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Nos últimos dias, o ministro Flávio Dino aplicou duros golpes à capacidade do Congresso de ditar os rumos do orçamento da União. Primeiro, determinou, em decisão cautelar, que o Parlamento adote medidas para assegurar a transparência das transferências especiais de recursos federais batizadas de Emendas Pix (ADIs 7.688/DF e 7.695/DF). Na sequência, suspendeu cautelarmente a liberação de recursos aprovados por meio de emendas parlamentares impositivas até a implementação das referidas providências de transparência (ADI 7.697/DF).
As medidas cautelares basearam-se nas mesmas razões que já haviam derrubado as “Emendas do Relator”, do “Orçamento Secreto” (ADPFs 850/DF, 851/DF, 854/DF e 1.014/DF). A tese central: essas emendas são pouco transparentes e dificilmente fiscalizáveis, o que propiciaria a malversação dos recursos públicos por elas mobilizados. Daí as decisões do ministro Flávio Dino, que têm méritos inegáveis. Afinal, é condizente com a Constituição a imposição de parâmetros mínimos de controlabilidade e transparência ao orçamento federal.
Nada obstante, a preocupação republicana com o fluxo de recursos públicos não pode retirar o foco de outro debate igualmente relevante. Já há algum tempo, sucessivas reformas, em nível legal e constitucional, ampliaram a influência do Parlamento sobre o orçamento. Esse fenômeno tem como uma das suas principais características a atribuição de caráter impositivo à parte das emendas parlamentares ao projeto de lei orçamentária, o que torna cogente a sua execução pelo Poder Executivo. Com isso, deputados e senadores passaram a ter uma espécie de direito subjetivo a um quinhão do orçamento.
Essa nova realidade contrasta com o modelo presidencialista desenhado em 1988 e coloca em xeque o próprio funcionamento do presidencialismo. Por esse sistema, cabe essencialmente ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de, como regra, definir alocações orçamentárias e de autorizar ou não a sua execução, ainda que provenientes de emendas parlamentares.
A uma, porque, no nosso presidencialismo, é o chefe do Executivo quem responde pela boa ou má gestão de recursos públicos. É o presidente quem presta contas aos órgãos de controle; é ele quem tem responsabilidade fiscal; e é ele (ou ela) quem o eleitor médio entende ser responsável pelo sucesso ou não de um governo.
A duas, porque, no presidencialismo brasileiro, deve ser, também, o presidente quem lidera a agenda da Administração Pública federal. A agenda vem do Executivo. E o Parlamento é espaço essencial para discuti-la e aprová-la. Nesse processo, num regime multipartidário, o presidente precisa negociar e barganhar a criação de uma base (uma coalizão). E isso, historicamente, só tem se mostrado possível por meio de um conjunto de prerrogativas que abrangem a manutenção da chave do cofre nas mãos do presidente.
É com essa autoridade que a Presidência viabiliza o apoio de congressistas que dependem da liberação de recursos orçamentários para desenvolver os seus projetos eleitorais. O orçamento, nesse arranjo, é um dos pilares do que Sérgio Abranches batizou de “presidencialismo de coalizão”. Isto é: uma das “ferramentas de coalizão”, como explicam Carlos Pereira e Marcus Melo, que contribuiu para o sucesso democrático brasileiro (a despeito das dificuldades).
A expansão do poder do Congresso sobre o orçamento tem potencial de romper com essa sistemática e inviabilizar o modelo presidencialista no país. Primeiro, porque prejudica o planejamento e a coordenação da aplicação de recursos federais pelo Poder Executivo, submetendo-os a interesses dispersos sem maior preocupação com a agenda nacional. Segundo, porque enfraquece a capacidade da Presidência de utilizar o orçamento para a construção das coalizões necessárias à desafiadora governabilidade de administrações que não têm maioria no Parlamento.
Por tudo isso, é importante que a análise jurídica das Emendas Pix e outras espécies de emendas parlamentares impositivas vá além de uma avaliação sobre a adequação dos seus mecanismos de controle. É preciso avaliar mais que transparência. Sopesando as consequências em face do contexto político brasileiro, é necessário considerar quem, no presidencialismo de 1988, deve deter a chave do orçamento federal e, em última instância, decidir sobre a alocação dos recursos de um cobertor que é curto.