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Ajudar a criar jurisprudência e a regulação: esse é o desafio do departamento jurídico do Mercado Livre, segundo o próprio diretor, o brasileiro Ricardo Lagreca. Em entrevista ao JOTA, o executivo contou que atuar em um mercado novo, sem jurisprudência e legislação consolidada, exige um trabalho constante de adaptação e de influência na construção das regras.
“É um pouco mais difícil do que numa empresa tradicional. Nosso trabalho é meio que ajudar a criar jurisprudência e ajudar a criar essas normas. É um baita desafio”, afirma Lagreca.
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A companhia está na Justiça agora, por exemplo, para tentar suspender uma decisão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) que afeta as plataformas de comércio eletrônico. A regra em questão determina que as empresas precisam validar o código de homologação de todos os telefones celulares cadastrados para venda e impedir o cadastramento de novos aparelhos cujo código esteja incorreto.
A medida, publicada pela Anatel em 21 de junho, prevê sanções, que vão de multas diárias de R$ 200 mil a R$ 6 milhões, além da própria retirada da plataforma do ar em caso de reiterado descumprimento.
O diretor defende que seria mais eficaz se a agência trabalhasse em parceria com a empresa para derrubar os anúncios de aparelhos não homologados, mas diante da perspectiva de multas, disse que foi preciso judicializar o assunto. “A gente está sempre disposto a fazer acordo, sentar, negociar e buscar a melhor solução. Mas, infelizmente, quando existe algum ato que nós consideramos abusivo, temos que ir para a Justiça”.
Além disso, Lagreca ressalta que a empresa apresentou pareceres dos juristas Carlos Ari Sundfeld e Floriano Marques que confirmam que a Anatel não teria competência para regular o comércio de aparelhos celulares. “Ela teria competência para regular as telecomunicações, a homologação dos equipamentos, mas não o comércio”, diz o diretor.
Atuação no negócio
Na entrevista, Lagreca falou sobre como o jurídico do Mercado Livre não se limita a uma atuação reativa. O diretor destaca a atuação da equipe no processo de simplificação da logística da empresa. Em diálogos com a Receita Federal e as Secretarias de Fazenda, os advogados conseguiram mostrar que um modelo mais moderno e simplificado de emissão de notas fiscais beneficiaria a todos os interessados.
Isso porque, até alguns anos atrás, o Mercado Livre emitia notas fiscais em papel. A empresa também exigia que os vendedores abrissem, na junta comercial, uma filial do seu negócio dentro do centro de distribuição da empresa. Por lá, cada vendedor tinha o seu espaço separado. Segundo Lagreca, esse conjunto de demandas impedia o crescimento rápido do negócio e afastava vendedores menores da plataforma.
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Hoje, para atuar no centro de distribuição do Mercado Livre, os vendedores não precisam abrir uma filial nem separar seus produtos. “Não temos mais 20 fornecedores de celulares em 20 lugares diferentes. Com códigos de barra e código QR, conseguimos deixar todos os aparelhos em um mesmo lugar, com segurança específica, e ainda saber, com 100% de certeza, onde está cada item”, afirma o diretor.
A centralização das notas fiscais de entrada e saída dos produtos feita pelo Mercado Livre, além da possibilidade de vender sem ter um estoque próprio, atraiu vendedores. “Só nos últimos anos a gente formalizou 250 mil vendedores que antes vendiam como pessoa física e que hoje estão dentro do nosso modelo logístico. Hoje, na média, eles vendem 140% a mais do que quando não eram formalizados”, conta Lagreca.
A atuação do jurídico da companhia tem sido reconhecida pelo mercado. Neste ano, pelo segundo ano consecutivo, a equipe de 200 pessoas da empresa foi eleita a melhor da América Latina na Leaders League Alliance Summit: Law & Innovation.
Leia trechos da entrevista abaixo.
Quais são os principais desafios e metas do jurídico do Mercado Livre hoje?
Eu comecei na empresa há 10 anos, a gente cresceu muito nesse período, nossas metas foram se adaptando. O nosso jurídico hoje é único na América Latina, com mais ou menos 200 pessoas, sendo que 100 ficam no Brasil. Não é um time de advogados, são pessoas de negócios que entendem de leis. A gente tem esse objetivo de viabilizar projetos e conhecer profundamente o negócio.
Lógico, o mercado em que a gente atua é um mercado muito novo. Então, não é um tipo de atividade que já tem jurisprudência e legislação consolidada. Muita coisa não tem regulação ainda e outras tem regulação recente ou em andamento. Por isso, a gente está em constante adaptação, entendendo os momentos, procurando ter uma influência positiva na construção dessas regras e dessas normas, sempre mostrando os benefícios do nosso modelo de negócio para os consumidores, para os empreendedores e para os motoristas. É um pouco mais difícil do que numa empresa tradicional. Nosso trabalho é meio que ajudar a criar jurisprudência e ajudar a criar essas normas. É um baita desafio.
