasileiro atingiu “apenas” cerca de US$ 32 bilhões[17], o que representa, aproximadamente, um valor 25 vezes menor em termos de receita.
Os números mostram que, nessa comparação, é preciso considerar as diferentes realidades de cada país. Afinal, um maior mercado demanda mais trabalho da entidade que o regula. E ainda há diferenças que não se limitam a tamanho de mercado. A Anvisa regula assuntos que a FDA não regula, como é o caso dos produtos de cannabis e a fiscalização dos portos, fronteiras e aeroportos.
Da mesma forma, a FDA regula produtos veterinários, categoria que está fora do escopo da Anvisa. Não obstante, a comparação mostra que nenhum destes contrastes justifica a desigualdade existente entre as agências em termos de recursos humanos e orçamentos, especialmente porque a população dos EUA não é 25 vezes maior do que a brasileira.
Começando pelo dinheiro. Em 2024, o Congresso americano repassou à FDA o valor de US$ 6,72 bilhões[18]. Já a Anvisa, para o mesmo ano, recebeu apenas R$ 913,16 milhões[19] (cerca de US$ 164 milhões), segundo dados do Portal da Transparência.
Essa realidade não é um ponto fora da curva. Em média, entre 2021 e 2024, a FDA dispôs de US$ 6,8 bilhões para exercer as suas funções, enquanto a Anvisa recebeu apenas R$ 870 milhões (cerca de US$ 159 milhões). Ou seja, em média, 43 vezes menos.
Em termos de recursos humanos, a FDA possui 18 mil servidores atuantes, frente aos 1.600 servidores da Anvisa, 11 vezes menor. Analisando tais números mais de perto, a discrepância fica ainda mais evidente. Por exemplo, a Gerência-Geral de Registro e Fiscalização de Produtos Fumígenos, derivados ou não do Tabaco (GGTAB), da Anvisa, conta com apenas 11 servidores[20], enquanto o Center for Tobacco Products, da FDA, possui 100 vezes mais servidores: 1.100[21].
Já a Gerência-Geral de Medicamentos (GGMED) tem cerca de 105 servidores[22], enquanto o Center for Drug Evaluation and Research, cerca de 5.000, 47 vezes mais[23]. Na Gerência-Geral de Alimentos da Anvisa, trabalham 37 servidores[24], enquanto no Center for Food Safety and Applied Nutrition, há, pelo menos, 21 vezes mais, com cerca de 800 servidores[25]. Os números exatos podem mudar um pouco lá e cá, mas servem para dar uma noção da defasagem que passa a Anvisa em termos de pessoal.
Essa maior quantidade de recursos financeiros e humanos de que dispõe a FDA contribui também para uma organização interna mais proveitosa. Cada área da FDA – ou center, responsável por regular cada uma das categorias de produtos – dispõe de pessoas incumbidas de exercerem funções de apoio internas, políticas e regulatórias relacionadas àquela categoria em específico, como o gabinete de Compliance e Enforcement do Center for Tobacco Products e o Office of Regulatory Police do Center for Drug Evaluation and Research.
Por outro lado, a Anvisa, prejudicada pela falta de servidores, precisa concentrar todas essas funções de apoio em um pequeno grupo de pessoas externas às áreas especializadas, que atuam sobre todo o espectro de produtos regulados pela agência, gerando uma organização interna pouco especializada e, consequentemente, menos eficiente.
De nenhuma forma a comparação feita aqui serve para argumentar que os recursos da Anvisa de pessoal e financeiro devem ser equiparados aos da FDA. Os respectivos mercados são diferentes e exigem entidades regulatórias com estruturas e tamanhos também diferentes. A questão é que a comparação mostra que a diferença é grande demais e injustificada, sendo urgente que se restabeleça a força de trabalho da Anvisa.
[1] Dado retirado da última versão do estudo “A importância da pesquisa clínica para o Brasil” da Interfarma, disponível em link e link.
[2] Matéria disponível em link.
[3] Dados informados pelo Diretor Rômison Rodrigues Mota durante as suas considerações na abertura da 10ª Reunião Ordinária Pública da Diretoria Colegiada da Anvisa de 12/jun/2024.
[4] Matéria disponível em link.
[5] Matéria disponível em link.
[6] Dado retirado da Carta Aberta dos Servidores da Anvisa publicada em 25/jan/2024 no site da Sinagências, disponível em link.
[7] Dado retirado do Ofício Entidades 007/2024 publicado pelo Sindusfarma, disponível em link.
[8] A título exemplificativo: Ofício 254/2024/SEI/DIRETOR-PRESIDENTE/ANVISA e Ofício nº 94/2024/SEI/DIRETOR-PRESIDENTE/ANVISA, enviados pela Diretoria Colegiada da Anvisa à Ministra de Estado da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos; Carta Aberta dos Servidores da Anvisa, publicada em 25/jan/2024 no site da Sinagências; Nota do Presidente Executivo da Aliança Brasileira da Indústria Inovadora em Saúde (ABIIS), José Márcio Cerqueira Gomes, publicada em 20/mai/2024 na internet, expressando a sua preocupação com o desmonte da Anvisa.
[9] Ofício nº 254/2024/SEI/DIRETOR-PRESIDENTE/ANVISA.
[10] Matéria disponível em link.
[11] Matéria disponível em link.
[12] Matéria disponível em link.
[13] Ofício Entidades 007/2024, disponível em link.
[14] Trata-se do aproveitamento das análises já feitas por agências reguladoras estrangeiras equivalentes.
[15] Trata-se de procedimento otimizado de avaliação, baseado em critérios de risco, para confirmação da adequação aos requisitos sanitários da documentação submetida à Anvisa em petições de registro e de mudanças pós-registro de medicamentos.
[16] Dado retirado de pesquisa publicada pela empresa Nova One Advisor em link.
[17] Dado retirado do Ofício Entidades 007/2024 publicado pelo Sindusfarma, disponível em link.
[18] Dados retirados das seguintes fontes: link, link e link.
[19] Dado retirado do Portal da Transparência do Governo Federal, disponível em link.
[20] Dado mencionado por Lauro Anhezini Jr. da BAT Brasil durante Audiência Pública realizada em 21/mai/2024 na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado acerca do Projeto de Lei 5.008/2023.
[21] Dado de fevereiro/2023, retirado do próprio site da FDA em link.
[22] Dado de janeiro/2024, retirado do Relatório de Gestão da GGMED de 2023, disponível em link.
[23] Dado de outubro/2021, retirado do próprio site da FDA em link.
[24] Dado retirado do Relatório de Atividades de 2023 da Gerência-Geral de Alimentos, disponível em link.