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Depois de dois anos de mandato, o ministro Luis Felipe Salomão deixa a Corregedoria Nacional de Justiça com algumas decisões que dividiram o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Suas posições, em alguns casos, se opuseram às do presidente do Conselho e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, como na revisão da postura dos juízes que conduziram a Lava Jato e participaram dos julgamentos das ações penais e inquéritos da operação.
Em entrevista concedida ao JOTA ao final do seu mandato, Salomão respondeu e rebateu acusações de que a Corregedoria se agigantou durante sua gestão. Ele refutou a ideia de que os processos disciplinares abertos contra juízes do Paraná, que atuaram na Lava Jato, seriam uma vingança do mundo político. Salomão destacou a quantidade de representações contra esses juízes e a litigância predatória, como peculiaridades do Judiciário brasileiro.
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“Quando cheguei à Corregedoria, encontrei mais de 30 representações envolvendo os juízes e desembargadores que atuaram na operação Lava Jato. Havia reclamações e representações de todos os tipos”, conta o ministro. Ele explicou que as representações eram feitas por uma variedade de partes, incluindo políticos, réus e outros juízes, ilustrando a complexidade e a abrangência das acusações. “O erro acontece quando se ultrapassam os limites, quando se usa a toga para fins políticos”, afirmou Salomão, referindo-se às críticas de que sua gestão teria sido motivada por retaliação.
Sobre as críticas ao Judiciário, especialmente após os eventos de 8 de janeiro, Salomão destacou o papel do Poder Judiciário na garantia da democracia. “O Judiciário garantiu a eleição, divulgou o resultado, garantiu a diplomação e impediu retrocessos. Estamos incomodando uma parcela de pessoas radicais que querem desarticular o Judiciário. A crítica construtiva é bem-vinda, mas não a desqualificação com fins políticos”, afirmou.
O ministro concluiu destacando a importância de uma atuação corretiva rigorosa e técnica. “Não podemos relaxar na fiscalização. O bom juiz não quer conviver com aqueles que usam a toga de forma errada. O balanço da minha gestão é positivo, mas ainda há muito trabalho a ser feito para aperfeiçoar nosso sistema”, disse o ministro.
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Em relação à litigância predatória, Salomão diz que há como o CNJ agir para minimizar a judicialização. “Tem que separar o joio do trigo”, afirmou. “Tem como mapear e prevenir. O segredo está exatamente na prevenção, a atuação preventiva contra a litigância predatória.”
Ao JOTA, o ministro também falou sobre impasses na Justiça do Trabalho, possibilidades de reformas e mudanças no regimento, além dos números do Judiciário. Salomão enfatizou que há “80 milhões de processos em andamento, 30 milhões de casos novos por ano”. “Não tem como gerir essa máquina se você não olhar para o Justiça em Números”, diz Salomão, ao pontuar que “poucos países do mundo têm algo parecido”.
Confira a íntegra da entrevista.
Depois de dois anos como corregedor-nacional de Justiça, qual é a sua visão da magistratura?
Foram dois anos muito ricos de conhecimento sobre o Poder Judiciário profundo. A situação do Brasil hoje, em termos de funcionamento do Poder Judiciário, é muito específica, muito diferente do que existe no resto do mundo inteiro.
E nós tivemos que, por isso mesmo, ter um funcionamento muito adequado para poder dar vazão a esse volume que hoje é estrondoso. E as causas disso voltam um pouco para o modelo que a Constituição de 1988 imaginou para o funcionamento da nossa República. Saímos de um período de ditadura, no qual era necessário fazer um elenco de direitos exaustivo.
E foi assim que foi feito. A cidadania para voltar para a Constituição Cidadã, era o exercício dos direitos do cidadão. E com o tempo, com o funcionamento desse sistema, cada vez que há uma frustração de um direito, por parte do Executivo ou por parte do Legislativo, o canal disso é o Judiciário. Sem falar aqui em outros motivos que levaram ao processo que hoje, cientistas sociais, sociólogos, debatem sobre a judicialização da vida política, da vida social brasileira, que é também é uma nuance bem diferente do que aconteceu em outros países.
A Constituição americana, aquele milagre da Filadélfia, já tem mais de 200 anos. Então, nós temos que pensar que a nossa Constituição é de agora, de 1988, tem 30 anos, pouco mais 30 anos de experiência, e por isso mesmo nós estamos construindo o nosso sistema.
E o Judiciário, claro, passou a ter, dentro desse contexto, um papel muito relevante. Eu poder conhecer a fundo isso foi uma experiência muito rica, como eu te disse. São mais de 90 tribunais, entre tribunais de Justiça, do trabalho, militar e federal. Experiência única poder ver esse funcionamento. Cada um tem sua peculiaridade, cada um tem sua estrutura.
O senhor já tinha sido juiz de carreira, presidente de associação, é ministro do STJ. Mas, agora, na Corregedoria, sai com que visão?
Só quero terminar esse contexto. São 18 mil juízes, mais de 500 mil funcionários, servidores diretos, fora os indiretos, fora a força de trabalho dos cartórios extrajudiciais. É um mundo, um orçamento próprio de bilhões, com autonomia administrativa financeira, que também nos coloca em uma posição de destaque frente a outros Judiciários do mundo. Nós temos peculiaridades muito específicas, um dos maiores volumes de trabalho do mundo.