Em quais situações o jurídico viabilizou projetos da empresa?
A logística é um bom exemplo de nossa atuação. Há alguns anos atrás, o Mercado Livre tinha um modelo logístico muito físico, com emissão de nota fiscal em papel. No centro de distribuição, cada vendedor tinha que abrir a sua filial, ter um espaço separado. Nós mostramos [para as autoridades] que para o país ir para frente, impulsionar os empreendedores e ter uma logística mais moderna, a gente precisaria ter algumas mudanças e simplificações.
Hoje, a gente consegue ter no nosso centro de distribuição 20 mil vendedores no mesmo espaço, sem que eles precisem abrir filial. Então, por exemplo, não temos mais 20 fornecedores de celulares em 20 lugares diferentes. Não, colocamos eles em um lugar só, com uma segurança específica para celular, e eles estão todos misturados porque hoje a gente tem código de barras e código QR, então é possível saber, com 100% de certeza, onde está cada item e garantir que todos tenham nota fiscal de entrada e de saída. O Fisco e também as Secretarias de Fazenda perceberam o benefício do nosso modelo.
Só nos últimos anos a gente formalizou 250 mil vendedores que antes vendiam como pessoa física e que hoje estão dentro do nosso modelo logístico. Hoje, na média, eles vendem 140% a mais do que quando não eram formalizados. Então, o modelo logístico implementado hoje pelo Mercado Livre é um modelo que viabiliza a formalização, o recolhimento de impostos, o empreendedorismo e uma melhor experiência para os consumidores.
Por que o Mercado Livre se opõe à nova determinação da Anatel sobre o código de homologação dos telefones celulares cadastrados para venda?
A gente hoje já tem o campo de homologação da Anatel obrigatório, assim como o do IBAN, que é um código também obrigatório. A gente tem o mesmo objetivo [da Anatel] de não ter esse tipo de produto na plataforma. Tanto que a gente investiu em uma equipe gigante de moderação que, com tecnologia e parceria com as fabricantes, identifica os anúncios com problema.
Temos conversado com a agência há anos e proposto essas parcerias com a nossa ferramenta. E, infelizmente, o caminho da agência está sendo de multar, de ameaçar, suspender. É disso que a gente discorda. É um pouco surpreendente nesse momento aparecerem essas medidas mais radicais no meio de uma conversa que já vinha sendo feita.
Na nossa opinião, esse tipo de solução [proposta pela Anatel] não é o caminho mais eficiente. Mais eficaz seria a Anatel, em parceria, ajudar a treinar a nossa ferramenta de machine learning com o conhecimento que ela tem dos produtos. Assim, a nossa tecnologia conseguiria baixar esses anúncios de uma forma mais eficaz.
O número do equipamento e o número de homologação são números que o vendedor mal intencionado poderia descobrir e não tem como controlar isso 100%. É tecnicamente inviável. Com a nossa tecnologia, a gente consegue ser muito mais eficiente do que um sistema de números que bloqueia o anúncio.
Isso, na verdade, vai prejudicar os bons vendedores. Não ataca os maus vendedores, mas cria etapas para os bons, que vão ter que preencher esses números um a um.
Por que o Mercado Livre considera que a Anatel não é o órgão competente para estabelecer essa regra?
A gente tem pareceres dos professores Carlos Ari Sundfeld e do Floriano Marques que confirmam que a Anatel não tem competência para regular o comércio. Ela teria competência para regular as telecomunicações, a homologação dos equipamentos, mas não o comércio.
Com base nesses pareceres, a gente entende que ela não teria esse condão de sair aplicando essas multas, fazendo essas medidas drásticas, que no final só levam à judicialização e não resolvem o problema.
A gente está sempre disposto a fazer acordo, sentar, negociar, buscar a melhor solução. Mas, infelizmente, quando vem algum ato que nós consideramos abusivo, a gente tem que ir para a Justiça.
Qual é a avaliação da empresa sobre a reforma tributária até agora?
A gente acompanha muito a reforma tributária, é um tema que impacta todo mundo, não tem como ignorá-la. Um ponto que nos chamou a atenção é que foi considerado que o marketplace vai ser solidariamente responsável pelo tributo dos vendedores. E aí você tem, eventualmente, algumas implicações que podem mudar alguns modelos de negócio.
O nosso modelo parte do princípio de que você não tem barreiras para o empreendedorismo. As pessoas começam a vender no Mercado Livre como pessoa física, sem nenhuma formalidade, trava, ou burocracia. A gente defende que tem que ser aberto até que essa pessoa realmente tenha uma atividade. A partir daí é que a gente exige que o vendedor constitua uma empresa, entre na nossa logística, que é 100% com nota fiscal. Porque, enquanto não é uma atividade, a gente entende que deveria deixar as pessoas empreenderem.
Se a gente entender que pode ser responsabilizado [pelas vendas desses empreendedores pessoa física], há um risco de eventualmente pôr mais travas para essa parcela da população.
