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Na tradição portuguesa, o crivo é um trabalho manual que consiste na remoção intercalada dos fios de um tecido, criando uma espécie de trama de pequenos orifícios. Ensinado de geração a geração, como diria Machado de Assis1, ele serve para desfiar o pano, dando-lhe uma aparência de peneira. Daí vem a expressão passar pelo crivo, isto é, submeter-se a uma apreciação minuciosa e crítica sobre determinado assunto.
Nos próximos meses, o cabimento ou não de honorários no incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) deverá passar pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça (Embargos de Divergência no REsp 1925.959-SP). A decisão será muito importante para desfiar o tecido de insegurança jurídica que vem preocupando os operadores do direito.
Ao admitir o processamento do recurso no último dia 15 de março, o ministro Antônio Carlos Ferreira, trouxe à tona uma discussão especialmente relevante após a consolidação do modelo sincrético, que unifica as fases de conhecimento e execução do processo. Nele, várias questões passaram a ser tratadas como incidentes processuais, sendo decididas por decisões interlocutórias (onde normalmente não há condenação em honorários).
A admissão de Embargos de Divergência demonstra a necessidade de pacificar o entendimento da Corte Superior. Isso porque este recurso é cabível quando um órgão fracionário profere decisão em recurso especial que contraria o entendimento de qualquer outro órgão do próprio STJ.
O caso em questão discute se, em casos onde o incidente é julgado improcedente, deveria haver a condenação em honorários. Nele surge o reconhecimento de que os sócios foram incluídos indevidamente no processo pela parte que suscitou o IDPJ. Aqui está a questão central que será apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça ao esclarecer a divergência. Se o pedido fosse veiculado em um processo autônomo, na fase de conhecimento, não haveria dúvidas: o êxito dos sócios geraria uma sentença de mérito, com a respectiva condenação nos ônus da sucumbência.
O recurso admitido em março, fora interposto contra decisão da 3ª Turma que entendera nesse mesmo sentido. O acórdão, de relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, concluíra que “o indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo”.
Ocorre que, como bem destacado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, tal julgado contraria a posição da 4ª Turma (AgInt no AREsp n. 1.745.989/MG) que declarou a impossibilidade de fixação de verba honorária em caso semelhante.
O impasse se explica na medida em que o Código de Processo Civil de 2015, ao disciplinar o incidente nos arts. 133 a 137, não previu a condenação em honorários advocatícios. A omissão também se verifica no art. 85 do mesmo diploma pois o legislador, ao tratar das hipóteses de cabimento dos honorários advocatícios, não mencionou o IDPJ.
Essa foi a razão pela qual em junho de 2020 o STJ, ao julgar o Recurso Especial 1.845.536-SC, concluiu pelo descabimento da condenação nos ônus sucumbenciais. Segundo o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator para o acórdão, isso decorre da ausência de previsão legal no art. 85 § 1º do CPC. O mesmo entendimento foi aplicado no Recurso Especial 2.054.280-SP, julgado em abril de 2023.
Mais recentemente, contudo, o acórdão relatado pelo ministro Cueva entendeu que o que se busca com a instauração do incidente é a formação de um litisconsórcio, para que no pólo passivo passem a figurar terceiros. Sob esse prisma e diante de uma pretensão resistida, o incidente equipara-se à exclusão de litisconsorte do processo, dando ensejo à fixação de verba honorária.
O debate não é simples, requerendo uma análise que não se limite a uma visão binária. É possível uma interpretação sistêmica, a partir de uma leitura constitucionalmente válida do CPC, ou seja, que alinhe a concessão de honorários advocatícios com princípios constitucionais, garantindo a defesa técnica adequada. O artigo 85 do Código estabelece que a parte vencida deve pagar os honorários de sucumbência ao advogado da parte vencedora. Por sua vez, o parágrafo primeiro possui um rol, que se entendido como exemplificativo, indica casos em que é possível a fixação de verba honorária em decisões interlocutórias, tal como a dos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.
Negar honorários sob essas circunstâncias poderia comprometer o direito constitucional à ampla defesa, pois os honorários existem como um modo de assegurar a viabilidade da defesa técnica para aqueles que inicialmente não são partes na petição inicial, sublinhando a importância de interpretações que reforcem tais garantias fundamentais.
Além disso, a questão possui enorme impacto também na estratégia processual de milhares de execuções Brasil afora.
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica constitui uma maneira de incluir terceiros, pessoas físicas (ou jurídicas, no caso da desconsideração inversa), a fim de que respondam pelas dívidas na hipótese de não localização de bens no patrimônio do devedor. Até pouco tempo, como relatado acima, predominava o entendimento de que neste incidente processual não haveria a condenação. Assim, não haveria qualquer risco em se promover a tentativa de “responsabilização” desses terceiros.
Contudo, a partir do entendimento de que este incidente tem natureza de ação autônoma e suscita a condenação aos ônus de sucumbência, acende-se uma luz de alerta em relação à sua propositura. Afinal, caso ocorra a improcedência do pedido, o credor, além de não obter êxito na inclusão do terceiro, ainda terá que arcar com o pagamento de honorários do advogado da parte adversa.
Como o incidente normalmente é proposto em causas com grande repercussão econômica, o risco de condenação de 10 a 20% do valor pode desestimular inúmeros credores a buscar efetividade em suas execuções. Lamentavelmente, são extremamente comuns as situações em que os devedores desviam patrimônio e se valem de pessoas jurídicas apenas para ocultar bens.
Por outro lado, como já apontado pela doutrina, a ausência de condenação em honorários também pode “induzir ao encorajamento da instauração desarrazoada do incidente, que deve ser medida excepcional”2.
Em suma, qualquer que seja o teor da decisão que será proferida, ela servirá para desmanchar a teia de incertezas a respeito dos impactos financeiros do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
1 “Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado” (Machado de Assis, Páginas Recolhidas, In Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5 ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 615).
2 Conforme sustenta Raissa Di Carlo Carvalho Oliveira, “STJ passa a admitir honorários sucumbenciais em caso de improcedência do incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, In Migalhas, Questão de Direito, Coordenação Teresa Arruda Alvim e Maria Lúcia Lins Conceição, https://www.migalhas.com.br/coluna/questao-de-direito/394120/stj-passa-a-admitir-honorarios-em-caso-de-improcedencia-do-idpj. Acesso em 02.04.2024.