Tutela coletiva e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher

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A despeito dos inúmeros esforços empreendidos pelos poderes constituídos no aperfeiçoamento do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher em território nacional, as constantes atualizações legais e jurisprudenciais, embora dotadas de generalidade e abstração, costumam possuir como principal enfoque uma perspectiva atomizada, seja da vítima, em termos protetivos, seja do autor da violência, geralmente em termos repressivos.

Não obstante a referida equação constituir ponto nodal de todo e qualquer sistema de justiça pautado pela eficiência e em consonância com os standards constitucionais e convencionais, parece-nos ser necessário dar um passo adiante no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher e promover o tratamento coletivo da matéria.

Tal como ocorre em outros tantos interesses e direitos difusos e coletivos, o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher também pode – e deve – ser tutelado a partir de expedientes processuais e extraprocessuais (v.g., recomendações administrativas, termos de ajustamento de conduta, ações civis públicas etc.) na busca por soluções que atinjam um maior número de mulheres vítimas de violência doméstica (ou até mesmo de homens agressores).

De início, é necessário trazer à tona um ponto de partida crucial para a admissibilidade de soluções coletivas no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher: a inexistência de um rol fechado de direitos e interesses a serem salvaguardados pela via da tutela coletiva. Isso, porque no processo coletivo, vigora o princípio da não taxatividade dos direitos tuteláveis,[1] o qual é extraído do art. 1º, IV, da Lei da Ação Civil Pública,[2] além de configurar matriz de origem – em casos de atuação do Ministério Público – do art. 129, inciso III, da Constituição Federal,[3] devendo ser estendida a sua aplicação também à esfera extrajudicial de resolução de controvérsias coletivas.

Pois bem. A viabilidade da tutela coletiva na matéria foi expressamente autorizada pelo art. 37 da Lei Maria da Penha: “A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil”.

O mencionado dispositivo, a um só tempo: reconhece a existência de uma faceta transindividual do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher e, ainda, ostenta a natureza de norma de abertura para a incidência do microssistema de processo coletivo (v.g., Lei da Ação Civil Pública, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto da Pessoa Idosa, Lei da Escuta Protegida etc.) no enfrentamento da causa.

Diante escolha expressamente realizada pelo legislador, o Ministério Público ocupa papel de centralidade – também – na por busca de soluções coletivas para o enfrentamento à violência contra a mulher. Indo ao encontro deste raciocínio, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em prol de mulheres em situação da violência doméstica e familiar.[4]

Mas qual seriam as possibilidades jurídicas de atuação coletiva do parquet na matéria? A indagação é pertinente e nos leva para um ponto de partida específico: o campo das políticas públicas. Embora o Ministério Público não detenha legitimidade para formular políticas públicas,[5] a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional outorgou aos membros do Ministério Público, dentre suas inúmeras atribuições, a fiscalização de políticas públicas idealizadas pelos poderes constituídos.

Nesta perspectiva, caberá ao parquet a verificação da existência de omissão estatal na instituição de determinada política pública prevista em lei ou, ainda, se estão sendo obedecidos os parâmetros idealizados pelo legislador durante a prestação de determinada política pública. Trocando em miúdos: se não há uma deficiência grave na prestação do erviço.

A última vez em que o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema foi em julho de 2023, ao julgar o Tema 698, oportunidade em que definiu parâmetros para nortear decisões judiciais a respeito de políticas públicas. Dentre as teses fixadas na oportunidade, estabeleceu a Corte que: “[a] intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes”.[6]

Especificamente em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher, o art. 26, inciso II, da Lei 11.340/2006 é categórico ao incumbir ao parquet o dever de: “fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas”. A partir do mencionado dispositivo legal, abre-se um feixe de atribuições para o Promotor de Justiça atuar em uma perspectiva coletiva e estrutural no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. Algumas destas possibilidades serão comentadas a seguir.

Atendimento especializado e reservado às mulheres vítimas de violência doméstica em repartições policiais

Em 2023, o governo federal sancionou a Lei 14.541/2023, a qual dispõe sobre a criação e o funcionamento ininterrupto de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, também conhecidas como “DEAMs”. Além do funcionamento ininterrupto das referidas repartições policiais, o Congresso Nacional impôs aos estados a obrigação da prestação de um atendimento especializado às mulheres vítimas de violência, conforme prevê o artigo 3º, §1º da Lei 11.541/2023 (“O atendimento às mulheres nas delegacias será realizado em sala reservada e, preferencialmente, por policiais do sexo feminino”). Trata-se da implementação da política pública objetivada pelo art. 8º, inciso IV, da Lei Maria da Penha.[7]

Logicamente, a Lei das DEAMs deve ser interpretada em conjunto com os dispositivos da Lei 11.340/2006 que versam acerca do tema, notadamente aqueles que compõe o Capítulo III da lei, denominado “Do atendimento pela autoridade policial”.

A título de exemplo, o artigo 10-A da LMP elenca uma série de balizas para a realização do atendimento à mulher vítima de violência doméstica: a) prestado preferencialmente por servidoras públicas do sexo feminino (caput); b) a salvaguarda da integridade da mulher, dada sua especial condição de pessoa em situação de violência doméstica (inciso I); c) a garantia de não contato entre a mulher vítima de violência doméstica e o agressor (inciso III) e; d) a não revitimização da depoente.

Ainda, e conforme já mencionado, a Lei 14.541/2023 impõe aos estados a estruturação de salas reservadas para o atendimento das ofendidas. Existem, portanto, ao menos dois tipos de parâmetros a serem observados atualmente: um de ordem arquitetônica (espaço reservado) e outros na forma de realização do atendimento propriamente dito. E é neste cenário que se propõe uma primeira hipótese de atuação coletiva do Ministério Público no enfrentamento à violência contra a mulher.

