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Dizem que a história se repete. Uma vez como tragédia, outra como farsa. Depois de 11 anos das denúncias do analista da NSA Edward Snowden sobre a espionagem digital de líderes políticos e empresas brasileiras pelo governo dos Estados Unidos e algumas de suas empresas globais de tecnologia, um novo ato desta história vem se desenrolando agora.
Com os mesmos atores, mesmo enredo, mas, de forma inédita em 55 anos, com um desfecho imprevisível. Esqueça bilionários interessados em controlar politicamente países em desenvolvimento para expandir seus negócios e ter acesso a recursos naturais estratégicos.
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Olhando além da espuma, é importante conectar alguns pontos, coletando evidências para demonstrar que existe uma engrenagem mais complexa em movimento na qual o Brasil é um dos laboratórios mais evidentes. Paira sobre todas as crises envolvendo a agenda digital um arranjo geopolítico com iniciativas que buscam ampliar o predomínio dos conglomerados transnacionais tanto do ponto de vista econômico quanto da doutrina de segurança nacional dos Estados Unidos e seu histórico controle unilateral da internet.
Desde 2013, porém, muita coisa mudou. Tanto em termos da forma de atuação das chamadas big techs, quanto da reação despertada por este tipo de conduta nos estados nacionais e suas empresas e cidadãos. O que nos leva à tempestade perfeita para fomentar não apenas a refundação da internet, mas o fim desta hegemonia global de cinco grupos econômicos sobre ecossistemas digitais locais.
Estados supranacionais
A geopolítica de um mundo multipolar ganhou contornos mais claros ao atingir o campo da agenda digital e de sua interface com a economia e a defesa nacional. Olhar para alguns episódios dos últimos anos nos ajuda a perceber melhor estes movimentos, que afetam o planeta como um todo.
A cor azul é tradicionalmente associada ao mundo tech e parece claro que existe uma guerra fria em curso que, basicamente, foca-se em uma escalada envolvendo disputas, protagonizadas por China e Estados Unidos, sobre a indústria digital no campo dos semicondutores, dados e infraestrutura computacional.
Esta guerra fria azul acabou influenciando uma mudança estrutural na agenda de interesses das big techs. Voltando à época do caso Snowden, naquele momento estas empresas dominavam principalmente a camada de conteúdos da internet, principalmente com um monopólio ou duopólio global em termos de sistemas de busca, redes sociais e serviços de mensageria. Ao longo de uma década, todavia, seus dirigentes perceberam que, para manter o controle destes mercados, era preciso fechar e verticalizar seu poder por toda a cadeia de valor do ambiente digital.
Dominados os ecossistemas de aplicações, o controle dos dados e a regulação privada dos mercados digitais como gatekeepers, o foco destas empresas espraiou-se para a infraestrutura, tanto de conectividade quando de armazenamento e processamento de dados.
Atualmente, quatro empresas estadunidenses (Amazon, Google, Meta e Microsoft) controlam, mundialmente, cerca de 50% dos cabos submarinos de fibra ótica e três destas operam quase 70% do mercado global de data centers e serviços de nuvem. Amazon (Kuiper) e X (Starlink) possuem investimentos em constelações de satélite de baixa órbita para a oferta de serviços de conexão a internet tanto para pessoas físicas, quanto empresas e até corporações militares em diversos países.
O predomínio foi garantido por um lobby reforçado em espaços estratégicos e pouco visíveis para a maioria das pessoas, como a captura de entidades que definem padrões e protocolos de internet, ambientes de governança, relações pouco transparentes com a sociedade civil e a academia, sem falar em cooptação de parlamentares e reguladores. Isso assegurou o avanço rumo à verticalização enquanto se afirmava uma espécie de “imunidade regulatória” mantida por instrumentos normativos como a Seção 230 do Communications Decency Act (CDA). Concepção incorporada no Brasil ao Marco Civil da Internet, lei aprovada um ano após os escândalos trazidos à tona por Snowden.
Esta onipresença em todas as zonas de interesse que pudessem ameaçar sua posição dominante fez com que as cinco principais big techs passassem a atuar praticamente como Estados supranacionais. Elas são entes que regulam seus próprios mercados, induzem os processos comerciais com seus modelos de negócio, definem políticas de segurança, fiscalizam e monitoram a atividades de seus “habitantes”, punindo condutas impróprias, investem em P&D, adquirirem inovação na prateleira, comercializam dados, direcionam fundos de investimento e o capital acionário para direcionar os rumos de startups promissoras.
Ao operarem como Estados com territórios sobrepostos, parece natural que qualquer movimento de busca de independência ou autodeterminação tecnológica por outro Estado às ameace, gerando reações de defesa comercial para preservação de seus mercados. E as manobras para garantir seu território ou zona de influência, como ocorre com nações intervencionistas e não democráticas, são as mais variadas e podem incluir, no extremo, cooptação da burocracia e manipulação da opinião pública.
