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A sanção faz parte do direito. Por longo do tempo, diversas teorias intentam explicar as razões pelas quais existe a necessidade de punir pessoas e também quem deteria o direito de aplicar uma punição. Em grau variado, o debate gira em torno da repressão, prevenção, segurança, disciplina, paz.
A legitimidade da punição, que não se confunde com a legalidade da punição, não é uma tarefa fácil do direito que tem sanções. O direito encontra legitimidade nas escolhas ideológicas e políticas feitas com base na Constituição Federal. Serão, então, os princípios inseridos nessa base ideológica que vão orientar o limite punitivo, os modelos repressivos e o jus puniendi.
As normas repressoras, segundo as quais o Estado exerce papel repressor punitivo, que ameaçam com sanção punitiva a conduta provocadora de resultado indesejado, estão previstas nos ordenamentos penal e administrativo, manifestando-se, classicamente, por meio do jus puniendi, característico da esfera penal e da prerrogativa sancionatória da Administração Pública.
A existência do jus puniendi administrativo está profundamente enraizada nos princípios fundamentais do Estado democrático de Direito, onde a Administração Pública não apenas age de acordo com a legalidade, mas também se sujeita aos limites e às garantias constitucionais. Esta sujeição é um reflexo direto do compromisso do Estado com a justiça e a equidade, assegurando que o poder sancionador não se transforme em um instrumento de arbitrariedade, mas sim em um mecanismo de correção e justiça.
Em sua essência, o jus puniendi administrativo reflete a necessidade de o Estado agir em defesa da coletividade, regulando comportamentos que possam comprometer a ordem pública e o funcionamento adequado das instituições.
A sanção administrativa deve ser vista como um instrumento não apenas de repressão, mas também de educação e prevenção. A aplicação de sanções deve buscar não apenas punir, mas também incentivar comportamentos futuros que estejam em conformidade com as normas jurídicas e os princípios de convivência social.
As diferenças e afinidades entre o direito administrativo sancionador e o direito penal têm sido estudadas pela doutrina ao longo dos anos, sendo diversas as correntes quanto à aproximação ou distanciamento entre estes dois ramos do direito, no que concerne aos fins, meios, intensidade das penas, e diferença de normas. Quanto à hierarquia entre as instâncias administrativa e penal, a regra é a independência que pode ser relativizada em situações em que a instância penal se sobrepõe à instância administrativa.
Sem dúvidas que há situações que a sanção administrativa pode ser maior que a sanção penal. A doutrina já até denominou tal fenômeno de “fraude de etiquetas”[1], que consiste em qualificar como administrativas, sanções que tenham cunho penal.
A Corte Europeia de Direitos Humanos utiliza repetidamente os critérios estabelecidos no caso “Engel e outros v. Países Baixos” (1976)[2] para interpretar os conceitos de “processo penal”, “acusação em matéria penal” e “pena”. Esses critérios, conhecidos como critérios Engel, são fundamentais para determinar se uma sanção administrativa pode ser considerada de natureza penal e, portanto, sujeita às garantias processuais previstas na Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Os critérios são: 1) qualificação legal da infração – a qualificação da infração sob a lei nacional é o ponto de partida, mas tem valor relativo. Isso significa que, mesmo que uma infração seja formalmente classificada como administrativa sob a lei nacional, ela pode ser considerada penal se outros critérios forem satisfeitos; 2) natureza da infração – este critério analisa se a infração tem uma “carga punitiva” (criminal charge). Uma infração será vista como penal se violar uma norma de caráter geral e tiver objetivos dissuasivos e repressivos, ou seja, se a sanção serve para punir e prevenir comportamentos futuros e 3) gravidade da sanção – a gravidade da sanção imposta é crucial. Sanções severas indicam uma natureza penal. Mesmo multas administrativas podem ser consideradas penais se forem substancialmente elevadas ou se tiverem consequências significativas para o indivíduo.
