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O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), na condição de relator das ADPFs 850, 851, 854 e 1.014, que tratam sobre o chamado orçamento secreto, proferiu, em 23 de agosto, despacho que determina o “pleno atendimento aos deveres da transparência e rastreabilidade na execução de emendas parlamentares incorporadas ao Orçamento da União”.
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O ato se refere, de modo específico, às emendas RP 8 (emendas de comissão) e RP 9 (emendas de relator), discutidas nas ADPFs. No item IV, o despacho aborda, especificamente, as contratações realizadas por organizações da sociedade civil (OSCs) com recursos provenientes dessas emendas parlamentares, determinado o seguinte:
No caso de organizações da sociedade civil, para que haja plena rastreabilidade e transparência dos processos de contratações realizados com recursos oriundos de emendas parlamentares, fica permitido somente: a) usar os sistemas de licitação integrados ao Transferegov.br; OU b) realizar cotações eletrônicas direto no Transferegov.br, que envia notificação a todos os fornecedores do SICAF.
São relativamente bem conhecidas as circunstâncias que envolvem as ADPFs, de modo que não parece necessário contextualizar o debate sobre o orçamento secreto. No entanto, naquilo que afeta o regime jurídico das parcerias com OSCs, a determinação do STF pode causar algumas incertezas.
Repasse de emenda parlamentar para OSCs não pode ser desprovido de formalidades rigorosas
Na forma da Lei 13.019/14, as transferências de recursos em favor das OSCs não ocorrem sem determinados rigores de formalização e tampouco sem uma destinação específica.
Mesmo quando diretamente beneficiadas, como ocorre nas emendas parlamentares (arts. 29 e 31, II), as OSCs só podem receber os recursos se cumprirem requisitos de habilitação e de capacidade técnica, devendo destiná-los a projetos ou atividades definidos em um plano de trabalho pormenorizado e previamente aprovado (art. 8º, art. 22 e arts. 33 a 39). O mesmo ocorre com a subvenção social prevista na lei 4.320/64 e em outras formas de transferência para OSCs que estejam expressamente indicadas em lei.
A formalização desses repasses, assim, se dá mediante a celebração de uma parceria, que poderá assumir a forma de termo de colaboração ou de termo de fomento, conforme o tipo de objeto a ser financiado com o recurso público (arts. 16 e 17). O instrumento de parceria, a partir de então, fica sujeito aos critérios de execução, monitoramento, avaliação e prestação de contas definidos pela mesma lei (arts. 45 a 69). Em resumo, ainda que haja diferentes maneiras de acessar o recurso público, a Lei 13.019/14 define, indistintamente, procedimentos rigorosos para a formalização e a execução das parcerias.
Além dos instrumentos previstos na Lei 13.019/14, há a possibilidade de celebração de convênios e contratos de repasse com OSCs beneficiárias de emendas parlamentares, o que depende da política pública envolvida. Embora não sejam tratados neste artigo, é certo que esses instrumentos exigem rigores análogos àqueles descrito acima, atualmente sob a regência do Decreto 11.531/23.
Contratações derivadas das parcerias não estão sujeitas à licitação em sentido estrito
As contratações realizadas pelas OSC com recursos da parceria não estão sujeitas à licitação pública, nos moldes definidos pela lei 14.133/21 e pelas outras normas gerais que disciplinam o assunto. O decreto 8.726/16, que regulamenta a lei 13.019/14 em âmbito federal, reafirma:
Art. 36. As compras e contratações de bens e serviços pela organização da sociedade civil com recursos transferidos pela administração pública federal adotarão métodos usualmente utilizados pelo setor privado. (grifou-se)
A única regra da Lei 13.019/14 que dispõe sobre contratações derivadas da parceria faculta o processamento de compras e contratações por um sistema eletrônico a ser disponibilizado pela administração pública:
Art. 80. O processamento das compras e contratações que envolvam recursos financeiros provenientes de parceria poderá ser efetuado por meio de sistema eletrônico disponibilizado pela administração pública às organizações da sociedade civil, aberto ao público via internet, que permita aos interessados formular propostas. (grifou-se)
A norma do art. 80 é dirigida à administração pública. Vale dizer: confere a opção de oferecer, quando da celebração de parcerias, os sistemas públicos de contratações para o uso das OSCs no emprego dos recursos repassados. No parágrafo único do mesmo artigo, faculta-se, inclusive, a utilização do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf), mantido pela União, pelos demais entes federados, o que permite, em tese, a ampliação da competitividade nas contratações realizadas pelas OSCs.
Sujeição das contratações derivadas de emendas aos sistemas públicos de licitação pode representar problemas jurídicos não avistados pelo STF
Pela determinação do STF, as contratações realizadas por OSC com recursos oriundos de emendas RP 8 (emendas de comissão) e RP 9 (emendas de relator) passarão a ser processadas por sistemas de licitação ligados ao Transferegov.br ou precedidas de cotações eletrônicas dentro da aba específica da plataforma que envia notificação a todos os fornecedores do Sicaf.