Tempestade perfeita
Depois de quase duas décadas de inação, a contrarreação gerada por este comportamento vem se dando em diversos países democráticos. Mesmo no berço das big techs. As instituições públicas dos EUA já não possuem mais consenso de que estes conglomerados devem viver à margem de amarras regulatórias para poderem ter ganhos globais.
Tanto o Departamento de Justiça dos EUA (DoJ) quanto a Federal Trade Commission (FTC) são parte de processos antitruste tentando garantir a preservação dos mercados digitais para novos entrantes, evitar a morte da inovação a partir de killer acquisitions, além dos desafios à proteção dos consumidores.
Esta percepção também encontra eco no Judiciário, que vem conduzindo casos significativos como os dois que acusam a Google de operar práticas monopolistas e, recentemente, a decisão da turma de juízes que analisou um processo envolvendo o TikTok, onde a Seção 230 foi posta à prova. Junte-se a isso a atuação dos Poderes Legislativos de diversos estados, gerando regulamentações bastante avançadas e rigorosas para temas como opt-out, IA e privacidade.
No Reino Unido, as investigações sobre condutas anticompetitivas por parte de algumas das big techs já renderam decisões relevantes em termos de responsabilização destas empresas. O foco, mais uma vez, é a coerção a abusos econômicos, incluindo a análise de arranjos de negócios envolvendo modelos fundacionais de IA.
A União Europeia talvez seja o caso mais emblemático de reação. Depois de mais de 10 anos criando uma miríade de legislações voltadas a conter o avanço de plataformas digitais, o bloco está colhendo alguns frutos. Em um segmento ou outro, os chamados gatekeepers já foram chamados a responder por abusos cometidos. Regulamentos como os de mercados e serviços digitais, o Data Act e o AI Act serviram para frear o vale-tudo que preponderava na região em relação às big techs. Ao tocar no bolso das gigantes, o bloco se fez ouvir.
Há poucos meses, o alinhamento de ações destas três instâncias gerou uma aliança regulatória antitruste inédita. Estados Unidos, Reino Unido e Comissão Europeia assinaram comunicado conjunto não apenas reconhecendo que a hegemonia destas cinco empresas causou estragos relevantes nestes mercados e precisa ser contida.
A Comissão Europeia foi além e está complementando a atuação via instrumentos normativos com uma ação de independência digital voltada à política industrial. O relatório com medidas para ampliar a competitividade no bloco, elaborado pelo ex-presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi há algumas semanas, recomendou iniciativas específicas de desenvolvimento regional vinculadas à agenda digital.
Os sinais de que a UE pode estar mudando seu foco na agenda digital de regulamentações complexas para uma política industrial moveram placas tectônicas que estão agindo para transformar a realidade. E certas declarações demonstram a relevância desse movimento europeu para o status quo dos mercados digitais e da defesa nacional.
Tanto Elon Musk quanto o candidato à vice-presidência dos EUA, J.D. Vance, elogiaram o documento de Draghi. O companheiro de chapa do ex-presidente Donald Trump foi além ao ameaçar a Europa de que seu governo poderia retirar recursos da Otan se o bloco insistisse em regulamentar as grandes tecnologias. Agora é hora de acompanhar os acontecimentos para ver se a ameaça intimida a novo xerife da Comissão Europeia nessa área, a comissária finlandesa Henna Virkkunen.
Ainda na égide dos países democráticos, Canadá e Austrália também têm avançado bastante na regulação e tributação de plataformas digitais, incluindo a remuneração do jornalismo, gerando críticas das empresas e seus controladores na linha do ataque à liberdade de expressão e até acusações sobre comportamentos fascistas. Em uma clara sinalização de que não pretende ficar totalmente submetido à infraestrutura das big techs, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau anunciou investimentos públicos em uma empresa do Québec para colocar no espaço uma constelação de satélites de baixa órbita.
Nas frentes da política comercial e tributária, a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também estão sendo palco de debates que colocam as big techs no corner. Cito aqui, em 2026, o provável fim da moratória que garante a não cobrança de tarifas aduaneiras em transmissões eletrônicas do comércio eletrônico, criada em 1998 a partir do conceito de livre fluxo transfronteiriço de dados.
Já no âmbito da OCDE, que gerencia o acordo sobre a Erosão da Base e Transferência de Lucros (BEPS na sigla em inglês) por empresas transnacionais, um pool de mais de 100 países está negociando um acordo multilateral criando um imposto que as empresas recolheriam globalmente, sendo a receita compartilhada com os países signatários.
