A Constituição não é um pacto entre iguais, mas deveria ser

Spread the love

É comum lermos ou ouvirmos que a Constituição é um pacto entre iguais. Eu mesmo ensino nas minhas aulas de Direito Constitucional na UFPR ou na UnB que a nossa Constituição de 1988 é um pacto entre iguais, pois fruto de um processo constituinte amplo, democrático, com a pluralidade que marcou e segue marcando a nossa sociedade.

Tivemos não apenas políticos, militares, homens brancos, ricos ou bem posicionados na sociedade, escrevendo a nossa Constituição. Também tivemos trabalhadores, mulheres, indígenas, pessoas negras, escrevendo a nossa Constituição. E isso nos dá a impressão de que a Constituição, de que a nossa Constituição de 1988, é um pacto entre iguais. Mas ela não é.

Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

É verdade que tivemos um processo constituinte amplo, plural e democrático. E que, olhando bem de perto, a despeito dessa amplitude, pluralidade e democracia que marcaram nosso processo constituinte, jamais firmamos um compromisso entre iguais. Desejamos que tivesse sido assim. Insistimos dizendo que foi assim e que é assim – um pacto entre iguais. Nunca foi. E não tem sido.

A nossa Constituição foi elaborada majoritariamente pelas pessoas mais bem posicionadas na sociedade, mas com a presença e o tensionamento daqueles que nunca estiveram na condução do nosso país e que sempre sofreram, historicamente, opressões (trabalhadores) violências (indígenas, mulheres), exclusões (pessoas negras, pessoas com deficiência). Elas fizeram parte do nosso processo constituinte – é verdade e ainda bem!

Mas não estavam, como nunca estiveram, em pé de igualdade para dizermos que a Constituição é um pacto entre iguais. E ainda assim, mesmo vindo da margem, da exclusão, contra a violência, rompendo preconceitos, conseguiram fazer da nossa Constituição a promessa de um pacto entre iguais. Mas foi uma promessa. E segue sendo.

A exclusão que parecia mitigada na nossa Assembleia Nacional Constituinte apenas parecia mitigada pela presença e escuta de quem não se via e de quem não se ouvia. E, nesse processo, nem sempre foi fácil se fazer visto e ouvido. O discurso do hoje acadêmico imortal da Academia Brasileira de Letras Ailton Krenak mostra a dor e a violência enfrentadas para se fazer ver e ouvir. Ele se pintou com tinta preta de jenipapo enquanto discursava, revoltado e triste, pelo recuo da Constituinte na proteção dos povos indígenas.

Os povos indígenas seguem excluídos, violentados, tendo de provar que o que foi conquistado na Constituição de 1988 – tratamento igualitário, protetivo, respeitoso, com representação direta e oitiva obrigatória deles – ainda é uma rara realidade. Aliás, o STF, que deveria guardar a Constituição, zelar por esse compromisso entre iguais, proteger as minorias das violências majoritárias, entendeu que o melhor que se pode fazer pelos indígenas – a minoria mais aviltada do país – é mediar uma negociação entre eles e quem os mata, quem os quer expulsos de suas terras indígenas, ou os quer sem terra alguma (ADC 87/ADI 7582).

Não temos sido capazes de dar uma resposta satisfatória nem mesmo quando há unanimidade na barbaridade que assolou as pessoas e os municípios atingidos pelas tragédias de Brumadinho e Mariana – os maiores e mais mortíferos desastres ambientais da nossa história –, que seguem sem reparação adequada quase dez anos depois.

A justiça anda lenta e com prestações a conta-gotas. E ainda há quem defenda que os municípios não podem buscar a reparação integral a que têm direito, e nem acionar as companhias multinacionais nos países estrangeiros em que as mineradoras têm sede e negociam suas ações na bolsa.

Esses municípios litigam aqui no Brasil, mas também litigam atualmente no exterior – buscando concretizar a nossa Constituição, e não violá-la como alegam as multinacionais que exploram aqui e mandam seus lucros para lá. E agora esses municípios e essas pessoas precisam demonstrar exatamente isso no STF, que buscar reparação integral significa poder litigar aqui e também no exterior (ADPF 1178). E que isso em nada viola a soberania nacional, nem prejudica o federalismo ou o Judiciário brasileiro.

Ao contrário, concretiza os compromissos que firmamos em 1988 e coloca em evidência as desigualdades existentes entre mineradoras gigantes e pequenos municípios que têm de lutar com as armas que possuem (litígio estratégico com financiamento estrangeiro via fundos, por exemplo) numa batalha para que aquilo que está na Constituição valha e transforme a realidade de uma tragédia que não tem volta, mas que tem futuro possível.

Apesar disso, e com tudo isso, a Constituição é o que temos de melhor. Ela é o melhor pacto, o melhor compromisso, que pudemos acordar e que podemos, e devemos, manter. A nossa Constituição não nega o passado violento, excludente, desigual, autoritário, antidemocrático, que marcou a formação do nosso Estado e da nossa sociedade.

Convém então lembrarmos disso. Dessa marca que funda a nossa Constituição e que a caracteriza. Convém sermos sinceros com a teoria constitucional fundacional, com a filosofia política e suas ideias de origem da sociedade e da constituição, e diante daqueles que ainda insistem em dizer que a Constituição é um pacto entre iguais afirmar: não. A Constituição nunca foi um pacto entre iguais, mas deveria ser. E lutaremos para que seja na sua concretização, dia a dia.

Seguimos acreditando e lutando pela Constituição e com a Constituição. Para que diante de cada violência, com a Constituição e pela Constituição, possamos evitar ou reparar a violência. A cada exclusão, para que tenhamos inclusão. A cada desigualdade verificada, a correção almejada – no varejo dos processos subjetivos, ou no atacado do combate às desigualdades estruturais.

A cada lei, ato normativo ou decisão antidemocrática, o apontamento da inconstitucionalidade e da violação desse compromisso que nos une, da violação da dignidade das pessoas que, a despeito das diferenças, possuem idêntico valor moral entre si. E isso por si só deve bastar.

Se a descrição da realidade nos mostra um cenário duro e diferente do compromisso constitucional que firmamos, por outro lado, a prescrição normativa do dever-ser constitucional nos impõe um caminho de liberdade, igualdade e dignidade a ser trilhado.

A Constituição é o compromisso que nos une como comunidade e que, com ela e por ela, nos permite buscar sermos livres e iguais. Não somos, mas queremos ser. E lutaremos por isso, com a Constituição e pela Constituição. A Constituição como horizonte e como ponte.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *