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Em novembro de 2023, a apresentadora de televisão e empresária Ana Hickmann registrou um boletim de ocorrência contra o seu então marido, Alexandre Correa. Em seu relato, ela afirma ter sido vítima de agressão e ameaças perpetradas pelo companheiro de 25 anos de união. O caso foi se desenrolando sob o olhar atento da mídia e da opinião pública, desde a descoberta dessa primeira movimentação até o presente momento. Movimentações essas que incluem, inclusive, uma denúncia feita por Alexandre contra Ana, acusando-a de alienação parental, assunto que já foi tratado neste espaço por outras pesquisadoras do CRISP.
A denúncia feita por Alexandre, o agressor, foi apenas um dos passos dados em direção a uma busca ativa por reelaborar a narrativa. Para além das diversas entrevistas concedidas nos últimos meses, publicações em redes sociais e notas concedidas à imprensa imputando desvios legais e éticos à Ana, ele se lançou como pré-candidato a vereador de São Paulo, pelo partido político Avante. Em seu perfil público, com mais de 135 mil seguidores, ele explicita sua pauta “lutando diariamente contra falsas denúncias e alienação parental”.
Em um movimento simbólico, Alexandre ocultou todas as imagens anteriores de seu perfil pessoal, com mais de 1 milhão de seguidores, deixando apenas publicações recentes sobre sua atividade política. Criou, ainda, uma nova conta. Em branco. Com a possibilidade de reconstruir e reelaborar uma história, com amplo apoio popular.
Alexandre poderia assumir outros nomes que são também conhecidos: Daniel Alves, Roman Polanski, Woody Allen, DJ Ivis, Lírio Parissotto, Dado Dolabella, o técnico de futebol Cuca e o goleiro Bruno. Ainda, o ator global Rômulo Arantes Neto, envolvido em caso de violência contra duas travestis. Todos eles acusados de violentar mulheres e pessoas LGBTQIAP+.
Em todas as denúncias, a passabilidade de terem cometido ações “passionais, com uma condenação social pontual, que rapidamente se dissolve”. Em sua maioria, são pessoas da comunidade LGBTQIAP+, integrantes dos movimentos feministas, e também dos movimentos negros, que se mobilizam sobre a inadmissibilidade dessas formas de violência.
São elas que sustentam a crítica diante das diversas justificativas sociais e morais que são suscitadas para defesa desses agressores. Precisamos lembrar, ainda, que foi apenas em 2023 que o STF reconheceu enquanto inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, em um movimento histórico, mesmo que tardiamente feito.
Esse ensaio não busca compreender causas. Nosso ponto de partida não é a tentativa de encontrar quais são os pilares que sustentam uma condenação social que é distribuída de forma seletiva e desigual em nossa sociedade. Na verdade, nosso desejo é discutir um desconforto coletivo que emergiu de nossas conversas: crimes baseados em gênero são uma exceção à condenação moral amplamente direcionada aos demais.
Para tanto, é preciso fazermos uma ponderação. Não buscamos, nesse esforço teórico, defender a necessidade de se punir de forma mais indiscriminada, mais severamente e por um período maior de tempo. Sequer acreditamos que a forma de resolução de conflitos, necessariamente, passa pelo encarceramento e pela segurança pública institucionalizada.
Ainda mais importante, defendemos o direito ao esquecimento social do delito, após o encarceramento, e a possibilidade de uma vida integrada, de garantia de direitos e oportunidades. Aqui propomos, nos termos de Maria Filomena Gregori e Guita Debert (2008), pleitear a inadmissibilidade histórica da violência contra mulher; ainda que estejamos discutindo a violência de gênero em um sentido mais amplo.
Inspirado pela diferenciação entre violência e crime feita pelas autoras, Roberto Efrem Filho (2017) defende que o clamor pela punição dos culpados é apenas uma das camadas dos pleitos dos movimentos feministas. Mais que isso, a reivindicação narrativa da violência serve para arquitetar publicamente a violência como uma inadmissibilidade histórica. Ou seja, como aquilo que não pode se repetir e o que esses casos representam emblematicamente.
Então, na ambiguidade inerente às camadas dessas reivindicações públicas, se está pleiteando o reconhecimento de uma violação específica e, mais que isso, um enfrentamento não só ao crime, mas à violência, num aspecto muito mais amplo. Buscamos travar uma luta pelo reconhecimento social da existência do cometimento de uma violência, mais que um esforço de criminalização e encarceramento.
Diante disso, os vieses de classe e raça que já compõem a gramática social e institucional de quem alcança o status de criminoso no Brasil, gênero passa também a compor essa construção. Não pela identidade em si do indivíduo, mas pela dinâmica criminal. Deste modo, a representação fantasmagórica de alta periculosidade que um criminoso assume é adquirida apenas quando o crime não envolve violência baseada em gênero. Portanto, a condenação criminal não vem acompanhada de condenação social e moral, para estas condutas.
Estamos diante de uma sociedade que condena criminalmente – e em casos de alta repercussão, faz dessa violência um instrumento politizado para defesas punitivas –, mas ao não realizarmos políticas públicas no âmbito da igualdade de gênero, reservamos apenas para a força de movimentos condenatórios qualquer sensação de justiça após o cometimento da violência.
A Lei Maria da Penha, aprovada em 2006, é um bom exemplo para pensarmos em inadmissibilidade histórica, responsabilização e conscientização. Sua criação foi um importante marco, inclusive da iniciativa popular, na busca de soluções integradas entre diversos órgãos do Poder Público, da sociedade civil e do setor privado, com o objetivo comum de prevenir e erradicar a violência contra as mulheres.
Em um esforço para reunir atores para além das áreas da segurança pública, a lei busca garantir a participação intersetorial da saúde, educação e da assistência social. Vale ressaltar que esse normativo foi reconhecido, em nível internacional, como uma das melhores leis de proteção à vítimas de violência doméstica.
Mesmo com isso, ainda vivemos uma sociedade que vê os índices de violência de gênero em escalada. Ou seja, as medidas ali previstas, quando implementadas, ainda não são suficientes, em uma sociedade em que tem, ano após ano, recorde de violência de gênero, inclusive de feminicídios, em contramão do que tem ocorrido em demais mortes violentas intencionais no cenário brasileiro, como o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública bem evidenciou.
Em contraposição, algumas vertentes dos movimentos feministas, compreendem a resolução para os casos de violência baseada em gênero com maior punitivismo. A aprovação da Lei do Feminicídio, em 2015, é também resultado da luta feminista, em que os crimes cometidos por razões de gênero possuem uma punição maior, ilustra esse cenário. Apesar da luta pelo reconhecimento social da violência muitas vezes vir acompanhada de punitivismo, nos preocupamos em discutir se essa, enquanto solução única, de fato colabora para construirmos uma sociedade em que meninas, mulheres e LGBTQIA+ se sentiam mais seguras.
Pensarmos a sensação de segurança é de fundamental importância quando temos em nosso horizonte que, mesmo em uma sociedade em que existem legislações polissêmicas para tratar desses crimes, vivemos uma sociedade com os altos índices de violência de gênero.
Mas enquanto desafia-se a esquerda e o feminismo punitivista a repensarem suas soluções pouco efetivas, que mancham a tradição abolicionista que foi duramente construída por criminólogos e penalistas progressistas, talvez esse se apresente como o grande dilema feminista, que se coloca à frente também das discussões sobre opressões capitalistas de raça e classe: como se desprender de seu punitivismo perante homens agressores?
Este, certamente, não é um debate recente. As críticas, internas e externas, à compreensão punitivista levada a cabo por parte dos movimentos feministas brasileiros é contemporânea ao próprio debate sobre as necessidades apresentadas por ele em buscar uma saída, por vezes institucional, às opressões e à violência baseada em gênero.
Portanto, parte das reivindicações lideradas por mulheres, na busca por ver atendidas suas demandas que considerem os direitos humanos para se ver cessar a violência doméstica e sexual, acabou perpassando o sistema policial e penal e a institucionalização de legislações criminalizadoras.
Nessa mesma toada, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados acaba de aprovar o PL 7292/2017, para prever o LGBTcídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, ou seja, criando penas específicas e severas para o crime de homicídio motivado pela orientação sexual ou identidade de gênero da vítima. Tal qual o feminicídio ganhou status de qualificadora em 2015, o mesmo acontecerá, caso aprovado e sancionado posteriormente como lei, o LGBTcídio.
Tanto a aprovação da Lei do Feminicídio, de 2015, e do LGBTcídio, projeto de lei de 2017, carregam em si a importância simbólica de afirmação que a vida de mulheres e LGBTs são um direito inalienável. Parte do movimento feminista entende, por exemplo, o feminicídio enquanto crime de Estado (Lagarde, 2007), a medida que é também a partir da negligência e impunidade estatal que as mulheres e pessoas LGBTQIA+ são mortas pela sua condição de gênero.
Entretanto, as leis aprovadas possuem não apenas limites institucionais e de políticas públicas para alterar e combater esse cenário severo de violência, como seguem apresentando as mesmas soluções insuficientes que não ajudam a mitigar o problema em si. Operar pela criminalização e punitividade não garante segurança, justiça e muito menos a construção de uma inadmissibilidade histórica.
As respostas que temos oferecido enquanto sociedade parecem reconhecer o sentido de justiça enquanto criminalização, baseada na punição individual. Contudo, para populações ainda marginalizadas, que sofrem a consequência de não verem seus direitos básicos reconhecidos, esta não será uma resposta, ainda que insuficiente ao problema que é histórico e coletivo, mas uma demonstração de que certas atitudes não serão mais toleradas? Não será esta uma confirmação (ainda que simplista, mas necessária) de que o acolhimento às vítimas é possível, a partir do reconhecimento de que as violências existem?
Portanto, a indignação social perpassa em reconhecer que a violência existe, e isso exige de nós um esforço enunciativo, à medida que violência é uma categoria em constante disputa. É preciso, portanto, repensarmos a sociedade para além do reconhecimento, mas em medidas práticas para além do punitivismo que consigam alterar o cenário de violência de gênero presente em diversas camadas da sociedade brasileira.
[1] Conforme proposta trazida pelo PL 1904/2024.
DEBERT, Guita; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, fev. 2008.
EFREM FILHO, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017.