Nós temos a carga de trabalho, basta dizer o número de processo, que todo mundo recita em verso e prosa hoje, 80 milhões de processos em andamento, 30 milhões de casos novos por ano. Então, tudo isso implica no processo de gestão para funcionar minimamente, para ter um funcionamento que atenda aos requisitos que a Constituição estabeleceu. E por isso, a minha experiência, como eu te disse, foi conhecer essa máquina por dentro, que é uma estrutura peculiar e diferente de tudo que acontece em outros setores brasileiros e em outros Poderes Judiciários do mundo.
Claro, problemas existem aqui e ali. Há alguns problemas até em alguns tribunais que são sistêmicos, poucos é verdade, mas o depoimento que eu te dou é que a curva do Poder Judiciário ao longo da História é uma curva ascendente.
Nós fomos nos qualificando para poder enfrentar essa situação de acúmulo de trabalho, de gestão de processos. Basta dizer que o primeiro tribunal do mundo inteiramente digitalizado foi o STJ. E nós temos hoje quase 100% do nosso acervo digitalizado. E se você compara tempo de duração de processo quando digital, com a época do processo papel, e eu tenho esses dados comparativos, é estrondosa a diferença.
Então, nós investimos muito na gestão, na qualificação de servidores, na preparação de juízes. Temos uma carreira absolutamente estruturada. E com o advento do CNJ, nós tivemos planejamentos em políticas públicas. Basta também mencionar alguns exemplos, essa questão do julgamento com perspectiva de gênero é uma política pública fantástica.
A atuação dos cartórios nos programas que a Corregedoria desenvolveu agora, o Registre-se, o Um Só Coração, a regularização fundiária. Então, veja, temos muitos problemas, temos sim. Diante do gigantismo que o Judiciário tem, diante da enorme tarefa que a Constituição depositou de garantir esses direitos, que ela foi exaustiva ao elencar. Mas ao mesmo tempo, eu vejo que há um aperfeiçoamento, ao longo do tempo, no sentido de acertar, de caminhar para frente, de utilizar ferramentas tecnológicas, de gerir bem.
As Corregedorias exercem um papel muito importante ao fiscalizar o trabalho de primeiro grau e acompanhar o desenvolvimento do trabalho do segundo grau. O CNJ tem outro papel também de relevo nessa parte: 90% praticamente do movimento do CNJ é da Corregedoria Nacional, o que também por si só já demonstra a sua relevância, a sua previsão constitucional.
Então, eu diria, a curva é ascendente, muito precisa ser feito, muito tem sido feito, mas é um trabalho do dia a dia de aperfeiçoamento. E essa parte da atuação correcional é uma parte muito relevante, porque não se pode relaxar nisso. O funcionamento implica em gestão, você tem que ter uma boa gestão, você tem que ter um pessoal muito qualificado e tem que ter a punição para quem se desvia, porque quem trabalha duro não quer conviver com esse pessoal que suja a toga, que se comporta mal como servidor. Então, o balanço é positivo, com esse viés de trabalhar muito ainda, falta muito.
Hoje a gente vê muito da crítica da imprensa e da sociedade ao Judiciário. A que o senhor atribui esse tipo de crítica, que foi massiva nos últimos dois meses, sobre o uso do orçamento, por exemplo?
Eu acho que crítica ao Judiciário, desde que houve a redemocratização, existe. No começo, era aquela história da Caixa Preta, que o Judiciário não se abria. Hoje, é porque também tem excesso de protagonismo. Então, vai chegar um momento onde esse meio termo vai se encontrar nessa jovem República.
Especificamente nos últimos tempos, eu acho que o Judiciário desempenhou um papel para a garantia da democracia, com esses ataques extremistas, com o que aconteceu no 8 de Janeiro. O Judiciário garantiu a eleição, divulgou o resultado, garantiu a diplomação, impediu que houvesse retrocessos. Então, o Judiciário está incomodando uma parcela de pessoas radicais que querem justamente desarticular o Judiciário. Querem fazer com que o Judiciário fique depreciado. Não como uma crítica construtiva, que volto a dizer a dizer, ela já existe desde que o Judiciário se tornou aberto e possível de ser analisado, acompanhado, e tem que ser assim.
O antídoto para isso eu acho que é sempre mais transparência, sempre mais comunicação, explicação sobre o seu funcionamento. É uma forma de você poder dizer para as pessoas o quanto o Judiciário é importante, o quanto ele tem de autonomia, o quanto ele é independente,o quanto ele presta de serviço para restabelecer a paz social, para ele garantir a democracia. Então, tudo isso tem o seu custo, tudo isso tem a sua consequência. Agora, a crítica, quando é construtiva, ela sempre é muito bem-vinda, mas não esse processo no qual você desqualifica, em que você tenta fazer com que o Judiciário seja desacreditado com um fim político.
Não tem alguns momentos em que o Judiciário dá margem a esse tipo de coisa? Tanto pela falta de transparência sobre o uso de verbas, quanto pelos eventos internacionais ou mesmo por ter parentes de ministros atuando no STJ? Que autocrítica o Judiciário poderia fazer?
É claro, como dizia o desembargador Barbosa Moreira, um grande jurista, falecido já, perfeição não é coisa desse mundo. E de fato, nós do Judiciário, volto a dizer, estamos ainda aprendendo a lidar com esses novos tempos, com essas novas demandas da sociedade e tudo isso é um profundo aprendizado. Eu pude ver isso quando passava fazendo as correições.
A gente vê que tem muitas boas práticas, e até criei um mural das boas práticas para que elas possam ser replicadas. Mas tem práticas também antigas, obsoletas e burocráticas, em que as pessoas se apegam àquilo e atrapalham o funcionamento.
