Transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo titular

Spread the love

A modulação de efeitos dos precedentes em matéria tributária tornou-se prática comum no Supremo Tribunal Federal nos últimos anos – somente nos últimos quatro anos, dezenas de teses tributárias foram alvo da técnica que, essencialmente, envolve a manipulação da eficácia da decisão para que o seu resultado alcance apenas os fatos futuros.

Embora se trate de um mecanismo aparentemente simples, a modulação de efeitos envolve, em cada caso, variáveis complexas, seja em decorrência dos fundamentos que a legitimam, seja em virtude dos objetivos buscados ao invocá-la. A pluralidade de situações fáticas impactadas pela decisão resulta, muitas vezes, em consequências práticas que se mostram, ao final, incompatíveis com os próprios objetivos pretendidos. Mais do que isso, em certas ocasiões, essas consequências se mostram, inclusive, contrárias aos próprios fundamentos adotados pelo tribunal para justificar a modulação.

Afinal, ao modular os efeitos das suas decisões em matéria tributária, tem o STF assegurado, na prática, estabilidade e segurança jurídica, tanto aos contribuintes quanto às fazendas públicas?

Caso emblemático de modulação de efeitos que parece se distanciar dos seus próprios objetivos diz respeito à Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 49, que reafirmou a jurisprudência histórica do Tribunal (assim como dos demais Tribunais brasileiros, até mesmo do Superior Tribunal de Justiça) no sentido de que não deverá incidir ICMS sobre as transferências interestaduais de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, por inexistir, nesses casos, ato mercantil.

O próprio tribunal, pouco antes, havia reafirmado sua jurisprudência sob o rito da repercussão geral (Tema 1099), fixando a tese de que “não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.

No entanto, instado a examinar a questão em sede de controle concentrado de constitucionalidade, fez-se necessário, por coerência e como solução de continuidade, declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Kandir, até então vigentes, que ainda previam, textualmente, a incidência do ICMS sobre essas operações

A decisão tomada em controle concentrado de constitucionalidade fulmina a própria vigência da norma, diferentemente daquela tomada em processos individuais ou mesmo em repercussão geral. Significa dizer que, após a decisão de mérito na ADC 49, os efeitos do entendimento jurisprudencial – que até então alcançava somente aqueles contribuintes que haviam buscado o Poder Judiciário – passaram a ser aplicados, indistintamente, a todos os contribuintes – mesmo àqueles que haviam optado por não questionar judicialmente a cobrança.

A diferença de ritos procedimentais em que proferida a mesma decisão (pela não incidência do ICMS nessas operações) acabou ensejando, portanto, uma distorção não vislumbrada inicialmente pelo tribunal: os contribuintes que não haviam questionado a cobrança tinham um bom motivo para tanto, pois se apropriavam de créditos de ICMS nessas operações e, eventualmente, obtinham vantagens com a fruição de benefícios fiscais relativos a esses créditos em determinados estados.

Havia, portanto, estruturas negociais construídas sobre o recolhimento do ICMS nessas operações. Tais contribuintes, embora soubessem que poderiam, caso tivessem interesse, buscar o Judiciário para suspender a cobrança, optavam por se aproveitar da presunção de constitucionalidade das normas e recolher o tributo para viabilizar uma sistemática de creditamento que lhes favorecia.

Cientes desse cenário (apesar da jurisprudência pacífica pela não incidência do tributo), os estados, por sua vez, possuíam o fundado receio de que tais contribuintes postulassem a repetição do indébito relativo ao ICMS recolhido nos últimos cinco anos. Isso, porque, com a declaração de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes, não mais poderiam optar por recolher o tributo para se valer de sistemáticas de creditamento. Esse fundamento – risco de grande volume de repetições de indébito – foi o único invocado pelo estado Requerente para postular a modulação de efeitos da decisão.

Foi nesse contexto que a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Kandir foi concebida: de um lado, buscou preservar a situação fática dos contribuintes que recolhiam o tributo por iniciativa própria, mesmo diante de jurisprudência consolidada pela não incidência do imposto; de outro, buscou-se assegurar aos estados que não fossem obrigados a devolver os valores pagos a esse título nos últimos cinco anos.

Significa dizer que, para os contribuintes, buscou-se o respeito à segurança jurídica objetiva que decorre da prática legítima de seguir a lei vigente, ainda que existisse orientação jurisprudencial contrária. Para as fazendas públicas, buscou-se preservar o equilíbrio orçamentário.

Não integrou os fundamentos da modulação, portanto, a busca pelo princípio da proteção da confiança, que diz respeito à segurança jurídica subjetiva, isto é, à expectativa legítima gerada nos jurisdicionados a partir do comportamento do Judiciário. O cenário jurisprudencial consolidado há décadas não estava sendo modificado pela decisão tomada na ADC 49, mas, pelo contrário, confirmado. Não havia necessidade de proteger os contribuintes que, à luz daquela jurisprudência, não recolhiam o ICMS nas operações de transferência. Não houve ruptura na situação jurídica desses contribuintes.

Extrai-se do voto vencedor proferido pelo ministro Edson Fachin, nesse sentido, que a modulação de efeitos da decisão teve por objetivo “preservar as operações praticadas e estruturas negociais concebidas pelos contribuintes, sobretudo, aqueles beneficiários de incentivos fiscais de ICMS no âmbito das operações interestaduais”.

Ocorre que, mesmo diante de todo esse cenário, o próprio STF, por meio de decisões monocráticas de seus Ministros, vem atribuindo interpretação literal à modulação de efeitos, obrigando contribuintes que ajuizaram ações judiciais posteriormente a 19 de abril de 2021 (muitos deles visando a solucionar problemas de retenção de mercadorias em barreiras fiscais) a recolher o imposto nas operações de transferência.

Ao assim proceder, o Supremo vai muito além dos fundamentos que respaldaram a modulação de efeitos: faz crer, surpreendentemente, que o ICMS sempre foi devido nessas operações e que apenas se tornou indevido a partir do exercício de 2024 – a despeito da sua própria jurisprudência firmada em repercussão geral em 2020 e da orientação histórica dos demais tribunais brasileiros.

É urgente e necessário que as atenções do STF se voltem ao problema a partir de um olhar sistêmico, atento ao processo histórico de formação do precedente e aos fundamentos que justificaram, pontualmente, a necessidade de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade na ADC 49. Há que se preservar a verdadeira extensão da modulação dos seus efeitos, sob pena de se desvirtuar os seus próprios objetivos.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *