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De acordo com dados do Observatório de Pessoal, em junho deste ano, as pessoas negras representavam 30,5% dos cargos de alta liderança no Executivo Federal. O número ainda não reflete a representatividade dessa população na sociedade brasileira – formada, em mais da metade, por pretos e pardos.
Esses números podem se refletir diretamente na percepção que os cidadãos têm sobre o setor público. Para sete em cada dez brasileiros, a confiança nos serviços aumentaria se os ocupantes de cargos importantes do poder público fossem mais parecidos com eles, como mostrou uma pesquisa Datafolha, realizada a pedido do Movimento Pessoas à Frente.
O mesmo levantamento ouviu de 90% dos entrevistados que o aumento de mulheres nessas posições tornaria o serviço público melhor – o que, para 82% dos participantes, também valeria para a ampliação da diversidade racial.
Na tentativa de atender essa demanda da sociedade, já estão em curso ações para modificar a face atual dos serviços públicos. Exemplos são a adoção voluntária do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 18, que prevê metas de igualdade étnico-racial; e o decreto assinado em 2023 para fixar cota de 30% para negros em cargos de confiança na administração pública federal.
Mas o desafio vai além de conseguir preencher com mais pessoas negras e mulheres os cargos de liderança e de confiança na administração pública. Ainda é preciso reforçar políticas afirmativas, monitorar a ocupação dos cargos, oferecer formação continuada e fortalecer a atuação das redes. Isso tudo para proporcionar condições para que mais mulheres e pessoas negras possam não só alcançar cargos de poder, mas também permanecer neles.
“Precisamos dar mais celeridade no desenvolvimento dessas lideranças e a melhor forma de realizarmos isso é unindo esforços. Acreditamos na formação de líderes engajados e que representem a diversidade do Brasil para a construção de políticas públicas e iniciativas que promovam transformações positivas no país”, diz Alessandra Benedito, vice-presidente de Equidade Racial da Fundação Lemann.
Iniciativas em rede para impulsionar representatividade
Para contribuir com esse objetivo, a Fundação Lemann apoia iniciativas de desenvolvimento e formação de lideranças. “Somente com pessoas bem-preparadas, especialmente as lideranças, conseguiremos enfrentar e superar os principais desafios do país. É por isso que concentramos nossos melhores esforços cotidianamente, em conjunto com instituições parceiras”, diz Alessandra Benedito.
Mais precisamente, Alessandra se refere ao “Programa de Lideranças Negras na Gestão: um futuro diverso” e à “Rede de Mulheres Negras Líderes no Setor Público” – iniciativas realizadas com a Fundação João Pinheiro e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap), respectivamente. Para estes programas, a Fundação Lemann oferece apoio técnico, auxiliando na construção da estratégia, e financeiro.
O apoio dado especificamente a essas escolas – que são referência no país e têm foco em desenvolver a administração pública brasileira – para a formação de lideranças negras não é por acaso. Nas palavras de Alessandra, a intenção é “fortalecer uma atuação em rede, que gere mudanças nas políticas públicas e nas condições institucionais para que líderes negros, especialmente as mulheres, assumam e permanecem em posições importantes no setor público”.
Isso é estratégico na medida em que a presença mais equitativa de pessoas negras em posições de liderança pode, de fato, resultar em melhores serviços públicos que afetam diretamente a vida da população. Isso é o que constatou relatório do Núcleo de Estudos Raciais do Insper. Alguns exemplos práticos são a proposição de leis e políticas públicas de inclusão um maior engajamento político, aumento na participação da força de trabalho da população negra, e ampliação da confiança profissional em jovens negros.
Programa de Lideranças Negras na Gestão: um futuro diverso
Encabeçado pela Fundação João Pinheiro, o programa tem o intuito de fortalecer o exercício profissional de gestoras e gestores negros, apoiando-os no desenvolvimento de competências de liderança e gestão, para que eles possam atuar de forma inovadora e estratégica no setor público. Para essa formação, iniciada em 2023, puderam se inscrever pessoas negras, funcionários dos diferentes entes e esferas de poder, que ocupavam ou pretendiam ocupar posições de liderança no futuro.
