Por uma agenda decolonial na saúde digital brasileira

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O potencial da saúde digital para transformar sistemas de saúde é inegável, mas está ficando cada vez mais evidente que os benefícios desta revolução digital na saúde não serão distribuídos com justiça e equidade pelo mundo a se manter a dinâmica atual da inovação e do mercado da saúde digital. Lógicas colonialistas típicas dos tempos das grandes descobertas renascem agora, sob a cortina de fumaça da revolução digital moderna aplicada à saúde.

É preciso compreender de que forma a saúde digital poderá ampliar as desigualdades globais de saúde (e também, por consequência, as desigualdades nacionais de saúde). De um lado, deve-se atentar para as desigualdades de acesso às novas tecnologias digitais aplicadas à saúde.

De outro lado, é fundamental acompanhar de que forma as poucas empresas que controlam estas tecnologias digitais de ponta ao redor do mundo, sediadas em poucos países, usarão seu poder econômico e tecnológico para promover uma exploração colonialista dos recursos e matérias primas digitais disponíveis no mundo, especialmente nos países de baixa ou média renda.

Está ficando cada vez mais claro que a retórica e as práticas de digitalização dos sistemas de saúde podem consolidar e ampliar as desigualdades globais na saúde. A literatura científica global vem publicando cada vez mais textos sobre a colonialidade na saúde global. Artigo recentemente publicado por Sekalala e Chatikobo[1], da Universidade de Warwick (Reino Unido), no BMJ Saúde Global, apresenta um excelente panorama sobre o tema aplicado à saúde digital, que será sintetizado nesta coluna.

No contexto da saúde digital, o modelo capitalista de negócios vem deixando evidentes as lógicas coloniais aplicadas às novas tecnologias e conhecimentos a elas agregados. Na saúde digital, a infraestrutura e o capital estão atualmente concentrados nas mãos de poucas corporações multinacionais de tecnologia, em grande parte sediadas no norte global, que exercem enorme influência nas agendas de pesquisa, política, infraestrutura e implantação de tecnologias de saúde digital. Estas empresas multinacionais privadas exercem e estendem sua influência e poder sobre indivíduos, famílias, comunidades, sociedades e Estados. 

Colonialidade na saúde digital

A colonialidade digital se refere à violência sistêmica e estrutural da vida humana por meio de sistemas e designs tecnológicos digitais, criados para explorar o cotidiano dos indivíduos, acompanhando os locais por onde passam, as formas como se socializam e os tempos que despendem em suas atividades.

O primeiro grande campo de exploração colonialista na saúde digital centra-se na coleta, armazenamento e tratamento de dados pessoais dos indivíduos e de seus cotidianos, que passam a valer como mercadorias e matérias-primas “monetizáveis”. No contexto da saúde global, a capacidade de coletar, processar, armazenar e usar dados de saúde, portanto, torna-se uma forma de poder e violência por meio do reforço das hierarquias e estruturas existentes.

Apesar da missão universalizante da saúde digital, ela corre o risco de consolidar a colonialidade e beneficiar sobretudo conglomerados e organizações tecnológicas situadas no norte global. Os dados de saúde digital se tornam um ativo que beneficia instituições, fundações e corporações no norte global — às custas das emergentes do sul global. Essas entidades estrangeiras controlam e retêm direitos exclusivos e controle privado sobre ativos de saúde digital, como dados de saúde, produtos e ferramentas.

O segundo campo de atuação da colonialidade da saúde digital refere-se à criação de barreiras à entrada no campo da saúde digital para novos atores, especialmente do sul global. A lógica atual reforça os monopólios de mercado por instituições, fundações e corporações do norte global. Detentores de uma concentração de capital obscena e desproporcional, estas empresas multinacionais detém uma espécie de carta branca para restringir, expandir e controlar o mercado da saúde digital.

Nesse contexto, os Estados se enfraquecem e perde-se o espaço para a proteção do interesse público e da possiblidade de se considerar esses dados e tecnologias como bens públicos universais voltados à promoção do direito à saúde. Essa orientação mercadológica privada da saúde digital cria desequilíbrios de poder em favor das grandes multinacionais, comprometendo a capacidade das instituições públicas, especialmente no sul global, de garantir acesso à saúde digital, aprofundando ainda mais as desigualdades e vulnerabilidades

A colonialidade da saúde digital apresenta algumas características específicas. Destaca-se neste texto três delas: a) política de fronteira: fechada para humanos, mas aberta para dados digitais de saúde; b) colonialidade de infraestrutura por meio de software, hardware e nuvem; c) filantropia, ajuda, mercantilização e a distorção das agendas de saúde pública

Política de fronteira: fechada para humanos, mas aberta para dados digitais de saúde

A IA depende de fluxos massivos e irrestritos de dados e infraestruturas tecnológicas complexas para coletá-los, armazená-los e analisá-los. Os desenvolvedores que treinam modelos de inteligência artificial para a saúde necessitam de dados digitais de saúde e, cada vez mais, pressionam pela livre circulação de dados pelo mundo e por diferentes sistemas (incluindo dados pessoais sensíveis). Em contraste, a livre circulação de pessoas do sul global para o norte global está se tornando ainda mais difícil por meio de controles de fronteira mais rigorosos.

