Pressupostos constitucionais das MPs: urgência e relevância para quem?

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Após a edição da MP 1202, conhecida como MP da reoneração, no último dia útil de 2023, reavivaram-se os debates sobre a necessidade de observância dos requisitos de urgência e relevância na edição de Medidas Provisórias pelo chefe do Poder Executivo.  

A referida MP, entre outros aspectos, tratou da revogação dos benefícios do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), desonerou, parcialmente, a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento – para 17 setores produtivos – a partir de 1º de abril de 2024, revogou a alíquota reduzida da contribuição previdenciária aplicável a determinados municípios e limitou a compensação de créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado cujo valor total fosse inferior a R$ 10 milhões.

Em sede da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7587, o partido Novo levou a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF), sustentando, entre outros pontos, que a MP não preencheria o requisito de urgência. Por esse argumento, para além de mostrar violação ao primado constitucional que impede a edição de Medidas Provisórias como o mesmo tema na mesma sessão legislativa, o partido questiona qual seria a urgência do presidente da República em exarar norma sobre a temática da reoneração da folha de pagamento, quando o tema já haveria sido apreciado pelo Congresso Nacional dois dias antes, com a derrubada do veto e a promulgação da Lei 14.784/2023.

Sobre tal questão, percebe-se que não há um posicionamento consolidado do STF sobre a possibilidade e as hipóteses pelas quais se permita a intervenção da Corte Constitucional para análise sobre o cumprimento dos requisitos constitucionais de urgência e relevância. A própria Constituição Federal não se dedicou a definir o que de fato se caracterizaria como relevante e urgente, deixando assim a discricionariedade desta interpretação nas mãos do maior interessado, o presidente da República. O que, por óbvio, acarretou o uso desgovernado deste instituto desde a sua promulgação.

Por esse contexto, percebe-se que a Suprema Corte, ao longo dos anos, transacionou seu posicionamento sobre a temática de possibilidade de intervenção judicial, partindo tanto de uma ótica de inadmissibilidade de análise dos preenchimentos relevância e urgência quanto apresentando uma perspectiva de possibilidade excepcional de controle diante da hipótese de transgressão de poderes. 

Nesse sentido, nota-se que o STF já teve precedentes, como a ADI 1.130, em que o ministro Francisco Rezek asseverou que a análise dos requisitos de urgência e relevância na edição de Medidas Provisórias fugia ao crivo jurisdicional, sendo conceitos de um juízo político do governo, o qual apenas caberia a análise pelo Congresso Nacional. Não obstante, ao longo dos anos, assentou-se uma corrente majoritária de precedentes no sentido da possibilidade de intervenção excepcional pelo Poder Judiciário, mediante a constatação de evidente e objetivo abuso de poder pelo Poder Executivo, como sedimentado na ADI 7.232.

Por esse contexto, percebe-se a jurisprudência do STF assenta-se muito mais pela regra de impossibilidade de manifestação judicial quanto ao mérito da urgência e relevância da Medida Provisória, o que se alinha a um posicionamento da corte de cautela e zelo para com a separação de poderes,

Contudo, percebe-se que, quando a temática é analisada do ponto de vista do Poder Legislativo e Executivo, os requisitos de urgência e relevância tomam um delineamento muito mais político do que jurídico no sistema normativo brasileiro. 

Nesse sentido, por uma ótica política, acaba que a análise das Medidas Provisórias se volta muito mais ao cumprimento do atendimento dos diferentes interesses políticos dentro da sistemática política denominada de presidencialismo de coalizão do que propriamente a verificação acerca da relevância e urgência da edição da Medida Provisória. 

Assim, verifica-se que a governabilidade do sistema político brasileiro está intrinsecamente ligada ao uso das Medidas Provisórias para criação de janelas políticas de negociações informais entre os poderes Executivo e Legislativo.

