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Em 2023, a americana Claudia Goldin foi a primeira mulher a ganhar, sozinha, o Prêmio Nobel de Economia. Ao longo dos 54 anos de premiação, e mais de 90 laureados, apenas 3 mulheres[1] ganharam o prêmio, sendo 2 em conjunto com outros pesquisadores homens. A lacuna de gênero foi exatamente o que rendeu a ela a consagração: ao longo de sua carreira, Goldin se dedicou a investigar as inequidades de gênero no mercado de trabalho.
Um dos resultados da pesquisa de Claudia Goldin mostrou que, ao longo do último século, a proporção de mulheres no mercado de trabalho triplicou. Contudo, a discrepância entre gêneros persiste pelo fato de o mercado valorizar, cada vez mais, trabalhadores que dedicam mais tempo ao emprego. Com isso, pode-se compreender o motivo de os homens terem se sobressaído ao longo do tempo, uma vez que eles se dedicam apenas a uma jornada, enquanto mulheres se desdobram entre a dupla e, por vezes tripla, jornada de trabalho.
De acordo com estudo do IPEA de 2023, a diferença entre horas em trabalho doméstico e de cuidados atribuída ao gênero é de 11 horas semanais. Ou seja, a mulher dedica, em média, 11 horas a mais do que os homens em trabalho não remunerado. Estes valores variam de acordo com (i) a presença de filhos pequenos ou idosos, (ii) a idade da mulher e (iii) o seu nível educacional.
Em termos de dedicação às tarefas domésticas, as mulheres com menor escolaridade e homens com maior escolaridade apresentam uma participação superior. Quanto à remuneração, mulheres que apresentam uma maior remuneração em relação aos seus companheiros tendem a dedicar mais tempo às tarefas domésticas, sugerido que esta funciona como uma maneira de neutralização da situação laboral.
A participação entre homens e mulheres é heterogênea no mercado de trabalho. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, a partir de dados da PNAD de 2023, as mulheres integraram 42,26% dos trabalhadores ativos, participação inferior à metade. No entanto, a população brasileira é majoritariamente feminina, composta de 104,5 milhões de mulheres (51,5%) e 98,5 (48,5%) milhões de homens.
Mas, e no serviço público federal? Há diferença de participação feminina quando a forma de ingresso é por meio de concurso público, o qual busca avaliar e aprovar aqueles que estão melhor preparados?
De acordo com dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, as mulheres são maioria entre os ingressantes na Administração Pública Federal, representando, em 2023, 53,3% do total de ingressantes[2]. Quando o recorte é pelo ingresso por meio de concurso público, a participação feminina, no mesmo ano, cai para 44,5%.
Ao analisar o estoque de servidores a partir dos dados disponíveis no observatório de pessoal do Governo Federal, percebe-se que a diferença exposta acima se mantém para os ingressantes via concurso público. Os dados mostram que 54,6% da força de trabalho é do gênero masculino e 45,4% do gênero feminino.
Gráfico 1 – Força de trabalho do Governo Federal por Gênero. Crédito/Observatório de Pessoal
Se a proporção de servidores federais apresenta certo equilíbrio, é de se esperar que a participação efetiva do gênero feminino em cargos de liderança também seja equilibrada. O gráfico 2 apresenta esta equidade ao longo do tempo. Entre 2008 e 2023, observa-se que, em média, 57,79% dos cargos de liderança no Governo Federal foram ocupados por homens e 42,21% por mulheres.
Gráfico 2 – Cargos de Liderança do Governo Federal por Gênero. Crédito: Observatório de Pessoal
Esses dados mostram que o serviço público federal brasileiro, de modo geral, está em sintonia com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela ONU, em relação à promoção da igualdade de gênero. Como as mulheres representam, aproximadamente, 45% da força de trabalho, sua participação em cargos de liderança apresenta uma participação semelhante, apenas 3 pontos percentuais inferior. Esta é uma conclusão inicial que pode ser inferida a partir das informações disponibilizadas pelo Observatório de Pessoal.
Seria essa (aparente) igualdade de gênero no Governo Federal motivo para comemorar? Argumentamos que não, pois esta análise agregada considera que todos os cargos possuem peso idêntico, o que não reflete a realidade dos cargos de liderança no serviço público federal.
Informações disponibilizadas pela Série Relatórios Gerenciais do Governo Federal, mostram que, em fevereiro de 2023, os cargos de liderança estavam majoritariamente ocupados por homens (60% de homens e 40% de mulheres). Ao analisar o recorte por cargo/função, já se nota que os cargos de maior salário, e consequentemente de maior responsabilidade e relevância decisória, apresentam ligeira distorção.