Há determinadas situações em que as críticas são boas porque permitem o aperfeiçoamento. E tem outras em que são a crítica pela crítica. Como a gente viu, não só com o interesse de desacreditar, mas também por profundo desconhecimento. E aí entra aquela ideia de que nós temos que trabalhar com o Judiciário dentro desse contexto gigante que a Constituição o colocou.
Então, nós temos aí, sim, alguns erros. Erros principalmente por falta de uma programação para atuar em diversas áreas. Nós teríamos que ter uma programação na área da comunicação social para nos relacionar melhor, para nos fazermos entender melhor para o público em geral. A própria dinâmica da condução dos julgamentos, de uma explicação mais razoável de como é o funcionamento do Poder Judiciário. Uma forma de as pessoas entenderem.
Eu acho que isso tudo também parte da própria comunidade jurídica. Não é só o Judiciário. Por exemplo, nessa questão que você menciona, como que vai impedir um parente de um magistrado de atuar numa área específica. Na medicina, por exemplo? Os filhos dos médicos podem ser impedidos, os parentes podem ser impedidos de atuarem mesmo em hospitais públicos? Como que faz? Não tem como impedir. O que tem que ter são regras específicas, claras, transparentes, dessa forma de atuação. E isso a gente peca por não informar, peca por não trazer isso com transparência. Isso, de fato, é um problema.
O senhor estava lá na Corregedoria e se deparou com um fenômeno que nós vivemos, que é a judicialização da saúde. Há muita crítica de todos os lados, dos planos de saúde, da indústria farmacêutica, dos hospitais. O que o senhor viu lá dentro que o senhor sugeriria de melhoria no Judiciário nesse ponto da judicialização da saúde?
Olha, um dos focos eu acho que de atuação hoje para gestão do Poder Judiciário é identificar, com base no Justiça em Números, quais as causas que entopem realmente o funcionamento do sistema de Justiça. Porque também aqui é uma peculiaridade brasileira.
Nós temos setores altamente judicializados, seja porque não funcionam as agências reguladoras, que deveriam atuar preventivamente, seja porque o próprio processo de judicialização vai numa escalada em que se tenta atingir objetivos, na maioria das vezes não identificados, não justificados, interesses escusos de se obter vantagens financeiras,.
Seja ainda porque também temos um acesso por custa judicial baixa, temos juizados especiais onde se franqueia o acesso gratuitamente. Temos um sistema no qual o advogado pode entrar com as ações sem cobrar previamente seus honorários, ele ganha por êxito. Enfim, poderíamos discutir várias causas da judicialização de determinados setores, com características específicas para alguns. Não é só a saúde. Falávamos aqui do setor aéreo, do setor de seguro, do setor bancário. Tem processo de judicialização em vários desses setores, um fenômeno tipicamente brasileiro.
É mais ou menos como você tentar ali criar fatos para poder obter vantagens. Em alguns processos a gente vê isso nitidamente. E aí entramos no tema da litigância predatória, que envolve tanto o setor público quanto o setor privado.
Mas ministro, como é que faz para o judiciário não ser mais uma ponta de insegurança?
Então, eu ia te dizer isso. Não tem como gerir essa máquina se você não olhar para o Justiça em Números, e verificar quais são esses fatores. Alguns são nitidamente identificados. A área de saúde, a área de execução fiscal por parte do poder público, a área previdenciária, é nítido, basta abrir o raio x do Justiça em Números que, aliás, poucos países do mundo têm algo parecido.
Pois bem, como faz para contornar esse problema? Como são múltiplos os fatores que geram o problema, são múltiplas as soluções. Não tem uma varinha de condão que fala, bom, a partir de hoje está resolvido o problema da judicialização da saúde, que tanto problema gera. Gera problema para o plano de saúde, para o orçamento do governo.
Perto de 30 a 40% do movimento do sistema de saúde é do plano privado, é da saúde suplementar. Então, não tem uma varinha de condão. Temos que começar a trabalhar e isso está sendo feito.
O CNJ tem uma comissão que cuida dessa área de estabelecer políticas públicas, os tribunais avançaram com a criação dos NatJus, eles estão também prestando um serviço muito interessante. A inteligência artificial pode ajudar no mapeamento de demandas repetidas nessa área e identificar quais são elas. Agora mesmo a Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, num centro de pesquisa que eu coordeno, fez um raio x da judicialização da saúde, está apresentando essa pesquisa nesse momento, coordenada pelo ministro Antonio Saldanha. Então nós temos que primeiro identificar os problemas para poder ministrar os remédios, para poder entregar o remédio certo.
E é exatamente nesta fase em que estamos, com algumas medidas paliativas para impedir que haja um descompasso, um descontrole muito grande. Mas eu acho que o CNJ, ainda em curto prazo, vai poder editar algumas medidas que sejam adotadas pelos tribunais, pelo sistema de Justiça, para minimizar esses efeitos ruins da judicialização e controlar de uma forma melhor isso, investindo na solução pré-processual, por meio das agências reguladoras. Existe um sistema lá, falta lubrificação para ele, investindo também na identificação. E aqui eu volto àquela questão das demandas predatórias. Tem que separar o joio do trigo.
E como separar uma coisa da outra?
Você separa utilizando algumas ferramentas, como eu te disse, de inteligência artificial, de inteligência entre os tribunais, que vão mapeando essas ações que são reproduzidas aqui no estado X, no estado Y, sempre buscando alguma coisa ilegal, fora do contrato, um medicamento que não é possível de ser obtido fora da tabela da Anvisa. Então, tem como mapear e prevenir. O segredo está exatamente na prevenção, a atuação preventiva contra a litigância predatória.
