Tributação de controladas no exterior e tratados para evitar dupla tributação

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Na última semana tivemos duas grandes novidades no campo da tributação internacional. Primeiro, a introdução de regras globais contra a erosão da base tributária (GloBe), com a previsão de tributação mínima efetiva de 15%, de acordo com o Pilar 2 do projeto Base Erosion Profits Shifting (BEPS) da OCDE, veiculada pela MP 1262/2024 e a Instrução Normativa 2228/2024.

Segundo, a continuação do julgamento sobre a constitucionalidade do art. 74 da MP 2158/2001, que exige o imposto de renda sobre lucros auferidos no exterior por controladas antes da distribuição e sua compatibilidade com os Tratados para evitar Dupla Tributação (TDT). Nos dedicaremos ao segundo tema: o julgamento do RE 870.214, no Supremo Tribunal Federal.

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A controvérsia é antiga. O art. 74 da MP 2158-35/2001 determinou que os lucros auferidos por controladas ou coligadas detidas no exterior deveriam ser considerados disponibilizados para controladora ou coligada brasileira, na data do balanço. Trata-se de ficção jurídica pela qual presume-se a distribuição de lucros para impedir que estes sejam mantidos em países de tributação favorecida em prejuízo ao erário nacional.

Com a presunção da distribuição de lucros na data do balanço, as controladoras brasileiras são obrigadas a inclui-los na base de cálculo de IRPJ e CSLL, o que impede que seja postergada a tributação no Brasil.

A matéria foi objeto de exame pelo STF, na ADI 2588, e após muita discussão e divergência formou-se maioria para declarar a (i) inconstitucionalidade da tributação automática dos lucros auferidos em 31 de dezembro quanto às coligadas localizadas fora de “paraísos fiscais”[1] e (ii) a constitucionalidade da tributação quanto aos lucros auferidos por controladas localizadas em “paraísos fiscais”.

No mesmo sentido, o Acórdão do STF no RE 541.090-SC expressa que “quanto às demais situações (lucros auferidos por empresas controladas sediadas fora de paraísos fiscais e por empresas coligadas sediadas em paraísos fiscais), não tendo sido obtida maioria absoluta dos votos, o tribunal considerou constitucional a norma questionada, sem, todavia, conferir eficácia erga omnes e efeitos vinculantes a essa deliberação”.

Por essa razão, o STF determinou o retorno dos autos ao tribunal de origem, para que este se pronunciasse em relação à compatibilidade do art. 74 da MP 2158/2001 em relação aos tratados para evitar dupla tributação.

Importante firmar duas premissas sobre o Acórdão do RE 541.090-SC: (a) o STF não decidiu sobre a constitucionalidade (ou inconstitucionalidade) do art. 74 da MP 2158/2001 quando é aplicável um tratado para evitar a dupla tributação e; (b) o ministro Gilmar Mendes se pronunciou no sentido de que há superioridade do tratado em relação à lei tributária (pagina 174 do Acórdão do RE 541.090-SC).

Agora, no RE 870.214 o STF finalmente analisará a constitucionalidade do art. 74 da MP 2158-35/2001 quando há TDT, notadamente os tratados firmados pelo Brasil com Bélgica, Dinamarca e Luxemburgo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou que a presunção de distribuição dos lucros auferidos no exterior é contrária ao art. 7 dos TDTs, aplicando a regra do art. 98 do Código Tributário Nacional. A União interpôs recurso extraordinário, cujo julgamento iniciou-se em maio de 2024, de modo auspicioso, com um belo voto do ministro relator, André Mendonça.

Em sua decisão, o ministro Mendonça votou pela inadmissibilidade do Recurso Extraordinário da União, tendo em vista que a discussão encontra-se no campo infraconstitucional, como foi decidido no RE 460.320/PR, no ARE 1.191.424-AgR-SP, no AI 740.321-SP, no AI 785.255-SP e no ARE 955.262-RJ.

A seguir, mencionou que se fosse admitido o Recurso Extraordinário da União, votaria pelo desprovimento. O relator (i) distinguiu o regime previsto na MP 2158/2001 das regras típicas controlled foreign corporation (CFC) nos moldes da OCDE; (ii) analisou a Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados e a doutrina nacional e internacional; (iii) concluiu o art. 7 dos TDTs impede a tributação de lucros auferidos por controladas no exterior fora do respectivo país de residência; (iv) destacou o propósito antielisivo das normas CFC, ausente quando a controlada não se localiza em pais de tributação favorecida.