Colonialidade de infraestrutura por meio de software, hardware e nuvem

As infraestruturas de tecnologia digital, que incluem software, hardware e nuvem, são concentradas em poucas empresas multinacionais sediadas no norte global. Grandes corporações de tecnologia exercem hegemonia tecnológica por meio de modelos racialmente extrativos de apropriação e exploração da vida humana por meio de dados para ganho econômico.

Os aplicativos de saúde digital dependem de um ecossistema inteiro que é protegido por regras de propriedade intelectual e, embora haja uma retórica de software livre para desenvolvedores técnicos, como Java, C++ e Python, muitos desenvolvedores logo descobrem que precisam de software pago mais sofisticado para criar aplicativos sustentáveis. Assim, a promessa retórica de que todos podem obter acesso a essas ferramentas digitais e democratizar o desenvolvimento de aplicativos de saúde digital é uma falácia, especialmente em contextos do sul global.

Além disso, muitos países no sul global dependem do norte global para serviços de nuvem. Detentoras dos grandes servidores e até de satélites, a influência das grandes empresas de tecnologia se infiltrou nas operações governamentais do sul global, algumas das quais dependem de infraestruturas digitais externas, como por exemplo para o armazenamento de dados em nuvem. As principais empresas de computação em nuvem ainda estão sediadas no norte global, com a maioria nos EUA e na Europa. Isso significa que até mesmo empresas locais no sul global que usam aplicativos de saúde para fins locais dependerão de instalações remotas de armazenamento e backup.

Filantropia, mercantilização e distorção das agendas de saúde pública

A saúde digital vem crescendo exponencialmente não só pelo potencial benéfico à saúde, mas também por causa do seu potencial econômico e de lucros. A rápida evolução das tecnologias da saúde digital, os grandes instrumentos de financiamento e a lógica capitalista orientada pelo mercado estão remodelando as agendas de saúde pública. O mercado financeiro investe pesadamente em startups com o único propósito de obter os maiores retornos possíveis, que passam a ser priorizados em relação aos ganhos de saúde, distorcendo os objetivos e resultados da saúde pública advindos das novas tecnologias. O foco crescente no capital digital, que possui enorme custo ao sul global, consolida as desigualdades, estigmatizações e discriminações existentes e reforça as relações coloniais de dependência e dominância.

O mesmo fenômeno se vê na filantropia, já que alguns dos programas filantrópicos de saúde digital do sul global são financiados por doadores de organizações não governamentais internacionais localizadas no norte global. Essas organizações influenciam os resultados de saúde e também participam ou são cúmplices na manutenção da migração transfronteiriça de dados. Discussões sobre governança de dados permanecem fragmentadas e compartimentadas, permitindo que grandes corporações façam uso de dados de saúde por meio de infraestruturas e mecanismos de dados secundários, ignorando, portanto, leis e regulamentações existentes.

Por uma agenda decolonial para a saúde digital brasileira

Como se vê, os desafios da colonialidade na saúde digital são enormes para o Brasil.

Sekalala e Chatikobo propõem uma agenda decolonial para a saúde digital, por meio da qual acadêmicos e formuladores de políticas busquem recentralizar povos anteriormente colonizados do sul global em planos de saúde digital.

Segundo as autoras, a digitalização da saúde visa nivelar e fornecer soluções uniformes em todo o mundo, mas isso isso certamente está fadado ao fracasso, pois o desenvolvimento e o design de novas tecnologias precisarão se concentrar nas necessidades das comunidades locais. É preciso compreender o que estamos tentando resolver usando tecnologias de saúde digital. Existem perigos reais no desenvolvimento de produtos que buscam resolver problemas que não existem.

Por fim, e mais importante, é fundamental uma agenda global e nos Estados do sul global que vise a regulação adequada da saúde digital. A saúde das pessoas depende de estruturas regulatórias robustas que centralizem coletivamente os resultados de saúde, ao invés de fornecer produtos que são relevantes para um pequeno grupo de elites.

Como se pode perceber, o Brasil e a realidade da saúde digital no país inserem-se em um contexto colonial global que não pode ser desprezado na busca de soluções de saúde digital para os problemas de saúde brasileiros. O Brasil, com suas universidades e instituições de pesquisa, juntamente com o Sistema Único de Saúde (SUS), representam um espaço de inovação e pesquisa único, e os dados armazenados pelo SUS são de uma riqueza intangível.

Investir na busca de soluções tecnológicas nacionais e criar um ambiente regulatório seguro de governança de dados e de inovação em saúde digital são passos fundamentais para que possamos nos descolonizar no campo da saúde digital.

[1] Sekalala S, Chatikobo T. Colonialism in the new digital health agenda. BMJ Global Health 2024;9:e014131.

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