Sobre litigância predatória tem no STJ uma discussão sobre o que pode fazer o juiz em relação a isso, além de uma discussão no CNJ sobre o assunto. O que o senhor defende para resolver esse problema?
Eu acho que essa é uma questão de política administrativa. Mais do que um precedente judicial que vai tratar de concessão ou não de alvarás para levantamento de honorários… É muito mais do que isso.
É uma política pública envolvendo o Poder Judiciário como um todo para tratar de procedimentos judiciais. Isso o CNJ pode e deve fazer. Eu acho que também é um caminho que o CNJ vai trilhar para todas as outras situações, padronização de mandados, padronização de funcionamento de todo o sistema dos processos digitais.
Então, por que não atuar também nessa área de demandas repetidas e que tem um caráter ilegal que visam um determinado benefício? Isso aí é possível de você detectar previamente, atuar preventivamente e impedir o uso predatório do Poder Judiciário. Ferramentas como inteligência artificial, como colaboração, cooperação entre tribunais, tudo isso pode ser utilizado numa política pública que envolva a participação de todos.
O senhor acredita então que decisão judicial permitindo, por exemplo, ao juiz pedir documento, não seria o melhor caminho? Acha que isso poderia gerar algum problema?
Eu acho que isso é controle judicial, controle da decisão que ele deu ali naquele caso específico. Nunca vai poder ter um efeito prospectivo, nunca vai poder resolver. Por mais que haja formulários, nos quais o juiz exige aquilo repetidas vezes, é sempre uma matéria que vai gerar outras consequências, recursos, perpetuação do problema ali. Não vai resolver. Nós não estamos falando de uma solução definitiva.
Solução definitiva é quando o CNJ estabelece padrões, quando os tribunais passam a seguir aqueles standards em que haja controle prévio e impedindo essa utilização predatória do judiciário. E é possível fazer isso. Nós já estamos trabalhando nessa minuta. Em breve, eu acho que o CNJ vai apreciar essa matéria.
Mas o STJ não necessariamente vota naquele processo..
Aquilo vai tratar de um tema específico, e no CNJ pode ser mais amplo.
Quando o senhor entrou, o senhor abriu um processo de correição na 13ª Vara de Curitiba. Primeiro, o que que o senhor achou e segundo como o senhor responde às críticas de pessoas que veem hoje como se fosse uma espécie de vingança contra quem investigou a corrupção?
É interessante isso. Bom, primeiro, deixa eu te contar que a gente alterou um pouco a dinâmica, alterou muito a dinâmica dessas inspeções, dessas correições ordinárias, que a gente chama aquelas que têm previsão no próprio regimento do CNJ e que são realizadas uma vez por ano em cada tribunal.
Eu inovei no sentido de que quem vai numa correição ordinária e avisa, com publicação de aviso, não vai para pegar uma irregularidade. Vai para ajudar o tribunal a construir soluções. O CNJ, a Corregedoria, na minha visão, é de que nós não fazemos parte do problema.
Somos nós quem vamos ajudar a solucionar o problema, não queremos criar mais problemas, então nós vamos ao tribunal com essa visão. Foi assim em todas as correições que eu fiz. Ao longo desses 2 anos, fiz visitas aos poderes constituídos, visito o governador, visito o prefeito, vou à OAB, vou aos tribunais do trabalho, visito as associações, associação de servidor, associação de magistrados, procuro interagir com a comunidade ali para poder me relatar o que está acontecendo.
Então, a visão é sempre entender quais são as dificuldades e ajudar na solução dos problemas. Foi assim ao longo desses 2 anos. Vimos quais foram as boas práticas e tentamos reproduzi-las, nacionalizá-las e o resultado foi extraordinário. Basta essa simples mudança cultural..
A gente viu o quanto que foi feito. Eu fazia também um trabalho de inteligência prévia, de verificar quais documentos que a gente pedia, quais as varas, quais os gabinetes que já estavam com problema. Nós íamos para fazer parte da solução e não aprofundar crises ou problemas. Isso foi muito bom. Nós fizemos até um manual, tem 2 coisas que nós fizemos que foi bem legal. Uma foi um manual desses procedimentos de correição, onde essas práticas que eu acabei de mencionar são invocadas.
Nós consolidamos também toda a legislação que existia na corregedoria. Tinha matéria esparsa de correição, de inspeção, de funcionamento do cartório. Eram mais de centenas de provimentos. Nós consolidamos tudo num ato só, fácil para consulta. Tem um da parte judicial e outro da parte extrajudicial, onde a gente encontra ali todos os regramentos, todos os normativos que tratam de todas as partes, mas da parte de correição em específico.
Então, essa foi a nossa linha de atuação. Quando tinha um problema mais específico, quando tinha alguma questão mais complexa, sistêmica, eu resolvia fazer uma correção extraordinária. Essa, sim, tinha um objetivo muito específico, que era fazer uma investigação mais detalhada sobre determinadas situações.
O que acabou acontecendo nessa parte disciplinar é que a gente atuou com firmeza, e realmente os números refletem isso. Nós temos aí uma quantidade de procedimentos abertos que qualificam, isso. Mesmo assim, perto de um número de juízes é um número infinitamente pequeno. Mas nós atuamos com rigor e isso acaba se espalhando. Se fizer coisa errada, vão te pegar.