Vale ressaltar que esta exigência do STF envolve todas as formas de repasse, não se limitando às previstas na Lei 13.019/14 (o que inclui convênios e contratos de repasse).
Ocorre que sob o regime da Lei 13.019/14, atualmente, apenas os pagamentos realizados pelas OSCs devem ser realizados por meio da plataforma Transferegov.br. A minuta padrão de parceria[1] estabelecida pela Advocacia Geral da União (AGU) à luz da Lei 13.019/14 e do Decreto 8.726/16 não impõe que as contratações sejam processadas por meio da plataforma sob as formas indicadas alternativamente pelo STF. Através da Transferegov.br são realizados e registrados, aparentemente, apenas os pagamentos das despesas previstas (vide Cláusula Nona).
De fato, não passavam de 20 os procedimentos de cotação de preços em andamento em uma consulta realizada à plataforma no dia 12 de setembro de 2024 (por meio do “Acesso Livre”, disponível a qualquer cidadão). No mesmo dia, os termos de colaboração e de fomento celebrados com OSCs somavam milhares de instrumentos vigentes dentro da Trasnferegov.br. Prevalece, assim, ao que tudo indica, o fluxo previsto pela minuta da AGU (realização e registro de pagamento por dentro da plataforma).
Assim, a determinação do STF poderá causar uma assimetria indesejável. Isto porque tão somente as contratações realizadas por OSCs beneficiárias de emendas parlamentares do tipo RP 8 (emendas de comissão) e RP 9 (emendas de relator), ficarão sujeitas às soluções indicadas (sistema público de licitação ou cotação prévia via Sicaf).
As contratações realizadas por OSCs que disponham de recursos de emendas parlamentares individuais e de quaisquer outras fontes do orçamento federal, seguem, em princípio, um processamento diverso e mais simplificado ‒ e, eventualmente, menos transparente, se considerado o critério adotado pelo STF para esse objetivo. Não parece uma boa solução sob nenhuma ótica.
Evidentemente, haverá injustificável quebra da isonomia entre as OSCs. A circunstância de serem algumas delas beneficiárias de determinado tipo de emenda não pode, por si só, acarretar uma obrigação diferenciada e mais complexa ou mesmo ‒ o que é pior ‒ uma prévia suposição de suspeita ou inidoneidade. Lembre-se que a parceria deverá ter sido antecedida de verificação dos requisitos de habilitação e impedimentos da OSC, que são rigorosos o suficiente para afastar entidades envolvidas no mau uso de dinheiro público.
Outro ponto de atenção envolve a viabilidade do processamento de contratações privadas, pelas OSCs, através de sistemas de licitação pública ou mesmo pela aba de cotação de preços disponível no Transferegov.br. Esta exigência poderá, eventualmente, dificultar ou até impedir o cumprimento da norma que assegura às OSCs, em seus contratos com terceiros, os métodos usualmente utilizados pelo setor privado (Decreto 8.726/16, art. 36). Ou seja, é preciso que os sistemas sejam devidamente preparados para que as contratações utilizem parâmetros diversos do que aqueles que norteiam as licitações públicas.
Em outras palavras: deve ficar claro que a determinação do STF, no bojo das ADPFs, visa ampliar a transparência das contratações e não a submissão das OSCs ao regime público licitatório, em sentido estrito. Nesse sentido, a jurisprudência da própria Suprema Corte esclarece, em ao menos dois julgados, que a licitação pública não é uma regra extensível às entidades do terceiro setor quando manejam recursos públicos (ADI 1864/RP e ADI 1923/DF).
Considerações finais
Em 2023, o governo federal retomou a agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). Foi constituído o Conselho Nacional de Fomento e Colaboração (Confoco) e reformulada, em parte, a regulamentação federal da Lei 13.019/14. Nesse sentido, a questão da transparência e da rastreabilidade das despesas poderia ser objeto de avaliação e debate pelo Confoco, a partir da determinação do STF ‒ que, pressupostamente, exigirá providências por parte dos órgãos concedentes.
De fato, parece oportuno divisar a exigência de ampliação da transparência ‒ que deve ser continuamente buscada e aperfeiçoada ‒, da imposição de regras ou sistemas incompatíveis com o regime jurídico das OSCs. Ademais, a plena rastreabilidade das despesas realizadas por OSCs deveria ser assegurada em todo e qualquer instrumento de repasse, seja regido pela Lei 13.019/14, seja pelas demais normas que disciplinam parcerias sociais, através de plataformas adequadas.
[1] BRASIL. Advocacia-Geral da União (AGU). Termo de Colaboração. Brasília: AGU, mar. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/cgu/cgu/modelos/conveniosecongeneres/termo-de-colaboracao-marco-2024.pdf. Acesso em: 12 set. 2024.