Atos Interna Corporis: persiste essa categoria?

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Nesta primeira semana de agosto de 2024, a Defensor Legis completa quatro anos. No casamento, isso representaria bodas de flores e frutas, com significado de amadurecimento da relação. A ocasião é de reiterar o agradecimento ao JOTA, pelo espaço, e aos leitores, razão de ser da coluna, pela leitura e pelas diversas manifestações de endosso, críticas e sugestões. É uma honra contar com essa audiência interessada em assuntos tão específicos e, às vezes, pouco abordados.

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O julgamento das 13 ADIs em que se discute a constitucionalidade da EC 103/2019, que realizou a última reforma da Previdência, vem sendo noticiado aqui. O julgamento é importante, calcula-se que seu impacto será de até R$ 497 bilhões, e já há maioria formada para declarar a inconstitucionalidade material de três pontos: a) autorização para a instituição de contribuição previdenciária extraordinária a ser paga pelos funcionários públicos para garantir o equilíbrio atuarial; b) cálculo diferenciado dos benefícios de mulheres no regime geral de previdência social (RGPS) e no regime próprio; e c) anulação das aposentadorias concedidas sem a respectiva contribuição.

À coluna de hoje, interessa, não as questões materiais, mas a discussão sobre a suposta inconstitucionalidade formal da EC 103/2019 suscitada na ADI 6279, de autoria do Partido dos Trabalhadores (PT), e repetida na ADI 6367, apresentada pela Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional). O caso rende um excelente debate sobre o que são os atos interna corporis e sobre qual deve ser a postura judicial correspondente.

Na petição inicial da ADI 6279, o PT sustenta a inconstitucionalidade formal dos arts. 1º; 19, § 1º, inciso I, alíneas a, b, c; 20, inciso IV; e 26, da EC 103/2019, por violação ao art. 60, § 2º, da CF, sob o argumento de que não teriam sido aprovados em dois turnos em ambas as Casas Legislativas.

Em síntese, o PT alega que, durante a tramitação da PEC 6/2019 no Senado, itens foram destacados e consequentemente retirados do texto. Como é a praxe, na votação, a PEC teve seu texto básico aprovado, ressalvados os destaques, que são votados em separado. Entretanto, antes de que isso acontecesse, houve a desistência dos destaques. Com isso, tais partes (antes destacadas) retornaram à proposição principal sem jamais terem sido votadas.

Para a compreensão da controvérsia, convém explicar o que são os destaques e como estão disciplinados regimentalmente.

O destaque é mecanismo regimental por intermédio do qual se pode desmembrar partes do texto da proposição e que permite a retirada de dispositivos, mediante o fracionamento de sua deliberação. Na prática, funciona como uma emenda fora de tempo (pois pode modificar o texto prestes a ser votado), com a diferença de que o destaque pode ser apresentado em um estado já avançado da tramitação (durante a votação) e não pode inovar (só incide sobre matéria já existente).

A tendência é utilizar o destaque especialmente para separar matérias polêmicas, quando não há acordo para aprovação da proposição in totum. O destaque incidirá, então, sobre os artigos mais controvertidos e, de um jeito ou de outro, oportuniza mais tempo para conhecimento e análise do objeto das divergências, sem prejuízo da aprovação do restante da matéria já consensual.

O art. 312 do Regimento Interno do Senado Federal (RISF) prevê três tipos de destaques: a) para votação em separado (DVS), por intermédio do qual o parlamentar pode desagregar o texto completo (de artigo, inciso, alínea) ou mesmo expressões do texto, de modo que tal matéria seja separada do texto global para ser votada separadamente; b) o destaque supressivo (DS), pelo qual se recorta o texto já para eliminação, se obtiver a maioria necessária; e c) o destaque para constituir uma proposição autônoma, pelo qual se desmembra algum texto do projeto para ser incluído, se obtiver a maioria necessária, no novo projeto (ou substitutivo).

Na prática, o destaque supressivo (DS) não costuma ser utilizado, por causar confusão e, consequentemente, problemas na aplicação (muitos parlamentares têm dificuldade de entender que, ao votar um DS, a maioria está eliminando o conteúdo da proposição, e não aprovando, como costuma ser a praxe da deliberação legislativa). Isto é, a aprovação do DS tem o mesmo resultado da aprovação de uma emenda supressiva.