O bom juiz, aquele que trabalha muito, que tem a sua responsabilidade, ele não quer conviver com o sujeito que que usa erradamente a toga.
Fizemos essas investigações mais detalhadas no caso da Bahia, no caso de Mato Grosso. Fizemos isso no caso do desdobramento da pandemia, sobre vendas decisões judiciais para respiradores, para medicamentos, em alguns estados da federação. Fizemos isso em Alagoas, no caso da Braskem, fizemos isso. Enfim, mencionei alguns exemplos. Não foram poucos, mas fizemos isso.
No caso do Paraná, da operação Lava Jato, quando eu cheguei na corregedoria, encontrei mais de 30 representações envolvendo os juízes e desembargadores que atuaram nesse processo. Tinha reclamação e representação no campo disciplinar para todo o gosto. Tinha contra todos os juízes e contra os membros da turma julgadora, envolvendo eles próprios como autores, um contra os outros. Alguns por parte de políticos, contra os juízes, réus contra os juízes, juízes contra desembargadores.
Então, era uma plêiade de reclamações e de representações, algumas já solucionadas em grau de recurso e a maioria delas intactas. E o que eu resolvi fazer? Olha, antes de a gente ver quem tem razão, o que que eu vou fazer com essas representações? Vamos passar a limpo esse processo para ver quem atuou mal, quem atuou bem, ou se todo mundo atuou bem ou se todo mundo atuou mal. E assim foi feito.
Eu requisitei apoio de peritos da Polícia Federal, alguns deles hoje na Interpol, inclusive gente muito gabaritada, atuei com o chefe da segurança do próprio CNJ, que eu peguei emprestado para poder me ajudar na correição. Selecionei juízes com expertise na área e fomos para lá. Eu mesmo fui algumas vezes. Fui ouvir os servidores todos que passaram pelo processo. Ouvi juízes, ouvi terceiros interessados, fiz o exame passo a passo de tudo, com uma lupa. Olhei toda a tramitação processual e constatei, em primeiro lugar, que era realmente um tumulto o processo.
Existia um processo mãe, onde se autorizou nesse processo mãe a realização de diversos atos que ficavam espalhados, eu não sei se de propósito ou não, por outros procedimentos. Eram inúmeros os apensos. Nesse processo mãe, ninguém tinha acesso, só o juiz e o procurador, ninguém mais. E nesse processo mãe é que se juntavam os acordos de leniência, os acordos de colaboração premiada, que eram homologados sem nenhum questionamento. Era o início dessa fase de acordo e leniência.
As cooperações internacionais eram feitas com outros estados, outros países, sem passar pelo Itamaraty. Enfim, eu encontrei um tumulto generalizado dos processos e, pior, com impactos no andamento dos atuais em tramitação, porque tinham muitos apensos que ficavam guardados sem nenhum andamento, sem nenhum julgamento, justamente porque o caos implantado nos processos era muito grande.
Esse foi o diagnóstico que nós fizemos, conversamos com o presidente do Tribunal, com a corregedora para impulsionar os processos, colocar uma uma gestão de servidores eficientes ali e resolvermos os problemas para a vara voltar a funcionar. Tinham júris do PCC ali parados, que não eram feitos, porque os processos estavam completamente tumultuados. E, efetivamente, conseguimos. Saneamos ali a vara. A vara voltou a funcionar adequadamente. Mas a minha obrigação é apurar quem agiu errado, se alguém agiu errado. Com base nesse exame e no laudo que me foi apresentado pelos juízes, pelo delegado, pelos peritos, nós constatamos a existência de inúmeros deslizes cometidos por alguns juízes e por outros magistrados da turma julgadora.
E com isso nós iniciamos os procedimentos disciplinares. Onde tem perseguição nisso eu realmente não sei, porque nós fizemos isso com todos esses casos de correição extraordinária que nós realizamos em diversas situações, envolvendo gente de primeiro grau, de segundo grau. Esse era um caso mais rumoroso, mas eu tratei de usar critérios técnicos. Eu não podia fugir da minha obrigação. E foi assim que eu agi, apurando e entregando ao Plenário do CNJ o resultado das minhas apurações. Com isso, o plenário entendeu que deveria abrir o procedimento e agora vai julgar se efetivamente houve falta funcional, quem cometeu, como cometeu.
Investigações de grandes casos de corrupção, em todos os lugares do mundo, geram reação da política e, depois elas são revistas com lupa. Com base no que o senhor viu, o senhor faz algum diagnóstico sobre a correção dos procedimentos da operação Lava Jato? E a outra face da pergunta é: um juiz que vai investigar a corrupção hoje, obviamente ele pode ficar com receio de fazê-lo, mas o que é que ele deveria fazer?
Eu discordo da sua premissa. Em muitos casos onde se apurou corrupção cumprindo a lei, nenhuma revisão aconteceu. Eu costumo dizer que só existe a indústria quando tem matéria prima. Então é a mesma coisa. Só há revisão quando se desborda da lei, quando se ultrapassa os limites da lei, quando se acha que é soberano o suficiente, que são os donos da verdade e que podem fazer tudo, inclusive ultrapassando os limites legais do procedimento.
Quando isso acontece é que há reação, não é claro? Nós juízes sabemos, cada um de nós sabe quando a gente está lá recolhido sozinho na nossa comarca ou no gabinete do desembargador, onde ele prepara os votos, ou no tribunal superior, é uma questão muito solitária ali que a gente enfrenta e por vezes cada um de nós é obrigado a se defrontar com situações ali onde se exige muita coragem, onde se exige muita determinação. E eu não vejo os juízes faltarem a isso.