Uma delas foi Rosinadja Morato, que mora em Sergipe e atualmente trabalha como supervisora na área de pesquisas econômicas no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como a inscrição deveria ser feita em equipe, ela se uniu aos colegas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); juntos formaram o time Mojubá Nordeste. A expressão Mojubá é uma “saudação de encontro”, proveniente do Candomblé que convida à compreensão, ao diálogo e à permanência dos encontros, pensamento que tem sinergia com o objetivo do programa.
“Nas aulas havia funcionários de nível municipal, estadual e federal. Víamos uma diversidade territorial enorme e cada um trazia uma perspectiva diferente. Ao unir essas pessoas, o resultado é a formação de uma rede que dá a dimensão do que é o setor público para além da bolha de cada um, além de trocas muito ricas”, relembra Rosinadja.
A supervisora já acompanhava as redes da Fundação João Pinheiro e ficou particularmente interessada quando soube que haveria uma formação voltada exclusivamente para pessoas negras. Segundo ela, a formação desenvolve as competências necessárias para que pessoas negras possam assumir cargos de gestão em suas empresas ou órgãos, já que muitas são as barreiras para essa promoção e a ausência de formação em liderança costuma ser utilizada como uma delas.
“Sabemos que historicamente o preconceito racial impede a ascensão de pessoas. Muitas são as desculpas para não te colocarem em cargos de liderança, mas nunca dizem que é porque você é negra. Essa proposta dá suporte e ferramentas para que nos destaquemos mais. É como se disséssemos ‘agora já temos pessoas negras preparadas para a liderança, então qual é a desculpa?’”, afirma Rosinadja.
Na visão dela, os professores do programa apresentaram ferramentas úteis para a gestão pública, conhecimentos atuais e uma conexão dos conteúdos de administração com a ancestralidade negra, o que aguçou seu olhar para as necessidades dos cidadãos e dos funcionários públicos.
Segundo Kamila Pagel, diretora da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, nos trabalhos finais dos times, questões relacionadas à ausência de dados sobre diversidade nas organizações públicas apareceram com frequência, o que evidencia que muitos problemas sociais são invisibilizados.
Essa perspectiva já vinha sendo observada pela instituição no diálogo com gestores negros, o que foi um dos motivadores para criar um programa exclusivo para pessoas negras.
“Queríamos promover estudos sobre estratégia, gestão de pessoas, do tempo, inovação, comunicação. E percebemos que não são todas as pessoas negras que têm o mesmo nível de aprofundamento conceitual em discussões raciais, ainda que eles mesmos as vivenciem. Então, para cada módulo e competência, pensamos em quais são as especificidades das lideranças negras”, conta ela.
Nesse contexto, um exemplo discutido no programa foi a diferença na percepção da fala: enquanto a assertividade de uma pessoa branca é vista como simplesmente firme, a mesma atitude em uma pessoa negra é muitas vezes interpretada como agressiva.
Rosânia Sousa, coordenadora geral da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, relembra que a principal queixa dos participantes sobre seu dia a dia de trabalho dizia respeito à sub-representação de gestores negros, principalmente de mulheres negras – o que, frequentemente, gera uma sensação de que aqueles cargos de poder não são para elas.
Um primeiro passo para mudar isso é a atuação conjunta, aumentando a visibilidade desses profissionais e a colaboração entre eles. “O programa tinha como um dos objetivos a criação de uma rede, e é perceptível o interesse dos participantes nisso. O programa acabou no final de maio e no começo de junho já houve uma reunião autônoma dos participantes para continuar as discussões. Hoje eles se veem com possibilidade de chegar e permanecer onde desejam”, diz Rosânia.
Uma segunda máxima é a necessidade de empoderar e desenvolver essas lideranças. “Aquela velha frase de que conhecimento é poder nunca esteve tão vibrante. Só é possível adentrar nos espaços de poder quando se constrói competências para isso. E há também a necessidade de fazer parte de uma rede de pessoas preparadas, que estão trabalhando juntas”, avalia Rosinadja Morato sobre sua participação no programa. “Graças ao programa, comecei a entrar em um universo muito maior do que o que eu conhecia. Tudo isso em um espaço de segurança e de afetividade para negras”.
