Controvérsias na nova regulação dos jogos online

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A Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda publicou no último dia 31 de julho portaria sobre os jogos online, medida que já estava prevista em sua Agenda Regulatória, conforme a Portaria SPA/MF 561/2024.

Segundo a autoridade brasileira, a Portaria SPA/MF 1.207/2024 dispõe sobre “as regras dos jogos online e estúdios de jogos ao vivo, que fazem parte da modalidade lotérica de aposta de quota fixa”[1]. De acordo com seu artigo 3º, estão excluídos da noção de “eventual virtual de jogo online” as chamadas “apostas esportivas”, uma vez que estas são classificadas como jogos multiapostador[2].

Inicialmente, o art. 3º da Lei 14.790/2023[3] definiu como objeto da modalidade lotérica “apostas de quota fixa”, tanto os eventos reais de temática esportiva quanto os eventos virtuais de jogos online[4].

Embora as atividades funcionem de maneiras diferentes, a regulamentação federal seguiu o mesmo princípio. O art.4º da Portaria SPA/MF 1.207/2024 estabelece que as apostas de jogos online devem indicar, no momento da aposta, um fator de multiplicação para cada unidade de moeda nacional apostada, definindo o que o apostador receberá em caso vitória.[5]

Apesar de o tema já estar sendo amplamente debatido pela sociedade e pela mídia, observa-se uma escassez de críticas concernentes a esse tratamento uniforme. Em nossa análise, duas questões controversas surgem em decorrência dessa opção legislativa: (i) a incorporação de cassinos e atividades correlatas como serviço público; e (ii) a inadequação da política tributária.

Cassinos e atividades correlatas passam a ser serviço público?

A redação original do art. 29 da Lei 13.756/2018[6] estabelecia que as apostas de quota fixa, enquanto modalidade lotérica, são consideradas serviço público. Essa posição foi ratificada pelo STF no julgamento das ADPFs 492, 493 e ADI 4986.

Por essa razão, no âmbito legislativo e jurisprudencial, até a edição da Lei 14.790/2023, estava claro que as apostas de quota fixa se limitavam apenas a eventos ligados a um resultado externo, cuja realização não depende de nenhuma das partes envolvidas, para definir quais seriam vencedoras.

Em uma interpretação sistemática do art. 3º, inciso II, da Lei 14.790/2023 em conjunto com o art. 4º, caput da Portaria SPA/MF 1.207/2024, pode-se concluir que a inserção dos cassinos virtuais (a exemplo do “jogo do tigrinho” e outros jogos digitais, como roletas e blackjack) na noção de jogos online e, consequentemente, no conceito de “modalidade lotérica de apostas de quota fixa”, subordina-os ao regime jurídico dos serviços públicos, nos termos do art. 29, caput, da Lei 13.756/2018.

Mas esse não parece ser o melhor enquadramento normativo, uma vez que esse tipo de atividade não é aderente ao regime jurídico de Direito Público. Isso porque essas atividades são caracterizadas pelo controle total do agente operador sobre o resultado da aposta, colocando o consumidor em uma posição menos vantajosa em comparação com as modalidades lotéricas reais, como os concursos de prognóstico numérico, a tradicional loteria esportiva e as apostas de quota fixa baseadas em eventos reais, como jogos de futebol.

A política tributária é adequada?

Até aqui, está claro que há diferenças substanciais entre as apostas de quota fixa e os chamados jogos online, embora as normativas federais as tenham aproximado.

O art. 31, caput, da Lei 14.790/2023[7] define que as apostas de quota fixa, conforme descrito nos art. 3º, incisos I e II da mesma lei, serão tributadas pelo Imposto de Renda de Pessoa Física à alíquota de 15%. Considerando isso, a questão fundamental é se os jogos online (cassinos e atividades semelhantes) deveriam seguir a mesma política tributária aplicada às apostas de quota fixa baseadas em eventos reais de temática esportiva (art. 3º, inciso I). Em nossa opinião, a resposta é negativa.

Ainda que ambas as atividades econômicas sejam tributadas de acordo com a regra da seletividade[8], fato é que os cassinos virtuais operam de forma ainda mais desvantajosa aos consumidores. Essas desvantagens incluem incluindo transparência limitada em relação aos mecanismos dos jogos, acessibilidade excessiva que pode levar à dependência, e práticas de marketing potencialmente enganosas. Portanto, empresas que atuam com esse modelo de aposta deveriam suportar uma exigência de retribuição estatal mais alta.

Conclusão

Concluímos esse texto reafirmando que a regulamentação nacional publicada mostrou-se inadequada ao perpetuar o equívoco da Lei 14.790/2023. Essa inadequação gera efeitos negativos na estrutura regulatória originalmente projetada para as apostas de quota fixa baseadas em eventos reais de temática esportiva.

A esse respeito, acreditamos que a solução para as questões controversas expostas no texto inclui: (i) o reenquadramento dos cassinos e atividades correlatas como serviços privados, tolerados pelo Estado e tributados à luz da regra da seletividade; (ii) observando essa regra tributária, os cassinos virtuais deveriam suportar alíquotas substancialmente maiores em comparação à descrita no art. 31 da Lei 14.790/2023, restringindo-se, quanto à sua incidência, a atividade do art. 3º, inciso I, da Lei 14.790/2023.

[1] Ver em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2024/julho/ministerio-da-fazenda-publica-portaria-com-regras-para-jogos-on-line

[2] Parágrafo único. Para os fins desta Portaria, não se enquadram na modalidade de evento virtual de jogo on-line de aposta de quota fixa: III – os jogos multiapostador;

[3] Art. 3º As apostas de quota fixa de que trata esta Lei poderão ter por objeto: I – eventos reais de temática esportiva; ou II – eventos virtuais de jogos on-line.

[4] Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se: VIII – jogo on-line: canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras; IX – evento virtual de jogo on-line: evento, competição ou ato de jogo on-line cujo resultado é desconhecido no momento da aposta;

[5] Art. 4º Os jogos on-line a serem disponibilizados aos apostadores devem apresentar, no momento da aposta, fator de multiplicação para cada unidade de moeda nacional apostada, que defina o montante a ser recebido pelo apostador em caso de premiação. §1º O resultado do jogo on-line deve ser determinado por desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no seu sistema de regras.

[6] Art. 29. Fica criada a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional.

[7] Art. 31. Os prêmios líquidos obtidos em apostas na loteria de apostas de quota fixa serão tributados pelo Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (IRPF) à alíquota de 15% (quinze por cento).

[8] “(…) Trata-se na verdade de uma técnica de tributação, conforme a qual as bases de cálculo ou as alíquotas dos impostos sobre consumo devem desdobrar a característica da seletividade. Critério de diferenciação e especialmente de graduação de alíquotas, na maioria dos sistemas jurídicos ocidentais, é a importância ou a indisponibilidade do bem jurídico tributável para o consumidor final”. (FOSSATI, Gustavo Schneider. Tributação sobre o consumo: Teoria Geral sobre o Direito Tributário à luz de uma visão comparada entre Brasil e Alemanha. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023).

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