O relatório apresenta uma tabela com a equivalência entre os cargos de liderança e as diferentes nomenclaturas usadas no Poder Executivo, em que o cargo de maior remuneração é o NE, ou Cargos de Natureza Especial, e o de menor remuneração é o DAS-1. O gráfico 3 apresenta o percentual de ocupação em fevereiro de 2023. Nota-se que a média dos DAS-1, 2 e 3 fica em torno de 60% para os servidores do gênero masculino e 40% do gênero feminino, mantendo assim a paridade de integrantes do serviço público federal.
No entanto, quando se observa os DAS 4 e 5, o percentual de homens passa de 60% para 65%. E, nos cargos com DAS-6 ou NE, aumenta para 73% de cargos ocupados por homens. Essa diferença não pode ser explicada por questões técnicas. O relatório gerencial afirma que 85% das mulheres em cargos de liderança tem nível superior ou mais, enquanto o percentual para os servidores do sexo masculino é inferior, ficando em 78%. Da mesma forma, vimos que o percentual de ingressantes homens por meio de concurso público é de 54,6%, bem abaixo dos 73% de cargos DAS-6 ou NE que ocupam.
Gráfico 3 – Percentual de ocupação de cargos de liderança por gênero em fevereiro de 2023. Crédito: Observatório de Pessoal
Os apontamentos trazidos pelos dados do Governo Federal mostram que a equidade de gênero, mantendo a proporção de servidores, muda à medida que os cargos aumentam, sugerindo a presença do chamado “efeito tesoura”[3] no serviço público federal. Quanto mais alto o cargo, maior é o poder de decisão e planejamento estratégico do ocupante. A motivação para essa discrepância não está na capacidade técnica, dado que o nível de escolaridade das mulheres é ligeiramente maior que a dos homens.
Com isso, as conclusões observadas no trabalho de Claudia Goldin também podem ser aplicadas ao serviço público federal brasileiro. De acordo com a autora, o maior obstáculo que as mulheres enfrenta, i.e., o trade off entre trabalho e família, é emblemático de um conflito maior entre eficiência e equidade.
As mulheres preferem a flexibilidade de se comprometer com ambos (família e trabalho) e, com isso, pagam um alto preço por tentar equilibrar a dupla jornada. Ou seja, mulheres são preteridas nas indicações para cargos estratégicos por não disponibilizarem todo o seu tempo ao trabalho, e acabam tendo suas evoluções de carreira penalizadas.
Essa penalização salta aos olhos em análise das funções de assessoramento[4] no Poder Executivo. O gráfico 4 mostra um levantamento feito pelas autoras, em julho de 2024, da distribuição por gênero nas funções de assessoramento de livre nomeação, considerando ministros, presidentes de autarquias e etc.
Ao todo, foram considerados 67 órgãos do Poder Executivo. Desses 67, 57 são presididos por homens e apenas 10 por mulheres (9 ministras e a presidente do IPEA)[5]. Em resumo, cargos de livre nomeação extremamente estratégicos são, predominantemente, masculinos.
Gráfico 4 – Percentual de ocupação de cargos de assessoramento por gênero em julho de 2024. Crédito: Waleska de Fátima Monteiro e Tanise Brandão Bussmann
A análise desagregada permite inferir que, apesar dos avanços nos últimos tempos, deve haver esforços para que o crescimento da participação feminina em cargos de liderança seja mais homogêneo, permitindo que as mulheres também possam ocupar as cadeiras mais altas do Poder Executivo.
Análises da presença feminina no serviço público não podem ser restritas à média e tampouco considerar todos os cargos com o mesmo peso. Por suas próprias características, não o são, e isso deve ser levado em conta para entender a disparidade entre as ocupações de cargos de chefia no serviço público federal.
Sendo cargos de maior visibilidade, uma maior participação feminina tem o poder de inspirar as outras mulheres (servidoras ou não) para ingresso e continuidade nas diferentes carreiras, para além dos ganhos que a diversidade apresenta para o ambiente de trabalho e decisões públicas.
[1] Elinor Ostrom (2009), Esther Duflo (2019) e Claudia Goldin (2023).
[2] Há outras formas de ingresso, como vagas temporárias ou outros processos seletivos.
[3] Chama-se “efeito tesoura” quando a proporção de homens aumenta, e das mulheres diminui, à medida em que a carreira progride.
[4] Possibilita a nomeação de pessoas sem prévia aprovação em concurso público para exercer atividade qualificada, de elevada complexidade e responsabilidade.
[5] O levantamento foi realizado de acordo com o conhecimento das autoras sobre os cargos de livre nomeação. Foram considerados os ministérios e equivalentes, as agências reguladoras e os seguintes órgãos, entidades e empresas públicas: ABIN, ANPD, BACEN, BNDES, CADE, CVM, DNIT, IBAMA, IBGE, IPEA, PF, PRF, RFB, STN, SUSEP e TCU.