Democracia e Forças Armadas no Brasil

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O 31 de março de 2024 nos impõe uma reflexão sobre os 60 anos do golpe militar de 1964, especialmente após a invasão do Congresso Nacional, do STF e do Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023. Neste ano, contudo, o aniversário do golpe de 1964 se combina com outra efeméride: os 200 anos da Constituição Imperial do Brasil, outorgada por D. Pedro I em 25 de março de 1824.

Os dois acontecimentos marcaram momentos autocráticos de nossa história, e os dois momentos estão alinhavados por um mito comum: a necessidade de que nossa vida democrática seja tutelada pela força militar. E a recém-descoberta minuta de decreto que pretendia instaurar o estado de defesa na sede do TSE expôs o quanto o governo Bolsonaro acalentava a ideia de uma intervenção no processo eleitoral de 2022.[1] Portanto, 1964 não pode ser simplesmente relegado ao passado.

Nossa primeira (e até hoje mais longeva) Constituição, amalgamou os princípios liberais irradiados pela Revolução Francesa com o Império, a manutenção da escravidão e o poder moderador: “chave de toda organização política”, incumbência privativa do Imperador, “Chefe Supremo da Nação”, para que “incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos”.[2] O poder moderador permitia ao Imperador dissolver órgãos parlamentares e suspender magistrados, dentre outras atribuições voltadas assegurar a preponderância do poder executivo sobre o legislativo e o judiciário.

Com a Constituição de 1824 estava inaugurada nossa tradição constitucional de compatibilizar futuro e passado no presente – ou melhor, de transigir com o passado à custa do futuro. Essa parece ser uma constante em nossa história constitucional: certas aspirações expressas na Constituição são contraditadas por um pacto com o passado.

Democracia e autocracia se alternaram em nossa história. Não por outra razão, Sérgio Buarque de Holanda assevera, no clássico Raízes do Brasil, de 1936 (ou seja, às vésperas da irrupção autoritária do Estado Novo), ser a democracia no Brasil “lamentável mal-entendido”: o peso do passado oligárquico refreava a aspiração de modernização expressa no ideário liberal.

Um exemplo vivo dessa contradição pode ser encontrado no art. 142 da Constituição Federal de 1988. Esse dispositivo alinhava o imaginário remoto de um poder moderador como fiel da balança no conflito entre poderes, corporificando-o, contudo, nas Forças Armadas. Essa, com efeito, sempre foi a tônica na retórica do ex-presidente Bolsonaro, ao conclamar que havia “chegado a hora do 142”.[3]

O art. 142 da Constituição diz o seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.[4]

Como se vê, não há, no texto, um desafio hermenêutico significativo. A reivindicação de que as Forças Armadas atuem como uma espécie de poder moderador não está no texto constitucional.

Diversos juristas se debruçaram sobre o tema; todos chegando à conclusão unânime: nada há no texto do art. 142 da Constituição que autorizasse a retórica bolsonarista.[5] Essa foi justamente a manifestação do STF na ADI n° 6.457/DF: é impossível argumentar que a Constituição comportaria o manejo das Forças Armadas contra qualquer um dos poderes constitucionais ou acima deles.

A questão, portanto, não é hermenêutica, mas política. Não se trata de interpretar o art. 142, mas de disputar seu conteúdo. A retórica que reivindica no art. 142 a capacidade de que as Forças Armadas arbitrem conflitos entre os poderes em nome da garantia da lei e da ordem se alimenta do histórico de tutela militar da vida democrática brasileira.

Em Segredos da Constituinte, livro de entrevistas do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, é possível ler trechos preciosos do momento em que o art. 142 foi redigido. Assim afirma, por exemplo, o ex-Presidente José Sarney:

Maklouf: Houve algum risco de golpe militar durante a Constituinte?

Sarney: Houve risco sim. Quando eles tentaram fazer uma redação em que as forças armadas não podiam intervir na ordem interna, houve uma reação muito grande da área militar. (…) o Leônidas me disse: Nós resolvemos, essa redação nós aceitamos. O Bernardo Cabral fez esse acordo – de garantir um artigo que garantisse a intervenção militar na ordem interna.”

(Luiz Maklouf Carvalho, 1988: Segredos da Constituinte. Rio de Janeiro: Record, 2017)

A entrevista do general Leônidas, então Ministro do Exército no governo Sarney, corrobora essa interpretação de forma ainda mais explícita:

Maklouf: A questão mais importante para as Forças Armadas era garantir, na Constituição, o direito de poder intervir na ordem interna – como acabou constando no art. 142, desde que autorizadas por um dos três poderes. Mas deu muita confusão.

Leônidas Pires Gonçalves: Eu me envolvi pessoalmente nesse debate. Não há Constituição no mundo que, de maneira direta ou indireta, não atribua a garantia da lei e da ordem do país às Forças Armadas. O exemplo máximo é a democracia americana. O juramento do militar americano é: ‘Juro solenemente defender a Constituição dos Estados Unidos against foreign and domestic enemies’. Então, como diz com muito acerto o jurista Ives Gandra, ‘O art. 142 coloca as Forças Armadas como um poder moderador da nação’.

(Luiz Maklouf Carvalho, 1988: Segredos da Constituinte. Rio de Janeiro: Record, 2017)

Essas entrevistas não legitimam a retórica bolsonarista; revelam apenas sua origem histórica no processo constituinte. O livro de Maklouf, de 2017, parecia prenunciar o que viveríamos com crescente intensidade a partir de 2018, até culminarmos no 8 de janeiro de 2023.

Não podemos subestimar a força dos fantasmas do passado. A ideologia que vê as Forças Armadas como garantidoras da vida democrática remanesce preservada e reproduzida em círculos e escolas militares, e o processo eleitoral de 2022 não excomungou esse fantasma.

O conflito político expresso na redação do art. 142 da Constituição permanece latente. Talvez seja inevitável enfrentar uma alteração constitucional desse dispositivo, apesar de todos os riscos envolvidos nesse processo, como forma de fazer um acerto de contas com a memória do processo constituinte que vê, no art. 142, uma cláusula de exceção ao governo civil.

Se não esconjurarmos de vez o fantasma da tutela militar de nossa democracia, corremos o risco de sermos surpreendidos por velhos acontecimentos – como um raio em céu azul, um raio que, de tempos em tempos, insiste em cair no mesmo lugar.

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[1] Cf. https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/13/leia-a-integra-da-minuta-de-decreto-para-instaurar-estado-de-defesa-encontrada-na-casa-de-torres.ghtml.

[2] Cf. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm.

[3] Cf. https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1266101269975924744?s=48&t=BBkZ7MQaNay01WgrPpqMx.

[4] Cf. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[5] Cf. o e-book organizado por André Rufino do Vale, Forças Armadas e democracia no Brasil: a interpretação do art. 142 da Constituição de 1988. Brasília: Observatório Constitucional/Jota, 2020 (disponível no link: https://conteudo.jota.info/forcas-armadas-democracia).

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