Com base no já mencionado art. 26, inciso, da Lei Maria da Penha, – e neste caso em específico – também no exercício do controle externo da atividade policial, atribuição constitucionalmente conferida ao Ministério Público (art. 129, inciso VII, da CF88), deve o Promotor de Justiça averiguar a regularidade da referida política de segurança pública. Isto é, instaurar um procedimento administrativo para acompanhar se o atendimento especializado às mulheres vítimas de violência doméstica está sendo prestado nas respectivas repartições policiais e, se sim, se os parâmetros legais estão sendo observados (v.g., sala reservada, não revitimização, atendimento preferencialmente prestado por mulheres etc.).

Uma vez constatada a irregularidade por parte do Estado, seja pela não prestação da política pública ou pela sua prestação em desconformidade com as balizas instituídas em lei, deve o membro do parquet buscar a solução pela via extrajudicial junto à autoridade policial responsável pela repartição (v.g., expedição de recomendação administrativa, celebração de um termo de ajustamento de conduta (TAC etc.).

Não sendo frutífera a tentativa de solução da questão coletiva pela via da consensualidade, não restará alternativa ao agente ministerial senão judicializar a demanda pela via da ação civil pública. Sobre esta última hipótese, lembro aos leitores que o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a judicialização das políticas de segurança pública, em casos de omissão ou prestação deficitária por parte do Estado, quando destas situações decorrem violações aos direitos fundamentais dos usuários[8].

Implementação de grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica

Em abril de 2020, a Lei 13.984/2020 alterou o artigo 22 da Lei Maria da Penha, inserindo no rol “das medidas protetivas que obrigam o agressor”, a possibilidade de determinação judicial do comparecimento do homem autor de violência doméstica para “programas de recuperação e reeducação” (inciso VI) ou para “acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual ou em grupo” (inciso VII). Ambos os incisos materializam o que a doutrina e a jurisprudência convencionou chamar de “grupos Reflexivos para homens autores de violência doméstica”.

Trata-se, de uma política pública de enfrentamento à violência contra a mulher com enfoque nos homens autores de violência, nutrida por dois principais objetivos: “conscientizar os autores e supostos autores de violência doméstica a respeito das questões de gênero, e, assim, tentar evitar a recidiva de seus participantes nesse tipo de conduta delitiva”.[9] Nessa perspectiva, é possível afirmar que os grupos reflexivos materializam uma faceta coletiva do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, já que, além de ostentarem a natureza de política pública, atuam na desconstrução de uma cultura complacente com a violação de direitos humanos das mulheres.

A partir da referida alteração legislativa, o Congresso impôs ao Poder Público uma obrigação primária de instituir ao menos um grupo reflexivo por Comarca em todo território nacional, sob pena de admitirmos a existência de duas medidas protetivas típicas previstas ao agressor desprovidas de eficácia social (v.g., juiz determina o encaminhamento do homem autor de violência doméstica ao grupo reflexivo, porém não há grupo em funcionamento na Comarca), algo absolutamente inimaginável em pleno ano de 2024 e diante do alto índices de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher em todo o território nacional.

Neste cenário, uma vez verificada a inobservância do Poder Público na instituição da referida política pública, caberá – mais uma vez – ao parquet empreender esforços para solucionar a questão a partir dos instrumentos extrajudiciais e judiciais da tutela coletiva.

É possível conjecturar inúmeros outros exemplos de atuação coletiva do Ministério Público no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Em matéria de direito à moradia, a fiscalização da prioridade conferida às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no acesso às unidades habitacionais relativas ao programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida”, nos termos do art. 8º, inciso VII, da Lei 14.620/2023.

No âmbito do direito à educação: a fiscalização acerca da prioridade conferida pelo art. 9º, §7º, da Lei Maria da Penha, às vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher na matrícula ou transferência de seus dependentes em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio, dentre outros.

Diante todos os breves exemplos mencionados ao longo deste texto, a certeza é uma só: se desejamos atingir novos e melhores resultados no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher em nosso país, urge a necessidade do tema ser tratado – também – a partir de uma perspectiva coletiva.

Espero que tenham gostado. Até a próxima!

[1] MILARÉ, Édis, MILARÉ, Lucas Tamer. Princípios informadores do processo coletivo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. CAMPILONGO, Celso Fernandes; GONZAGA, Alvaro de Azevedo; FREIRE, André Luiz (coord.). Tomo: Direitos Difusos e Coletivos. NERY JR., Nelson; ABBOUD, Georges, André Luiz Freire (coord.). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

[2] Art. 1º, inciso IV, da Lei 7.347/85: “Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (…) a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”.

[3] Art. 129 da Constituição Federal de 1988: “São funções institucionais do Ministério Público: (…). III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.828.546/SP. Rel. Min Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, j. 12/09/2023.

[5] KOZICKI, Kátya; COELHO, Sérgio Reis. O Ministério Público e as Políticas Públicas: Definindo a Agenda ou Implementando as Soluções? Revista da AJURIS, v. 40, n. 130, p. 376-394, 2013. Para um aprofundamento sobre o tema: SMANIO, Gianpaollo Poggio. Ministério Público e Políticas Públicas. In.  GOULART, Marcelo Pedroso. (org). Ministério Público: pensamento crítico e práticas transformadoras. Belo Horizonte: D´placido, 2016. p. 377-400

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 684612. Rel. Min. Ricardo Lewandowki, Rel p/ Acórdão: Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 03/07/2023.

[7] Art. 8º inciso IV: “A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher”.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.389.952-MT. Rel. Min. Herman Benjamin, j. 03/06/2014.

[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 408116. Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 31/08/2018.

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