Dentro do sistema ONU, a pedra foi lançada com os debates em torno da Cúpula do Futuro e do Global Digital Compact. A proposta do secretário-geral, António Guterres, de criar estruturas específicas para abrigar os debates sobre a agenda digital em Nova York incomodou os históricos beneficiados da atual arquitetura multissetorial de governança da internet. Ao longo de mais de três anos, eles tentaram por todos os caminhos enfraquecer a iniciativa e esvaziar o documento, que contava com apoio de quase todos os países e foi aprovado na 79ª Assembleia Geral da ONU, derivado dos debates ocorridos na Cúpula do Futuro.
Laboratório a céu aberto
Mas nenhum país democrático foi tão longe quanto o Brasil na reação. Ao banir a atuação da plataforma X em todo o território e sequestrar recursos das contas bancárias da X e da Starlink para saldar multas devidas, a Justiça brasileira mostrou que sabe onde está jogando.
Como nos EUA, em breve a Suprema Corte brasileira irá julgar a constitucionalidade do dispositivo congênere da Seção 230 do CDA incluído no Marco Civil da Internet. Esta batalha judicial e de narrativas coincide com declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em fóruns internacionais afirmando que o país possui um projeto estratégico de soberania digital para alcançar sua independência sem apelar para o isolacionismo.
Países como o Brasil são um bom laboratório para se visualizar como tudo isso vem se desenrolando e quais seriam os potenciais desfechos. Em primeiro lugar, somos produtores contumazes de dados, a commodity digital. Temos mais de 80% da população conectada, somos o segundo país com maior presença em redes sociais e o segundo cujos usuários mais passam horas online. De outro lado, temos empresas de diferentes portes em franco processo de transformação digital, o que demanda tecnologia, e somos o 10º maior mercado mundial de serviços de tecnologia da informação.
Ao mesmo tempo, o Estado possui uma infraestrutura digital própria. Quatro entes públicos (Serpro, Dataprev, Telebras e RNP) possuem redes de fibra ótica, satélite geoestacionário e data centers com capacidade de oferta de serviços de nuvem e desenvolvimento de soluções digitais. Na camada superior, uma plataforma de serviços públicos (GOV.br) com 150 milhões de usuários acessando quatro mil serviços gerando milhões de dados mensais tanto de pessoas físicas quanto empresas.
Com estes instrumentos à disposição, seria natural ao Brasil buscar sua soberania digital. E isso tem sido feito tanto em políticas públicas como na Nova Indústria Brasil (NIB), no Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), em iniciativas voltadas à economia e governança de dados e na oferta de crédito dos bancos públicos para empresas da economia digital. Isso gerou segurança para que o Presidente Lula começasse a abordar a necessidade de autonomia dos países do Sul Global no campo das tecnologias avançadas e controle da infraestrutura computacional nacional.
Coincidentemente ou não, no mesmo período dos discursos públicos do presidente, o país começou a sofrer reações dessas empresas. O caso de maior destaque envolveu Elon Musk. Porém, o mais importante é que tem havido uma forma sutil de assédio, conforme demonstrado por alegações recentes feitas pelo ex-ministro José Dirceu relacionadas à Amazon e aos interesses das autoridades de inteligência e defesa dos EUA nas decisões do país.
Caminhos a seguir
Voltando à tempestade perfeita, a boa notícia é que nosso país não está sozinho na intenção de ser o fiel da balança da guerra fria azul. Diversas nações que buscam a mesma autodeterminação e a redução do predomínio das big techs em suas sociedades estão conduzindo estratégias semelhantes. Há algumas semanas, recebemos a boa notícia de uma carta de apoio ao projeto de soberania digital assinada por acadêmicos como Thomas Piketty, Mariana Mazzucatto, Francesca Bria, Cecilia Rikap e Daron Acemoglu, entre 400 outros.
Cabe, agora, a estas nações democráticas chamarem a si a responsabilidade em formar uma aliança global que proteja os Estados com projetos de soberania digital e, ao mesmo, crie amarras para a atuação desmedida dos chamados Estados supranacionais. Mais do que proteção de direitos humanos e individuais, é preciso um sistema global para fortalecer, por exemplo, medidas que busquem autonomia sobre infraestrutura computacional, sobre a preservação da cultura e da democracia na internet e nas plataformas de IA, bem como a manutenção de mercados digitais justos e contestáveis.
O Brasil parece estar pronto para apoiar a comunidade global neste processo. Ao mesmo tempo em que o país não busca o isolacionismo e, muito menos, a fragmentação da internet, está lúcido da necessidade de dizer que a sociedade chegou ao seu limite em relação às externalidades negativas geradas por estes conglomerados ao longo dos últimos 20 anos, o que vai muito além da economia e da geopolítica. A oportunidade está posta. É hora de refundar a agenda digital. Para que a história não se repita como tragédia.