O erro acontece quando se ultrapassa os limites, quando se usa a toga para fins políticos. Quer dizer, pendura num dia, no dia seguinte está atuando politicamente. Quando no uso da jurisdição se percebe, por exemplo, nesse caso, a homologação de um acordo de US$ 3,5 bilhões, em que o juiz não tenta verificar se aquele acordo está atendendo aos interesses públicos. Se ele não verifica se aquilo é destinado a uma fundação privada ou fruto de uma apreensão que ocorreu de valores em que houve uma operação de cashback. Me parece evidente que qualquer magistrado iria chamar a participação, botar aquilo em consulta pública, ouvir a União, ouvir os interessados, as vítimas.
É o mínimo de cautela que se poderia tomar numa situação como essa. E, além disso, nos julgamentos dos recursos, não é? Se se faz com base na lei, ninguém precisa temer nada. Eu sempre decidi questões de altíssima relevância e ferindo muitos interesses.
E, claro, contestação, crítica, faz parte do dia a dia do juiz. Agora dizer que isso resvala numa revanche, não. Quem descumpre a lei, seja ele apurando corrupção, seja ele sentenciando um assassino, para qualquer atuação, o magistrado é o garantidor do cumprimento da lei. Se ele ultrapassa, se ele usa aquilo com fins políticos, se ele quer ser um vingador e não um juiz, ele vai responder por isso. E acontece, sim, em algumas situações onde se acha onisciente, onipresente, em que não se deve prestar contas a nada nem a ninguém, achando que é autônomo. Quando se acha o único dono da verdade, da Justiça, isso acontece.
Eu acho que esses caras, quando acabam se sentindo donos da justiça, eles transbordam. Eles passam o limite. Eles se achavam donos do mundo. Quem é que ia contestar uma colaboração deles? Quem é que ia?
No STJ há discussões sobre mudança de regimento, mudanças mesmo, legislativas. Queria perguntar uma primeira para o senhor sobre isto. O senhor deve ter visto algumas propostas sobre relevância. Estabelecer uma relevância como premissa para se chegar ao STJ, o que o senhor pensa dessas propostas? O senhor defende alguma em específico?
Eu acho que a relevância é fundamental para o STJ. Assim como a repercussão fez desabar as causas do supremo. E não só isso, mas estruturalmente, o Supremo, a partir da repercussão geral, ganhou uma dinâmica diferente como Corte Suprema, mesmo com a peculiaridade brasileira de ser uma Corte Suprema que você acessa por ação direta e também por via de recurso. É outra questão que só acontece no nosso país.
Com o surgimento do STJ, criado pela Constituição de 1988, o caminho natural do STJ seria exatamente servir como ponto final das discussões relativas às questões federais. O que são os recursos extraordinário e especial? A rigor, a solução da causa, observado o duplo grau de jurisdição, acaba no Tribunal de Justiça ou no Tribunal Federal.
É ali que a questão individual termina. Só deveria subir o recurso para o Supremo no recurso extraordinário ou para o STJ no especial, quando você alega uma questão transcendente, qual é a questão transcendente. No caso do STJ, quando violou a lei federal e no do STF quando violou a Constituição. Esse é o caso que deveria subir. Mas no mecanismo que se criou por meio do agravo e por meio de outros recursos, a causa vai ao Supremo ou vai ao STJ de qualquer maneira.
Então, você tendo um filtro que não é só um filtro, é muito mais do que um filtro, é uma concepção do próprio sistema do tribunal, ele vai ter que ser, uma vez aprovada essa relevância, ele vai sofrer uma série de modificações, porque ele passa a ter um viés efetivamente de tribunal de precedentes. Aí sim ele vai cumprir o papel constitucional dele. Em que uma causa decidida pelo tribunal com profundidade vai dizer se aquela decisão feriu ou não feriu a lei e se feriu, ela tem a transcendência para atingir outros casos.
E aí entra também uma outra questão que nós havíamos conversado, eu vou voltar para tocar naquele ponto das demandas predatórias e mais do que demandas predatórias na própria avalanche de causas para o Judiciário. Na medida em que o sistema de precedentes vai avançando, que se estude isso nas universidades, que passe a ser entronizado, que esses precedentes qualificados passem a funcionar efetivamente, nós vamos reduzir o número de demandas, equacionar setores judicializados e transformar tribunais superiores não em reprodutores de decisões, mas em tribunais de precedentes, efetivamente falando.
Mas o senhor defende algum sistema que tem propostas de, aprovar a relevância e acabar com o repetitivo, por exemplo? E tem gente que defende a manutenção dos 2: para que se um tenha a relevância e que o repetitivo não necessariamente sirva para harmonizar os instrumentos.
Acredito que todas as ferramentas são válidas e elas não se afastam. Elas se completam, na verdade. Porque o repetitivo tem um efeito inicial que é o de travar a subida de recursos e de parar o julgamento na origem, então é muito positivo também, porque abre espaço para você ouvir os interessados, mobilizar a comunidade jurídica. Ele tem uma finalidade específica, presta um bom serviço, é uma boa ferramenta.
Se não fosse ele, eu te diria que o STJ teria explodido. E a repercussão, a relevância para nós, ela também vai ter outra finalidade, vai fazer com que um tema seja realmente decidido. Ela tem nuances mais específicas do que o julgamento objetivo do repetitivo. Então, se completam.
