Retroatividade do ANPP e pacificação jurisprudencial de sua celebração

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O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) surge de maneira formal no ordenamento jurídico brasileiro com a substituição do art. 18 da Resolução 181, de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), até então a primeira previsão sobre o instituto.

A origem do negócio jurídico remete-se diretamente aos países anglo-americanos, nos quais, na contramão do direito brasileiro, prepondera a prática e a perspectiva do common law para os atores do direito, ou seja, o “direito comum” ou “costumeiro”. Assim, as legislações, os códigos e a própria norma constitucional não possuem o mesmo teor positivista dado no Brasil, servindo como espécie de guia principiológico que pauta as decisões judiciais, estas sim prevalecentes, porém, respaldadas muito mais nos precedentes construídos ao longo da atuação judiciária.

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Em outras palavras, os juízes detêm maior poder de deliberação em cada caso, não se restringindo estritamente à vontade do legislador.

Apesar do detalhe, em verdade o Brasil guarda importantes semelhanças com tais países, especialmente nas necessidades que ensejaram a criação do acordo.

Nos Estados Unidos, o plea bargaining (acordo que influenciou a formação do instituto brasileiro) surge no contexto de julgamentos numerosos, lentos e consequentemente custosos, com o objetivo de conferir não só mais celeridade aos processos, mas também um alívio ao sistema prisional, além de uma forma alternativa e eficiente de punição para delitos de considerável menor potencial ofensivo.

No Brasil, somado a isso, há a particular realidade do sistema penitenciário, no qual a superlotação, a carência de projetos bem-sucedidos de ressocialização e a ausência de fiscalização da dinâmica dos detentos e das organizações criminosas tornam os presídios, na prática, verdadeiras “escolas do crime”.

Nesse contexto, a Lei 13.964/2019, chamada de Pacote Anticrime, introduz o ANPP formalmente no processo penal, buscando uma alternativa que contribua para transformar essa realidade e que garanta a recomposição do dano provocado à vítima e à sociedade.

Desde então, a doutrina tem demonstrado variados entendimentos e questões sobre o instituto.

Apesar de relevantes decisões já terem sido proferidas desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabelece agora, com o julgamento do HC 185.913/DF, tese fundamental para sanar muitas dessas divergências, sobretudo com relação à retroatividade da aplicação do benefício.

Na ocasião, o plenário assentou tese de que compete ao membro do Ministério Público avaliar motivadamente se há requisitos ou não para celebração do acordo, afastando de uma vez discussões que ainda resistiam entre doutrinadores que defendiam ser o ANPP direito público subjetivo do réu, ou seja, não poderia o Parquet se negar a propor o acordo. Assim, na mesma direção da jurisprudência que vinha se formando nos últimos anos, reafirmou-se que é do Ministério Público a competência para oferecer ou não, tendo em vista as circunstâncias que o motivem.

O segundo ponto da tese firmada foi, com certeza, o que mais chamou atenção. Agora, o Supremo define que é cabível a celebração de ANPP para processos anteriores à publicação do Pacote Anticrime, mesmo que ausente a confissão do réu até o momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado. No sentido dos precedentes da 2ª Turma, na primeira oportunidade de pedir que teve a defesa:

[…] Em complemento, entendo que essa aplicação retroativa depende da provocação da defesa técnica, a qual, como toda faculdade processual, deve ser exercitada a tempo, sob pena de preclusão. Como, no caso do agravante, já havia sido ultrapassada a fase prevista em lei para seu oferecimento, pois já recebida a denúncia, a defesa deveria ter formulado o pedido de análise do ANPP na primeira intervenção nos autos após a vigência do art. 28-A do CPP, e, no caso em tela, assim o fez oportunamente (eDOC 6, p. 1-2), de modo que o presente agravo é mero inconformismo com o teor da decisão” (AgR no HC 217749, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 28.02.2024).

Como bem colocado pelo ministro Edson Fachin em decisões anteriores:

[…] a expressão ‘lei penal’ contida no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal deve ser interpretada como gênero. Dessa forma, a expressão deve abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado (como, por exemplo, aquelas relativas ao direito de queixa ou de representação, à prescrição ou à decadência, ao perdão ou à perempção, a causas de extinção de punibilidade) ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo (como, por exemplo, admissão de fiança, alteração das hipóteses de cabimento de prisão cautelar). Essas normas, quando beneficiarem o réu, devem retroagir, nos termos do dispositivo constitucional em comento” (HC 220249, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, DJe, 06.02.2023).

Em relação aos processos posteriores à publicação do Pacote Anticrime e já em andamento na data da proclamação do resultado deste HC pelo Supremo, foi definido que o órgão ministerial – se ainda não ofereceu ou não motivou o não oferecimento – deverá se manifestar sobre o cabimento na primeira oportunidade.