O destaque depende de requerimento escrito, a ser formulado: 1) por qualquer senador, caso em que é necessária a aprovação do plenário (ou da comissão, se for o caso) quanto à sua admissibilidade; ou 2) por bancada de partido, por intermédio do seu líder (destaque de bancada), situação em que o destaque independe da aprovação do plenário nos quantitativos fixados regimentalmente: a) de 3 a 8 senadores, 1 destaque; b) de 9 a 14 senadores, 2 destaques; c) mais de 14 senadores, 3 destaques (art. 312, parágrafo único). Nessa segunda hipótese, observada a proporcionalidade, o destaque constitui uma prerrogativa da bancada, e são apreciados tão-somente quanto ao mérito.

O destaque não precisa incidir sobre texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea. Pode ter por objeto uma expressão, uma palavra isolada ou mesmo um sinal de pontuação. Mas não se permite o destaque de expressão cuja retirada inverta o sentido da proposição ou a modifique substancialmente.

Além disso, é preciso que o texto destacado forme sentido completo, pois, embora isso seja raro, pode acontecer de o texto principal ser rejeitado, mas o destaque ser aprovado. Para mais detalhes, remete-se à publicação destaques no processo legislativo do Senado.

Ainda de acordo com o RISF, art. 314, inciso I, o requerimento de destaque pode ser formulado: a) até ser anunciada a proposição, se o destaque atingir algumas de suas partes; b) até ser anunciado o grupo das emendas, quando o destaque se referir a qualquer delas; c) até ser anunciada a emenda, se o destaque tiver por fim separar algumas de suas partes.

Concedido o destaque para votação em separado (DVS), vota-se, primeiramente, a matéria principal e, em seguida, a destacada (art. 314, III, do RISF). Essa é a principal consequência do DVS: ao dividir a votação em duas, cria-se uma dificuldade para reinserir o texto destacado, já que a votação se estende e o passar do tempo aumenta as chances de esvaziamento do quórum. Disso resulta o destaque ser uma das mais importantes táticas de obstrução parlamentar.

Nos termos do art. 314, inciso V, do RISF, havendo retirada do requerimento de destaque, a matéria destacada voltará ao grupo a que pertencia. Trata-se de previsão literal do RISF. É dizer, havendo desistência do destaque, é como se o dispositivo objeto dele jamais tivesse sido destacado. A prática é admitida há longa data no Senado e também foi utilizada, por exemplo, na PEC nº 29/2000, que deu origem à EC nº 45/2004 (Reforma do Judiciário).

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) também prevê a figura dos destaques, mas, diferentemente do RISF, consta do art. 162, inciso VI, do RICD, que no DVS a matéria destacada somente integrará o texto se for aprovada. Dessa forma, o inciso XII do mesmo artigo – pelo qual, havendo retirada do requerimento de destaque, a matéria destacada voltará ao grupo a que pertencia – não se aplica ao DVS. Dito com outras palavras, em caso de retirada de DVS, enquanto no RISF, a parte destacada é tida como aprovada; no RICD, é considerada rejeitada.

No caso concreto da PEC 6/2019, a retirada dos DVS e os seus efeitos foram objeto de intensos debates. O senador Randolfe Rodrigues chegou a apresentar a Questão de Ordem (QO) 17/2019, argumentando que, com a retirada do DVS após a votação do texto básico, o dispositivo destacado ficaria em um “limbo jurídico”, pois a votação da proposição se dá, como já visto, com a ressalva dos destaques e, no caso de desistência do requerimento, o texto correspondente não teria sido aprovado pelo plenário. A QO foi indeferida pelo presidente da Casa, com fundamento no art. 314, inciso V, do RISF, que expressamente determina o retorno do dispositivo ao grupo a que pertencia.

O senador Rogério Carvalho também formulou a QO 20/2019, com o mesmo objeto, sustentando a impossibilidade de retirada de requerimentos de destaque de bancada após a aprovação da matéria principal, tendo em vista que os dispositivos objeto de tais requerimentos (de DVS) são automaticamente destacados e, assim, não integram a votação do texto principal. O senador defendeu que tais dispositivos deveriam, então, ser submetidos a votação.

Entretanto, assim como na QO anterior, o então presidente Davi Alcolumbre indeferiu a QO 20/2019 e ainda lembrou que o art. 300, inciso XVII, do RISF, determina que a matéria destacada terá a mesma sorte das demais do grupo a que pertencia se o autor do requerimento de destaque não pedir a palavra para encaminhá-la, solução que igualmente deveria ser aplicada ao caso de retirada do requerimento. Das decisões dessas duas QOs, não houve recurso ao plenário, denotando aquiescência com o entendimento em comento.

