Algumas considerações sobre IA generativa e regulação da concorrência

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Com o crescimento acelerado da inteligência artificial generativa, as principais autoridades de concorrência da Europa, Reino Unido e Estados Unidos emitiram uma declaração conjunta, abordando as preocupações emergentes relacionadas ao impacto da tecnologia nos mercados globais.

Esse movimento reflete um entendimento compartilhado de que, apesar das diferenças legais e culturais entre as jurisdições, os desafios apresentados pela IA transcendem fronteiras, o que exige uma resposta coordenada e robusta para garantir que a inovação tecnológica não comprometa a concorrência justa e a proteção dos consumidores.

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Essa iniciativa da Comissão Europeia, da Autoridade de Concorrência e Mercados do Reino Unido (CMA), do Departamento de Justiça dos EUA e da Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC) marca um esforço para mitigar os riscos inerentes ao desenvolvimento e implementação dessa tecnologia com potencial transformador.

Um dos principais pontos de atenção apontados na declaração é a possibilidade de um controle concentrado de insumos críticos para o desenvolvimento de IA, como chips especializados, capacidade de processamento e dados em grande escala. Tais recursos correm o risco de serem monopolizados por um pequeno grupo de empresas, criando barreiras à entrada e limitando o surgimento de inovações disruptivas.

Em 2022, Chris Miller já destacava, em Chip War[1], a forma como a batalha pelo domínio da produção de chips semicondutores havia se tornado uma questão estratégica entre as grandes potências, demonstrando que o controle desses insumos pode moldar a dinâmica global de poder.

Essa perspectiva reforça a preocupação das autoridades de concorrência sobre uma questão que permanece relevante no cenário atual: o controle desses chips, considerados essential facilities pela doutrina antitruste, observado o seu potencial de desequilibrar a cadeia de valor e prejudicar significativamente a concorrência.

Outro aspecto discutido na declaração é a capacidade das grandes empresas digitais de ampliar ou fortalecer seu domínio nos ecossistemas de IA. Já favorecidas por sua posição consolidada nos mercados digitais, essas empresas podem usar a tecnologia para reforçar ainda mais seu poder, não apenas protegendo-se de inovações disruptivas, mas também moldando essas inovações a seu favor. Essa dinâmica poderia restringir a capacidade de novos players desafiarem o status quo, perpetuando o domínio de algumas poucas empresas e limitando a diversidade de opções disponíveis para consumidores e organizações.

Ademais, as autoridades alertam para os riscos associados a parcerias e investimentos estratégicos entre grandes nomes do setor de IA. Embora em alguns casos esses arranjos possam não prejudicar a concorrência, há o perigo de que sejam usados como ferramentas para cooptar ameaças competitivas, consolidando ainda mais o poder das empresas estabelecidas e moldando os resultados de mercado a seu favor, muitas vezes em detrimento do interesse público.

Os riscos associados à IA vão além das questões de concorrência, pois podem impactar diretamente os direitos dos consumidores. De acordo com a declaração, a tecnologia pode ser utilizada de maneira enganosa ou injusta, levantando preocupações sobre a privacidade, a segurança e a autonomia dos indivíduos.

Diante desse cenário, as autoridades de proteção ao consumidor destacaram seu compromisso em vigiar atentamente as relações de consumo, reforçando a necessidade de que os consumidores sejam plenamente informados sobre quando e como a IA é empregada nos produtos e serviços que utilizam.

Além de identificar riscos e preocupações, a declaração também estabelece três princípios basilares, que estão diretamente relacionados às ameaças identificadas, para guiar a regulação da IA de maneira a promover a concorrência e a inovação. O primeiro é a importância de práticas comerciais justas, que assegurem que todas as empresas, independentemente de porte ou poder de mercado, tenham a oportunidade de competir em condições equitativas.

O segundo destaca a interoperabilidade entre diferentes sistemas e produtos de IA como uma condição essencial para fomentar a inovação e garantir que novas tecnologias possam coexistir e competir de forma equilibrada. Embora esse princípio vise facilitar a colaboração entre modelos e plataformas, ampliando o potencial inovador, ele não considera os desafios significativos que os Large Language Models (LLMs) enfrentam nesse contexto. Devido às suas arquiteturas exclusivas, dados de treinamento e algoritmos fechados, os LLMs não são facilmente compartilhados ou integrados entre diferentes plataformas, o que limita a interoperabilidade e dificulta a colaboração tecnológica.

O terceiro pilar é o da liberdade de escolha para empresas e consumidores, evitando que práticas de bloqueio ou controle excessivo por parte dos grandes players limitem a capacidade de escolha entre diferentes produtos ou serviços no mercado. De acordo com as autoridades, isso significa examinar atentamente os acordos realizados entre as empresas estabelecidas e aquelas recém-chegadas, assegurando que esses arranjos não contornem as regras de fusão e nem confiram aos grandes players influência ou controle indevidos.

A declaração conjunta das principais autoridades de concorrência marca um passo importante no enfrentamento dos desafios impostos pela IA, ao mesmo tempo em que traça princípios para orientar a regulação dessa tecnologia emergente. Embora ainda restem dúvidas sobre como esses princípios serão implementados na prática, a mensagem central é clara: as autoridades estão comprometidas em trabalhar em conjunto, aproveitando suas experiências anteriores em mercados digitais para antecipar e mitigar os riscos associados à inteligência artificial.

Dada a natureza global e interconectada das tecnologias emergentes, como é o caso da IA, torna-se evidente que as soluções para esses desafios transcendem fronteiras nacionais, reforçando o papel da cooperação regulatória internacional como parte essencial desse processo[2].

Somente por meio de uma colaboração coordenada envolvendo diferentes jurisdições e atores será possível criar um ambiente regulatório harmonizado que incentive a inovação, proteja os direitos dos consumidores e garanta uma concorrência justa. Este esforço conjunto reflete a importância de lidar com questões tecnológicas complexas de forma global, garantindo que os benefícios da IA sejam amplamente distribuídos e que o poder não se concentre nas mãos de poucos.

[1] MILLER, Chris. *Chip War: The Fight for the World’s Most Critical Technology. New York: Scribner, 2022.

[2] CARNEIRO, Giovana. Cooperação regulatória internacional: desafios e estratégias para regulação dos dados pessoais e da inteligência artificial. Florianópolis: Emais Editora, 2023.

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