Mas, no geral, a gente espera principalmente uma simplificação com a reforma, que eu acho que é o principal objetivo. Em termos de tomada de crédito, ter menos tributos é super positivo. A gente apoia e entende que o Brasil precisa dessa simplificação, principalmente os pequenos empresários, é super complicado fazer o recolhimento de tributos para quem já passou do Simples.
Tem também o Difal de ICMS: se o vendedor está em São Paulo e vende para outros estados, o cálculo é tão difícil que a gente fez um software para facilitar a vida deles. A gente disponibiliza esses sistemas para ajudá-los, mas se fosse muito mais simples como está na proposta, isso ajudaria muito o pequeno empreendedor e, obviamente, ajudaria a nossa plataforma também.
A empresa defendia publicamente a taxação das compras internacionais com valores até US$ 50. Qual é a visão de vocês sobre o que foi estabelecido na “taxa das blusinhas”?
A gente é favorável [à taxa], nós entendemos que é uma questão de isonomia, os produtores e empresas locais estão sujeitos ao pagamento dos tributos, então, o correto, para nós, é que isso fosse válido também para os importados. A gente entende que a regra tem que ser um pouco mais isonômica, para evitar distorções. Foi fixado o percentual de 20%, tem que verificar se isso gera algum efeito. A tendência é que aumente, mas temos que esperar para ver o resultado.
Quais estratégias o Mercado Livre adota para reduzir a judicialização dos conflitos?
A bandeira de desjudicialização é muito forte aqui. A gente, primeiro, mudou nossos termos e condições, colocando uma resolução preferencial pela via administrativa e consensual. Nós mudamos até a própria mentalidade interna da equipe e dos fornecedores. Então, a equipe que era 70% focada no litígio, passou a ser 70% focada na prevenção, na mediação e no acordo.
Temos uma ferramenta do próprio Mercado Livre. No aplicativo, se a pessoa que comprou teve qualquer problema, ela abre uma reclamação, que vai para o vendedor na hora. Eles têm alguns dias para resolverem entre si. Caso não resolvam, o Mercado Livre entra como mediador. Temos uma equipe específica para isso. Então, cerca de 99% das situações a gente consegue resolver assim. Do 1,5% que escapa, conseguimos resolver no administrativo 93% das vezes. Só 0,1% do que não é resolvido na própria plataforma vai para a Justiça.
A gente tem um indicador que me dá muito orgulho, que é: a cada 100 mil transações, quantas reclamações na justiça nós temos? Há 10 anos, nós tínhamos 20. Ou seja, a cada 100 mil transações, 20 acabavam indo para a Justiça. Hoje é uma a cada 100 mil. Então, a gente mudou o indicador. Agora, a cada um milhão de transações eu tenho 12 reclamações na Justiça. A ideia é seguir sempre baixando esse número.
Como é o uso de tecnologia e inteligência artificial dentro do departamento?
Olha, a gente tem uma área nossa de legal operations que centraliza toda a parte de tecnologia e a gente usa bastante. Tem vários projetos com automações para fazer contratos, responder perguntas recorrentes, elaborar documentos, prever quais casos críticos que podem vir a juízo. A gente tem uma meta interna de não crescer em pessoas pelos próximos 10 anos, então temos que usar a tecnologia para deixar a equipe mais eficiente.
Temos inclusive um projeto piloto para tentar substituir um escritório de advocacia por inteligência artificial. Em algumas situações a gente constatou que o escritório externo só faz back-office, não gera muito conhecimento, então isso a gente consegue fazer com tecnologia. Lógico, sempre vão ter casos importantes, vamos continuar precisando dos escritórios, mas a gente está testando isso. Se der certo, depois pode ser até que amplie.
Tem alguma dica para um advogado ou estudante de Direito que quer trabalhar em uma empresa como o Mercado Livre?
A gente é uma empresa super aberta à diversidade e à inclusão. Então, realmente qualquer pessoa tem a possibilidade de trabalhar conosco. Acho que um fator importante é o perfil da pessoa. Precisa ser alguém que quer trabalhar em lugares onde você tem desafios grandes, incertezas, porque é bem diferente, como eu falei, de trabalhar em uma empresa mais tradicional, com um produto já regulado.
Trabalhar em um lugar onde toda semana você vai ter um produto novo, todo mês tem uma regra nova, é outro tipo de disposição, gera um pouco de frio na barriga, as pessoas têm que estar ali dispostas a assumir um pouco de risco, a empreender.
Eu considero que saber de tecnologia é super importante. Ter noções de sistemas, não precisa nem ser programador, mas pelo menos conhecer as tecnologias, pesquisar sobre isso. Também acredito que se a pessoa quer ser um advogado de empresa, ela tem que ter essa visão mais de negócios, não dá mais para ficar só lendo os livros em latim. É preciso conhecer de administração, gestão, eu iria por esses tipos de formações paralelas.