Há muitas críticas dos advogados de uma demora do tribunal de se abrir em relação ao plenário virtual. Qual a posição do senhor sobre essa questão?
Eu sempre defendi que o nosso modelo deveria ser igual ao do Supremo. Continuo defendendo a mesma coisa. Temos que ter tudo igual na parte procedimental ao julgamento virtual que o Supremo exerce.
Sobre reforma do Código Civil, o que é que tem chamado a atenção do senhor? Tivemos uma reforma recente. Precisa mesmo reformar de novo? Por quê?
Nossa reforma não foi recente neste código. Teve uma primeira reunião da comissão que elaborou o atual código civil há mais de 40 anos, quase 50 anos atrás. Era uma comissão formada pelo grande jurista Miguel Reale, com renome internacional, mas era uma comissão de 3 juristas homens, apenas, que elaborou a primeira minuta do projeto.
Esse projeto tramitou durante quase 50 anos no Parlamento. Nesse meio tempo, veio uma Constituição nova, veio um Código de Processo Civil novo. A sociedade evoluiu substancialmente em costumes, em tecnologia, não só no Brasil, mas no mundo todo. E há um esforço de várias legislações de Direito Civil no mundo para se atualizar. Tivemos um caso recente na Argentina, que criou um Código Civil novo. Alguns países estão mexendo, sobretudo na parte de contratos, sucessões, reprodução assistida, novas tecnologias.
E como você sabe, o Código Civil é o estatuto do cidadão. Ele tem uma relevância colossal para a vida em sociedade. Ele regula desde antes do nascimento da pessoa, passando pelo nascimento, passando pelo casamento, passando pela constituição de empresas, de sociedade, do emprego dele, passando pela sucessão dele, para além da morte da pessoa, regulando todos os contratos que ele faz em vida. Então, é realmente um diploma legal, um estatuto legal de suma importância.
Quem disse isso foi Napoleão. Ele falou: olha, eu não vou ficar conhecido pelos meus feitos militares, vou ficar conhecido pelo código civil que eu estou entregando. E de fato era uma forma que ele teve de se eternizar. E o que nós estamos propondo agora é uma atualização. Nós não estamos propondo a mudança do código, estamos atualizando e fazendo isso em linha com o que está acontecendo nos países mais avançados. Então nós estamos na parte geral, identificando ali quais os pontos que avançamos em direitos humanos, em defesa de princípios das pessoas naturais. Nessa passagem entre o analógico para o digital, o que é que deve ser resguardado. Nós estamos resguardando os neurodireitos, propondo que sejam observados. Hoje já se fala em criação em laboratório de órgãos humanos, menos o cérebro porque é o nosso data center.
Nós estamos propondo atualização na parte dos contratos. Quem hoje contrata fisicamente. Na maioria são contratos digitais, smart contracts. Na parte das empresas, estamos propondo a retirada de muitos pontos de burocracia das empresas para atualizar o formato atual das empresas,para trazê-las para a nossa realidade, permitir investimento, atrair investimento, fazer com que as empresas possam empreender,observando alguns princípios específicos do direito de empresa, que é diferente quando tem um consumidor vulnerável na relação contratual.
Na parte de sucessões, estamos inovando bastante com a proposta de retornar ao sistema do código civil anterior, que é a maior bússola hoje do mundo: ascendente e descendente como sucessores obrigatórios como os herdeiros obrigatórios.
Nós estamos inovando bastante com a proposta de criação de um livro próprio para o direito digital, em que vários países estão fazendo a atualização em diversos pontos. Nós concentramos num livro próprio, que vai dialogar com os outros outros livros do código. Então, ele traça regras gerais para contratos digitais, traça regras gerais para herança digital, que tem hoje muito conteúdo específico, que diz respeitos às senhas bitcoins, moedas digitais. Hoje tem um mundo aí por trás dessa questão da sucessão. Não são só fotografias nas redes sociais. Tem muito mais do que isso também. Também a regulação das redes sociais, nós propusemos isso dentro do livro de direito digital, regras de etiqueta no mundo digital.
Então, foi um trabalho, diria assim, extraordinário presidir essa comissão de juristas. Eu fiquei encantado com a qualidade de todos, o engajamento, com vários ministros do STJ, do Direito Privado que acompanharam todos os debates. Nós passamos seis meses discutindo, fizemos audiências públicas nos quatro cantos do país e num esforço concentrado de duas semanas praticamente conseguimos votar esse texto que acabou sendo entregue para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que foi quem teve a ideia de constituir a comissão de juristas e fazer a atualização do Código Civil.
E sobre a utilização pelos magistrados das redes sociais. O senhor acredita que esse assunto está resolvido?
Quando assumi a Corregedoria era próximo da eleição de 2022, com uma polarização muito intensa. E eu procurei me preparar para apresentar alguns projetos, para fazer algumas entregas ao longo desses 2 anos. Algumas nós fizemos efetivamente. Foi, como eu te disse, um aprendizado essa parte correcional que nós modificamos bastante a forma de fazer correições, inspeções. Criamos um manual para isso. Nós procuramos focar em alguns projetos de alcance para a sociedade, como foi a entrega de certidões de nascimento para as pessoas mais vulneráveis, aqueles que vivem sem teto, sem moradia.
Propusemos também, eu volto a dizer, desculpa fazer a propaganda, mas é que eu estou buscando dizer que houve uma preparação para a atuação. Tudo isso foram projetos gestados, bolados antes do início da nossa atuação na corregedoria. Então, usamos essa alavanca dos cartórios para fazer parcerias, boas parcerias, como foi o caso da doação de órgãos, o estímulo para a doação de órgãos num aplicativo, em que nós fizemos um convênio com os cartórios.