No caso Engel, a Corte EDH estabeleceu que a separação entre direito penal e administrativo não pode ser usada pelos Estados para evitar as garantias processuais previstas na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Portanto, sanções administrativas que cumpram esses critérios devem observar as garantias do artigo 6 da Convenção, que trata do direito a um julgamento justo.
Estes critérios foram aplicados em diversos casos subsequentes, como “Öztürk v. Alemanha” (1984)[3], onde a Corte considerou que as sanções administrativas com natureza punitiva devem observar as mesmas garantias processuais que as sanções penais. Outros casos incluem “Ramos Nunes de Carvalho e Sá v. Portugal” (2018)[4] e “Oleksandr Volkov v. Ucrânia” (2013)[5], que reafirmaram a aplicação dos critérios Engel na avaliação das sanções administrativas.
No Brasil, ainda não há um regime jurídico claro para o direito administrativo sancionador, oscilando a jurisprudência entre os princípios do direito penal e os princípios do direito administrativo. E isso evidencia, a título de exemplo, nos julgamentos da Reclamação 4.557 e do Tema 1199 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Quando do julgamento da Reclamação 4.557 o ministro relator Gilmar Mendes registrou que “círculos concêntricos de ilicitude não podem levar a uma dupla persecução e, consequentemente, a uma dupla punição, devendo ser o bis in idem vedado no que diz respeito à persecução penal e ao direito administrativo sancionador pelos mesmos fatos” no sentido de estender os efeitos à ação civil pública de improbidade de decisão que, em sede de habeas corpus, reconheceu a ausência de justa causa na esfera criminal.
Já quando do julgamento do Tema 1199, o STF entendeu que as normas mais benéficas da Lei Federal 14.230/2021 teriam efeitos retroativos de forma mitigada. Em relação à revogação da modalidade culposa dos atos de improbidade, entendeu o STF que essa norma é irretroativa, ou seja, não afeta decisões já transitadas em julgado e não se aplica durante a execução das penas. Contudo, a nova lei aplica-se aos atos culposos praticados sob a legislação anterior que ainda não foram julgados, devendo o juízo competente analisar a presença de dolo. Por fim, o novo regime prescricional introduzido pela Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se apenas a partir da data de sua publicação.
A importância da um regime jurídico para o direito administrativo sancionador é evidente. O poder sancionador da Administração Pública não se limita à mera aplicação de sanções, mas envolve um compromisso profundo com a justiça e a equidade, assegurando que as normas jurídicas sejam efetivamente observadas e respeitadas. Este poder não atua isoladamente. Ele está inserido em um complexo sistema de controle social que visa a proteção do interesse público e a promoção do bem comum.
O desenvolvimento de um regime jurídico específico também ajuda a evitar conflitos entre sanções administrativas e penais, promovendo uma abordagem integrada e coordenada. A integração dessas sanções em um sistema jurídico coerente e bem estruturado não só protege os direitos individuais, mas também promove a confiança e a legitimidade das instituições públicas.
O fortalecimento do direito administrativo sancionador por meio de um regime jurídico bem definido pode contribuir para a consolidação da segurança jurídica, proporcionando previsibilidade e estabilidade nas relações entre a Administração Pública e os cidadãos. E a capacidade da Administração Pública de aplicar sanções eficazes e justas é uma medida da sua maturidade e competência institucional.
[1] Expressão dada por Franco Bricola, mas utilizada por vários doutrinadores. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2014, 4ª ed., pág. 440.
[2] COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Case of Engel and Others v. The Netherlands (Application no. 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72; 5370/72)
[3] COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Case Öztürk v. Germany (Application no. 8544/79)
[4] COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Case Ramos Nunes de Carvalho e Sá v. Portugal 55391/13, 57728/13 and 74041/13 }
[5] COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Case of Oleksandr Volkov v. Ucrânia (Application no. 21722/11)