Como se vê, há evidente questão de interpretação de normas estritamente regimentais; e, a rigor, sujeita ao tema 1.120 da repercussão geral: “Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis.

In casu, não há qualquer norma constitucional sobre os destaques, que, como já visto, são uma figura regimental. Suas regras estão postas no RISF desde sempre e todos os players sabem exatamente as consequências de seus atos. No caso concreto, ademais, a retirada dos destaques ocorreu em meio a acordos para agilizar a votação e houve debate no plenário sobre tudo isso.

Nada obstante, para o PT, nas palavras usadas na ADI 6279: “23. (…) Entender que a matéria destacada volte ao grupo a que pertencia após a apreciação da matéria principal é presumir sua votação, o que constitui evidente fraude ao devido processo legislativo”. Daí o seu pedido de interpretação conforme a Constituição do art. 314, inciso V, do RISF, para fixar que seu comando só se aplica aos casos em que a retirada do requerimento de destaque para votação em separado ocorra antes do início do processo de votação.

Argumenta o PT que essa seria a ratio do art. 256, § 1º, do RISF, ao determinar que “O requerimento de retirada de proposição que constar da Ordem do Dia só poderá ser recebido antes de iniciada a votação e, quando se tratar de emenda, antes de iniciada a votação da proposição principal.” Assim, após o início da votação da matéria principal, já não seria possível retirar os destaques, para evitar que o objeto destacado deixe de ser apreciado.

Ocorre que tal art. 256, § 1º, do RISF, tem finalidade totalmente distinta: volta-se para retirar da ordem do dia matéria que estava pautada para a sessão corrente, o que nada tem a ver com o tratamento a ser dado para a matéria regulamente incluída na ordem do dia e em processo de deliberação. Os destaques têm disciplina específica no RISF: há limites temporais para a sua apresentação (art. 314, inciso I, do RISF), mas regimentalmente não existem termos para sua retirada. Portanto, inaplicável a lógica do art. 256, § 1º, do RISF.

Pois bem. Em seu voto, o ministro relator Luís Roberto Barroso afastou o caráter interna corporis dessa discussão e avançou no seu exame. Entretanto, no mérito, afastou a ocorrência de inconstitucionalidade formal, com base, em síntese, em três razões: 1ª) o papel dos acordos das lideranças parlamentares; 2ª) a razoabilidade da interpretação dada pela presidência do Senado Federal às normas regimentais; e 3ª) a impossibilidade de o controle judicial invalidar apenas uma parte do acordo de líderes celebrado no caso concreto.

Tecnicamente, o ministro relator adotou uma fundamentação à la deferência judicial para seguir a interpretação legislativa das normas regimentais. Essa linha argumentativa se afasta da tese fixada no tema 1.120, que sequer foi mencionado. Deixa de lado a ideia tradicional de que a natureza interna corporis de determinadas questões constituiria um óbice ao seu conhecimento pelo Judiciário.

No voto, afirmou-se textualmente que o Poder Judiciário deve ser tão deferente quanto possível e, havendo mais de uma interpretação razoável, deve prestigiar a adotada pelo parlamento. Com isso, estaria o STF inaugurando uma nova fase do controle judicial dos atos interna corporis? O caminho da deferência parece promissor, prestigia o valor da democracia e o princípio representativo.

Como explica Paul Horwitz, tribunais costumam ser deferentes ante outras instituições quando acreditam que essas instituições sabem mais do que os próprios tribunais sobre um determinado conjunto de questões, de tal forma que faça sentido permitir que os pontos de vista dessa autoridade conhecedora prevaleçam sobre o julgamento dos próprios tribunais.

Usando tal premissa, em se tratando do processo legislativo, a priori nenhuma instituição é mais capacitada do que o próprio Poder Legislativo. Se o STF for aplicar a doutrina da deferência de forma coerente, para não ser deferente às Casas Legislativas, o tribunal teria que elevar seu ônus argumentativo e esclarecer as razões por que seus ministros estariam mais bem preparados – e decidiriam melhor e mais adequadamente – do que os próprios parlamentares sobre as questões procedimentais do iter legislativo.

Portanto, também por essa via da deferência, atos interna corporis, apoiados em normas regimentais, persistem como uma categoria apropriada, agora para demandar deferência judicial, quando fundados em razões coerentes, não evidentemente irracionais ou arbitrárias, como no caso da PEC 6/2019.

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