A regularização fundiária. Entregamos quase 100 mil títulos Brasil afora, nas favelas, inclusive. Quando você entrega documentos de propriedade, leva saúde, educação. Então, a gente sabe que teve um alcance muito grande dessas políticas públicas.
A única coisa que eu realmente não contava e que me pegou de surpresa foi essa exposição dos juízes nas redes sociais. Eu não imaginava o tamanho desse problema. Aliás, foram dois problemas que eu não imaginava. Eu pensava que com o fim da pandemia, todos voltariam para as suas posições antigas, com participação presencial e a presença do juiz na comarca na no seu local de trabalho. Isso deu um bocado de trabalho porque havia uma resistência ao retorno. Alguns se acomodaram com aquela postura e acabaram se afastando ali, mantendo julgamentos à distância, com um prejuízo muito grande para a jurisdição. Tivemos que atuar ali com firmeza, constituir uma comissão. Nisso, participou muito também o ministro Luís Filipe, do TST, que nos deu um apoio muito grande. Nós fizemos com que houvesse um retorno grande ali, mas a atuação foi rigorosa.
E a outra foi os desmandos que aconteciam nesse território que se imaginava livre das redes sociais, os juízes se manifestando como queriam ali, causando uma consequência muito grande. Porque cada vez que um juiz se manifesta, ou em público, ou na rede social, ele está externando a posição dele, quando a Loman diz que isso não é possível. E a rede social é a vida pública. Só que havia uma confusão e todos achavam que aquilo era um território sem lei.
E acabou que, durante a eleição, próximo à eleição, foi um enxame daquilo também. Nós tivemos que atuar com muito rigor. Baixei um provimento regulando essa participação, fazendo o que eu achei que era cumprir a lei. E houve alguma resistência inicial, mas acho que estabelecemos ali uma atuação rigorosa, mas eficiente. E aí a coisa agora está absolutamente normal. Compreendeu-se bem qual é o papel, qual é a posição, qual é o comportamento que deve manter o juiz, tanto na vida pública quanto na vida privada, tanto na rede social, tanto no virtual quanto no presencial, então foi um resultado positivo.
Como é que o senhor vê este fenômeno da mudança de paradigma, das relações de trabalho, de resistência, ou dificuldade de a Justiça do Trabalho lidar com isso?
Nessa questão do que a gente chama de economia de compartilhamento, vários problemas vão surgindo. Utilização de aplicativos para poder substituir a relação de trabalho ou criar novas formas de atuação, de contratação. Isso vem gerando uma série de problemas não só no Brasil, mas no mundo. Isso se chama de uberização,de pejotização. Não só para entrega de comida, para carro, pra tudo.
Então isso aí é ainda uma forma, nós estamos nos acomodando a essa nova realidade. Mesmo o direito, os estudiosos ainda não têm uma definição sobre isso. O que os juízes da Justiça do Trabalho mencionam é que cada caso é um caso, que tem diferenças mesmo entre, por exemplo, um motorista de um sistema de aplicativos qualquer, de aluguel de trabalho para realizar uma viagem ou um transporte.
Às vezes, o cidadão, ele é vinculado a um só aplicativo, a 10 ao mesmo tempo, trabalha particular, trabalha junto com um táxi. Então, cada situação demandaria um exame da prova e, com isso, não poderia haver, segundo essa corrente, uma uniformidade na aplicação dos precedentes.
E já para uma corrente de ministros do Supremo que vem aplicando essa regra, inclusive em reclamações, o STF já teria fixado a tese a respeito desse assunto e haveria aí uma recalcitrância. Eu acho que esse processo vem sendo construído e ainda não chegou a um termo. E está longe, eu acho, de uma atuação na esfera disciplinar, porque efetivamente isso não está pacificado na jurisprudência, e na forma de aplicação dos precedentes. Claro que quando o Supremo definir efetivamente, isso vai espraiar para os outros tribunais, isso vai ser cumprido, mas por ora, não.
A gente passou por desafios no Judiciário nesses últimos anos, desafios inclusive do sistema político. O Supremo ainda está vivendo esse processo, há muito questionamento sobre sua legitimidade, sobre sua postura e por aí vai. Que futuro o senhor vê e o que a gente pode esperar do Judiciário nesse futuro próximo, diante dessas contestações que, pelo jeito, vieram para ficar, inclusive de polarização na discussão do Judiciário. Como é que se resolve isso? E o que o senhor vê pela frente?
O Judiciário no Brasil ganhou um protagonismo que não tem mais volta. A vida social, política e econômica brasileira foi levada para dentro do Judiciário, que é o árbitro dessa solução, sem prejuízo da atuação do Executivo e do Legislativo. Mas o protagonismo do Judiciário é evidente. O que acredito que vai acabar acontecendo é aquilo que eu mencionei, de um movimento pendular que saiu da caixa-preta. Foi ao excesso de protagonismo, e nós vamos encontrar um meio-termo, em que haja uma participação do Judiciário muito relevante para restabelecer a paz social para ser mediador de diversos conflitos, solucionador desses conflitos, mas não um protagonista que exceda a sua participação em temas que não lhe dizem respeito. Então, eu acho que com esse meio-termo nós vamos encontrar o caminho natural das coisas, mas eu creio que esse momento atual ainda estamos no extremo e ainda não chegamos no ponto de equilíbrio.