Redução de juros e promoção de direitos fundamentais

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Na última semana, voltou ao centro do debate nacional a repactuação das dívidas dos estados com a União. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, reuniram-se no dia 26 de março com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e um grupo de governadores para debater um novo regime de recuperação fiscal.[1] A situação não é nada simples: a dívida dos estados chega, no total, a R$ 740 bilhões – e quatro estados são responsáveis por 90% desse passivo.[2]

De acordo com Haddad, a vontade do governo federal é que o projeto de renegociação das dívidas dos estados com a União seja aprovado ainda neste primeiro semestre. São duas as propostas para viabilizar a renegociação: a primeira é que os estados possam oferecer ativos para abater suas dívidas.[3] Avalia-se, por exemplo, a possibilidade de o estado do Rio de Janeiro ceder à União créditos que possui perante a Petrobras, a fim de reduzir o valor de sua dívida e da taxa de juros aplicável.[4]

A segunda proposta foi batizada pelo governo federal de Programa Juros por Educação. Trata-se de uma troca benéfica para todos: os estados que vierem a aderir à proposta pagarão juros mais baixos, mas deverão, em contrapartida, investir em educação, mais especificamente na ampliação do ensino médio técnico.

De acordo com a proposta, a taxa de juros, que atualmente é de 4% a.a., pode acabar sendo reduzida para (a) 3% a.a., caso o estado aplique ao menos 50% da economia proporcionada pela redução dos juros na criação e ampliação de matrículas do ensino médio técnico; (b) 2,5% a.a., caso o investimento seja de 75% da economia; ou (c) 2% a.a., caso o investimento corresponda a 100% da economia.

A redução vigoraria entre 2025 e 2030 e, a partir de 2031, os estados que cumprissem as metas de matrículas receberiam redução permanente da taxa de juros. O Programa Juros por Educação inclui, ainda, acesso prioritário a crédito e ações adicionais para expansão do ensino médio técnico para estados que não tiverem dívidas com a União, ou tiverem dívida em patamares mais baixos.[5]

O intuito da proposta é viabilizar uma das metas do governo federal: atingir até 2030 o patamar de 3 milhões de alunos matriculados no ensino médio técnico. A meta se justifica. O estudo “Potenciais efeitos macroeconômicos com a expansão da oferta pública de ensino médio técnico no Brasil”, publicado em julho de 2023, demonstrou que profissionais com ensino técnico ganham, em média, 32% a mais do que aqueles que apenas completaram o ensino médio tradicional. O mesmo estudo demonstrou que o PIB brasileiro cresceria 2,32% se o país cumprisse a meta do Plano Nacional de Educação que tem como objetivo triplicar as matrículas para educação técnica no ensino médio.[6]

Vale registrar que, no Brasil, apenas 8% dos concluintes do ensino médio obtêm uma habilitação profissional, enquanto a média dos países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 37%. No Chile, o percentual é de 34%, no México, 34%, e na Costa Rica é de 20%.[7]

Para que o país alcance o objetivo de ampliar o ensino técnico, a colaboração dos estados é fundamental. Dados do Censo Escolar 2023, divulgados em fevereiro de 2024, indicam que as redes estaduais são responsáveis por 83,6% das matrículas no ensino médio, à frente tanto da rede privada, que é responsável por 12,8% das matrículas, quanto da rede federal, que é responsável por apenas 3,1%.[8]

No atual momento, em que está em curso uma saudável rediscussão do endividamento dos estados com a União, afigura-se muito oportuno que os debates não se centrem apenas sobre alívios financeiros, mas se dirijam, de modo mais amplo, à solução de problemas estruturais graves do país. Neste sentido, a assunção de compromissos com investimentos em educação produz um efeito que vai muito além da melhoria da economia dos estados, espraiando-se pelo aumento da renda per capita e pela redução das desigualdades sociais.

É promissora a associação entre a rediscussão do endividamento dos estados e a adoção de ações governamentais voltadas à proteção de direitos fundamentais. Além da educação – que deveria ser a prioridade número um do país –, benefícios econômicos poderiam ser reservados pela União aos estados que obtivessem a redução dos índices de violência urbana, conforme já proposto em outra sede.[9] O mesmo tipo de estratégia pode ser estendido a metas relativas à melhoria do atendimento na área de saúde, ao avanço do saneamento básico, à redução da violência de gênero, e assim por diante.

O Programa Juros por Educação já é uma importante semente, que busca endereçar a promoção de direitos fundamentais no âmbito de um pleito recorrente dos estados, pleito que costuma ser tratado historicamente como mera benesse da União, sob uma lógica de graças e favores, quando deveria ser visto sob a perspectiva de um projeto nacional de superação dos graves problemas que assolam a vida dos brasileiros.

A proposta apresentada pelo governo federal ainda precisa ser aperfeiçoada e detalhada, de modo que o projeto de lei enviado ao Congresso sobre o assunto contemple não só a descrição das metas de ampliação de vagas, mas também estabeleça padrões mínimos de qualidade do ensino, cronogramas para acompanhamento conjunto das ações públicas e controles sérios de resultado, preferencialmente por entidades independentes – tudo a fim de assegurar que uma iniciativa tão relevante não se converta em manipulação de índices, nem se perca entre alianças e desavenças políticas de cunho eleitoreiro.

Adotadas estas cautelas, os juros da dívida podem se converter em verdadeira riqueza para o país, muito além do seu significado puramente econômico.

[1]Pacheco: negociação para endividamento de estados deve ser agilizada” (Agência Senado, 26.3.2024).

[2] Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Para mais detalhes, ver “Haddad diz que enviará projeto com novo modelo de recuperação fiscal de estados em até 60 dias” (O Globo, 26.3.2024).

[3]Haddad: Governo quer aprovar renegociação de dívidas dos Estados no 1º semestre” (Valor Econômico, 27.3.2024).

[4]Haddad diz que Rio pode usar dívida da Petrobras em negociação com a União” (O Globo, 27.3.2024).

[5]Fazenda propõe reduzir juros da dívida de estados que ampliarem matrículas no ensino técnico” (G1, 26.3.2024).

[6] O estudo “Potenciais efeitos macroeconômicos com a expansão da oferta pública de ensino médio técnico no Brasil” foi realizado pelo Insper a pedido do Itaú Educação e Trabalho. A íntegra do estudo está disponível em: https://www.itaueducacaoetrabalho.org.br/acontece/ept-gera-renda-maior-e-pode-impulsionar-a-economia-do-pais

[7] Clarice Carnerio Martins et. al., Potenciais efeitos macroeconômicos com a expansão da oferta pública de ensino médio técnico no Brasil, São Paulo: Fundação Itaú para a Educação e Cultura, 2023, pp. 8-10.

[8]MEC e Inep divulgam resultados do Censo Escolar 2023” (www.gov.br, 22.2.2024).

[9] Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, O STF e as balas perdidas, publicado no O Globo em 22.3.2024.

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