Num último ponto, para as ações penais que se iniciarem após a proclamação desse resultado, decidiu-se que “a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso”.

Sobre este ponto, o ministro Alexandre de Mores oportunamente questionou a ressalva, que abre a possibilidade de propositura mesmo após o recebimento da denúncia, o que, para o Ministro, vai contra a vontade do legislador incluída no art. 28-A do Código de Processo Penal, com o Pacote Anticrime.

Em resposta, o ministro Luís Roberto Barroso destacou que tal possibilidade só pode se dar mediante oferecimento pelo Ministério Público, excluída a hipótese de iniciativa por parte da defesa quando a denúncia já tiver sido recebida. Portanto, se ao longo da instrução o órgão ministerial se convencer que convém ANPP, não se desperdiça a oportunidade de atenuar o ônus sobre o sistema de justiça.

Neste ponto, restam dúvidas quanto à situação posta. Afinal, se após o recebimento da denúncia, por exemplo, houver uma reclassificação do tipo penal que possibilite o instituto, estará a defesa técnica impedida de requerer o benefício para o réu? Deverá permanecer inerte e torcer para que o membro do ministério note a possibilidade?

Embora controversa, a celebração de ANPP após o recebimento da denúncia, já vinha sendo admitida, em especial pela 2ª Turma do STF. O entendimento é de que, mesmo que o primeiro objetivo do negócio naturalmente preclua com o recebimento da denúncia, ou seja, o de evitar o início de um processo criminal, permanece “hígido o escopo material do instituto negocial, qual seja: a conservação do estado de inocência e da liberdade.” (HC 220249, Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, PUBLIC 06.02.2023)

Para além disso, veja-se que objetivo inicial mencionado não é em todo esvaziado, tendo em vista que a celebração antes do trânsito em julgado permanece, evitando o prolongamento do próprio processo com todas as suas fases recursais.

Por fim, os ministros consideraram importante deixar claro que, nos processos em andamento, para evitar novas remessas e consequentemente protelar os julgamentos, o ANPP deve ser proposto e celebrado na instância em que se encontrar a ação.

A análise do ANPP reflete as demandas do Estado contemporâneo, e desde sua introdução com o Pacote Anticrime, tem se mostrado uma ferramenta importante para mitigar os desafios enfrentados por tribunais e penitenciárias.

O STF, dessa forma, solidifica a compreensão sobre a natureza do ANPP, esclarecendo a aplicabilidade retroativa do acordo, a competência para propositura e a possibilidade de que a minimização do ônus sobre o sistema de justiça ocorra mesmo após o recebimento da denúncia. Assim, a decisão garante aos operadores do direito a segurança jurídica necessária para o uso da negociação e, sobretudo, dos mecanismos mais eficientes de aplicação da justiça.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 220249/SP. Processo penal. Acordo de não persecução penal. Crime de furto qualificado. Sentença prolatada antes da vigência da Lei 13.964/2019. Aplicação do art. 28-a do CPP. Norma de conteúdo misto. Retroatividade da lei penal mais benéfica. jurisprudência do Supremo Tribunal Federal . Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur474257/false>. Acesso em: 29 set. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 217749 AgR / MS. Constitucional, Penal e Processual Penal. 3. Acordo de Não Persecução Penal – ANPP. 4. Art. 28-A do Código de Processo Penal, redação dada pela Lei 13.964/2019. 5. No caso concreto, o pedido de aplicação do Acordo de Não Persecução Penal [ANPP] pela defesa se deu na primeira oportunidade de manifestar-se nos autos após a entrada em vigor do citado art. 28-A do CPP. 6. Agravo regimental não provido. Jurisprundência do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur496340/false>. Acesso em: 29 set. 2024b.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF define limites da retroatividade dos acordos de não persecução penal. Reportagem de Suélen Pires. STF, 18 set. 2024. Disponível em: <https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-limites-da-retroatividade-dos-acordos-de-nao-persecucao-penal/>. Acesso em: 30 set. 2024.

CARVALHO MOTA, L. Acordo de Não Persecução Penal e absprache: análise comparativa da justiça penal negocial no processo penal brasileiro e germânico1. Disponível em: <https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1904662/Ludmilla_de_Carvalho_Mota.pdf>. Acesso em: 29 set. 2024.

DIAS, Ricardo Gueiros Bernardes; FANTIN, Iago Abdalla. A negociação na Justiça Criminal no Brasil e o Plea Bargaining. E-Civitas, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 166-200, 2017.

UNITED STATES. Department of Justice. Plea bargaining. Offices of the United States Attorneys. Disponível em: <https://www.justice.gov/usao/justice-101/pleabargaining>. Acesso em: 29 set. 2024.

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