Isso porque, sob uma ótica de estratégia política, o instituto da Medida Provisória traz maior celeridade e impõem ao Poder Legislativo o compromisso para com a apreciação da matéria proposta pelo governo. Pela Constituição da República de 1988, segundo o §6º do art. 62, aplica-se automaticamente o regime de urgência à proposição da MP, se não apreciada em 45 dias de sua publicação, sobrestando a pauta do plenário da Casa Legislativa que se encontra. 

Dessa forma, as Medidas Provisórias adentram o ordenamento jurídico como um instrumento estratégico político, pelo qual traz ao Poder Executivo uma maior governabilidade e poder de diálogo perante o Poder Legislativo. Com isso, o debate pauta-se muita mais a atenção para com o atendimento dos interesses dos atores políticos envolvidos na tramitação da MP do que, propriamente, com a construção de uma justificação plausível de relevância e urgência. 

Posto isso, diante da falta de um rigor técnico e aprofundado sobre o cumprimento dos requisitos de urgência e relevância pelos Poderes Executivo e Legislativo, bem como a impossibilidade de intervenção judicial sobre a matéria, a Medida Provisória é analisada como um mero sucedâneo legislativo, que apresenta vantagens de estratégia política, quando comparado à proposição de um projeto de lei ordinário por parte do Poder Executivo.  

Por uma análise quantitativa, a partir da promulgação da Emenda Constitucional 32/2001, houve a edição de ao menos 1.208 medidas provisórias, o que representa a promulgação de mais de 1 medida provisória por semana, ao longo destes 22 anos. Tal dado, por si só, nos demonstra que há uma clara subjetividade na constante demanda por urgência e relevância no país. 

O questionamento pode ser melhor elucidado pela análise da MP 1207/2024, recém-publicada, que tem como único intuito aprimorar o regime jurídico da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur). Assim, o questionamento se torna nítido – a referida questão demanda realmente os requisitos de urgência e relevância de fato, ou poderia ser tratada e apreciada a partir de um regime ordinário de tramitação de uma proposta legislativa comum.

Atualmente, percebe-se, portanto, que as Medidas Provisórias, antes de um instrumento jurídico excepcional de baliza entre os poderes, é uma ferramenta de estratégia política, utilizado, majoritariamente, para garantia governabilidade ao Presidente eleito. Como resultado, a estrutura política brasileira enfrenta novos desafios, diante de um grande número de medidas provisórias, que continuam sendo o principal meio pelo qual o Poder Executivo implementa suas políticas públicas. 

Nesse cenário, exsurge a problemática maior sobre o uso político e estratégico das Medidas Provisórias – a constante instabilidade normativa em todo sistema jurídico brasileiro, que acarreta gravames ao planejamento e à previsibilidade das políticas públicas, bem como à gestão responsável dos recursos públicos.

Com isso, entende-se que é incompatível com o preceito de dever de resguardo dos Poderes de República para com a segurança jurídica a habituação para com práxis de edição de Medidas Provisórias baseadas unicamente em estratégias políticas de negociação entre Legislativo e Executivo. Isso porque, enquanto vigentes, as MPs têm força de lei e impactam diretamente o cotidiano brasileiro. 

Com isso, retorna-se ao exemplo inicial da MP 1202/2023 que, com severos impactos em diversos setores econômicos, mostra-se, pelo atual cenário, ser um verdadeiro palanque de disputa e negociações políticas entre Executivo e Legislativo. Para algo que cumpriria os pressupostos de relevância e urgência, pelo cenário atual, o texto já foi parcialmente revogado pela MP 1208/2024, bem como já se negocia que a parte ainda vigente possa ser tratada em um Projeto de Lei.  

Nessa linha, como conclusão não exauriente ao presente debate, consta-se que o instituto da Medida Provisória vem sido desnaturado ao longo dos anos, utilizado como instrumento político de negociação de poder entre Executivo e Legislativo, bem como nunca tendo tido uma sedimentação concreta sobre o que são considerados os requisitos constitucionais de urgência e relevância para fins de sua edição.  

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