Rede de Mulheres Negras Líderes no Setor Público
Como os próprios gestores notam em seu cotidiano, se a presença de pessoas negras na liderança da gestão pública é baixa, entre as mulheres negras os números são ainda menores.
Segundo estudo do Movimento Pessoas à Frente, em dezembro de 2023, homens brancos ocupavam 61% dos cargos de alta liderança nos ministérios, enquanto as mulheres brancas ocupavam 17%. Já entre os homens negros, o percentual caia para 14%, enquanto as mulheres negras atingiam somente 11%.
Para aumentar esse último número – e outros relacionados à participação de gestoras –, foi criada a Rede de Mulheres Negras Líderes no Setor Público. A iniciativa da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) é uma parceria com a Fundação Lemann, o Ministério da Igualdade Racial e o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. A rede faz parte dos programas Formação e Iniciativas Feministas e Formação de Iniciativas Antirracistas.
“Queremos dar força para quem já está em altos cargos no setor público e incentivar novas pessoas a chegar lá. A ideia é incentivar a pluralidade nas políticas públicas, pois quando não há diversidade no serviço público, percebe-se que não são elaboradas boas políticas públicas para a população”, diz Betânia Lemos, presidenta da Enap.
“Escutamos nos relatos das mulheres negras que, quando elas entram no serviço público, são poucas, na liderança menos ainda, sem pares, perdidas e atacadas. O racismo está na sociedade inteira, inclusive, evidentemente, no serviço público”, avalia.
Uma das iniciativas da rede foi o curso “Mulheres Negras Líderes”, que teve sua primeira turma em agosto de 2023. Em 2024, será realizado um novo curso intitulado “Dos desafios às potências de mulheres na liderança”. Na formação de 2023, as alunas eram mulheres que queriam ascender na carreira e influenciar no desenho e na implementação de políticas públicas. Essa também é a visão da Enap, que deseja transformar o Estado por meio de uma educação plural que resulte em equidade, justiça, bem-estar e oportunidades para toda a população.
Uma das alunas do curso foi a administradora e especialista em Gestão de Cidades Ana Paula Brito Martins da Silva, que atualmente trabalha como controladora na Fundação de Arte de Niterói. Durante os encontros, diz ter se surpreendido positivamente principalmente com a escolha da ministrante, Alexandra Loras, que é consultora, mentora, palestrante em eventos como o da ONU Mulheres e Women’s Economic Empowerment Global Summit.
“Com ela aprendi, sobretudo, que não vão nos abrir as portas, nós temos que nos posicionar para ocupar os espaços. A abordagem do curso fez com que as participantes interagissem, trouxessem suas dores diárias, mas também se sentissem bem e prontas para contribuir com o serviço público”, relembra Ana Paula. “Antes, eu pensava que sonhava muito alto, mas percebi que já cheguei aonde queria e agora posso sonhar muito mais. Na liderança, nós, mulheres negras, somos poucas, mas somos muitas a ponto de nos apoiarmos para podermos chegar juntas a outros lugares”.
Após participar da formação na Enap, decidiu utilizar suas habilidades para fortalecer outras mulheres. “O curso me motivou e estou desenvolvendo um projeto para incentivar empreendedoras negras da periferia do Rio de Janeiro. Quero compartilhar técnicas de administração, contabilidade e fundamentos de posicionamento de carreira. Estou desenvolvendo o projeto de modo independente e voluntário, mas futuramente vou buscar alguns parceiros”.
Em relação ao impacto do investimento na formação de pessoas negras para o serviço público, Alessandra Benedito, da Fundação Lemann, defende que “o fortalecimento dessas lideranças pode desafiar e transformar estruturas de poder tradicionalmente excludentes, criando um ambiente mais democrático e transparente. Isso não só beneficia as populações historicamente marginalizadas, mas também fortalece a democracia e a coesão social do país como um todo. É um sonho de país, em que o setor público é fundamental”.