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A indenização a particulares ocupantes de terras reconhecidamente indígenas retornou ao debate público na última semana, após a celebração de acordo no Supremo Tribunal Federal (STF) entre integrantes da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério dos Povos Indígenas, do Governo de Mato Grosso do Sul, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), representantes de fazendeiros e lideranças indígenas.
A mesa de negociação foi instaurada a pedido da União em mandado de segurança, que tramita há 19 anos na corte, impetrado por particulares contra o decreto de homologação da Terra Indígena Ñanderu Marangatu. No dia 28 de março de 2005, o decreto publicado pelo presidente da República declarou a terra de posse permanente do povo Guarani e Kaiowá.
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Ao longo de quase duas décadas, os efeitos do decreto permaneceram suspensos por liminar proferida em julho de 2005 no mandado de segurança. Porém, somente com a homologação do acordo é que foram restabelecidos integralmente os efeitos do decreto presidencial que convalidou a demarcação da Terra Indígena Ñanderu Marangatu. Entre o pedido da União, formulado no dia 20 de setembro deste ano, e a decisão que referendou o acordo, transcorreram apenas oito dias.
O acordo prevê o pagamento da União aos não indígenas o valor de R$ 27,8 milhões a título das benfeitorias, além de R$ 102 milhões pela terra nua. O estado de Mato Grosso do Sul deverá ainda efetuar depósito judicial no valor de R$ 16 milhões, também a serem pagos aos ocupantes da terra indígena.
Em contrapartida, após o pagamento das benfeitorias, os proprietários se comprometeram a sair do local em até 15 dias corridos. Após esse prazo, a comunidade indígena finalmente assumirá integralmente a posse de seu território tradicional, depois de décadas de espera.
A solução apresentada pelo poder público no caso concreto e acolhida pelo STF, sob escopo de pacificar conflitos na região entre indígenas e não indígenas, desafia o estabelecido pela Constituição Federal em seu § 6º do artigo 231. Isso porque são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas. Segundo dispõe o texto constitucional, caberia ao particular tão somente a indenização relativa às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
Em outras palavras, a União e o estado de Mato Grosso do Sul estão dispondo de mais de R$ 100 milhões em recursos públicos para indenizar aqueles que não teriam direito, pela leitura taxativa do artigo 231 da Constituição Federal, a receber indenização pela terra nua. Por se tratar de patrimônio da União, não haveria de se admitir que o Estado pague por uma terra que já lhe pertence.
A Corte Constitucional de nosso país avançou na interpretação do artigo 231, que define o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de ocupação tradicional indígena. Em setembro de 2023, no julgamento de repercussão geral do Recurso Extraordinário 1.017.365, conhecido também como Tema 1031, o STF fixou 13 teses que delineiam/sintetizam a posição da corte sobre o tópico. No entanto, o julgamento não foi concluído, pois restam embargos de declaração ainda não apreciados.
Isso não afasta, contudo, o dever de observância às teses fixadas, visto que foi expressamente rechaçada pela corte a possibilidade de indenização no valor da terra nua de forma indiscriminada.
Vale lembrar que houve um intenso debate após ponderações feitas pelo ministro Alexandre de Moraes quando da fixação das teses no Tema 1031. A corte levou em conta a preocupação do ministro em resguardar pessoas de boa-fé que obtiveram títulos ou a posse de áreas que serão alcançadas pela demarcação de terras indígenas. Numa busca pela pacificação dessa questão, dentro dos preceitos e parâmetros constitucionais, o ministro Cristiano Zanin apontou um caminho para a solução da questão: a indenização pelo evento danoso, previsto no § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, que deve ser analisada caso a caso.
O ministro Dias Toffoli, na ocasião, foi assertivo quanto ao tema, conforme consignado em trecho de seu voto: “considero que a indenização pelo valor da terra nua deve recair tão somente sobre títulos de propriedade dos imóveis que tenham sido indevidamente titulados, a fim de evitar a regularização (e, mais gravoso, a indenização) de situações precárias como as de posseiros”.
É urgente e necessário que a União possa estabelecer o procedimento, definido pelo STF, para aferir sobre as indenizações, no qual serão apurados os direitos e os valores de sua aplicação. Sem esse procedimento devidamente organizado, há grave risco de premiação financeira a grileiros, invasores e até mesmo de criminosos e severa insegurança jurídica e econômica.
A tese prevista no item V do Tema 1031, que conformou os debates travados sobre a matéria e calibrou o entendimento da corte, foi acolhida por 9 dos 11 ministros do Supremo. Ali foram estabelecidos pela mais alta corte do país critérios objetivos para verificar se o particular fará jus ao direito indenizatório por evento danoso. Porém, tais parâmetros não foram aplicados no acordo de Ñanderu Marangatu.
Como se vê, o acordo que reacendeu a atenção para a indenização de não indígenas foi uma solução dada para um caso específico, de forma excepcional, que não deve gerar precedentes, pois se afastou do que foi definido pelo STF no Tema 1031.
Todavia, o caso em questão lança luz sobre alguns aspectos que denotam a urgência da prestação jurisdicional pelo STF. É indiscutível a necessidade da corte concluir o julgamento do Tema 1031, como também deliberar definitivamente sobre a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, que trata da demarcação das terras indígenas e institui o marco temporal como critério de aferição da tradicionalidade da posse indígena.
Protelar os julgamentos que tratam da matéria fomenta o conflito possessório e as mortes de indígenas, impondo às partes o aceite de arranjos que passam ao largo de cumprir a Constituição Federal ou reparar a violência a que foram submetidos os povos indígenas, na perspectiva de finalmente obter algum pronunciamento da corte.
Embora se reconheça a importância da solução dialogada, ela não deve se sobrepor à principal função atribuída ao Supremo Tribunal Federal pela Carta da República, isto é, a guarda da Constituição Federal.