Retomado o julgamento no inicio de outubro, o ministro Gilmar Mendes divergiu do relator, em voto que causa estranheza por – no mínimo – sete razões.

Primeira, porque o voto contraria a jurisprudência firme do STF no sentido de que discussões que envolvem a aplicação de tratados internacionais estão no âmbito infraconstitucional (RE 460.320/PR, no ARE 1.191.424-AgR-SP, no AI 740.321-SP, no AI 785.255-SP e no ARE 955.262-RJ).

Segunda, porque parece-nos que há uma distorção do que foi decidido pelo STF no RE 541.090. O voto do ministro Gilmar Mendes, no RE 870.214 afirma que “(…) esta Corte considerou constitucional a tributação da empresa brasileira relativamente aos lucros auferidos por empresa estrangeira. Vale dizer, o STF disse que é constitucional tributar a renda da empresa controladora”.

No entanto, o contexto da decisão da ADI 2588 levou em conta o propósito antielisivo destacado pelos ministros Nelson Jobim, Marco Aurélio, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, assim como no voto do ministro Luiz Fux no RE 541.090 (p. 35, 92).

A tributação de lucros antes da disponibilidade jurídica ou econômica justifica-se por seu propósito antielisivo e não em todas as situações. Justamente por isso, na ADI 2588, o STF concluiu que art. 74 da MP 2.158-35/2001 não se aplica às empresas “coligadas” localizadas em países sem tributação favorecida (não “paraísos fiscais”).

Assim, respeitosamente, não seria possível afirmar que o STF constitucional a tributação da empresa brasileira relativamente aos lucros auferidos por empresa estrangeira. A constitucionalidade foi limitada à hipótese de “controladas” localizadas em países de tributação favorecida ou desprovidos de controles societários e fiscais adequados (“paraísos fiscais”, assim definidos em lei).

O terceiro ponto que merece atenção é que o ministro Gilmar, em mais de uma ocasião, expressou seu entendimento de que os tratados para evitar dupla tributação prevalecem em face à legislação interna. Nesse sentido foi o voto do RE 541.090 (pag. 174) e no RE 460.320. Aliás, no voto do RE 460.320 o ministro usou a teoria da mascara de Klaus Vogel, para sustentar sua posição:

No caso específico dos tratados para evitar a dupla tributação – como o acordo internacional em comento –, o Professor Klaus Vogel ensina, em clássico estudo, que constituem meio pelo qual os Estados-partes se obrigam reciprocamente a não exigir, no todo ou em parte, tributos reservados ao outro Estado, criando verdadeira restrição ao direito tributário interno – Beschrankung des innerstaalichen Steuerrechts – (VOGEL, Klaus. ‘Einleintung’ Rz. 70/72 in VOGEL & LEHNER. Doppelberteuerungsabkommen. 4ª ed. Munchen: Beck, 2003, p. 137-138). (STF, RE 460.320-PR, Rel. Gilmar Mendes, Rel. para Acórdão Dias Toffoli, j. 31.08.2011, p. 33)

Diante da prevalência das normas internacionais sobre as leis internas, merece melhor reflexão uma conclusão que afasta a aplicação do art. 7º dos TDTs.

Nosso quarto argumento diz respeito à ocorrência de dupla tributação pelo art. 74 da MP 2158 pois, o mesmo lucro auferido pela controlada no exterior será tributado lá (no país de sua residência pelo art. 7o do TDT) e pelo Brasil, antes de sua distribuição ao sócio/acionista. Afastar a dupla tributação é um dos objetivos dos TDTs, que não pode ser frustrado, como determinam os arts. 18, 26, 27 e 31 da Convenção de Viena.

A quinta razão é que a discussão da tributação de lucros de controladas no exterior não pode deixar de considerar as disposições textuais dos tratados para evitar dupla tributação. E, nesse sentido, há farta doutrina no sentido de que o art. 7 dos TDTs impede a tributação de lucros auferidos no exterior por empresa controlada, salvo se for aplicável norma antiabuso do tipo CFC. Justamente por isso, os tratados mais recentes firmados pelo Brasil com Emirados Árabes Unidos, México, Peru, Rússia, Singapura, Turquia, Uruguai e Venezuela expressamente preveem, em seus protocolos, que suas disposições não afastarão leis CFC e similares.

A sexta razão é que, embora os comentários da OCDE afirmem que os TDTs não afastariam regras CFC, como consta do voto divergente, há que se considerar que o Brasil não faz parte da OCDE e a aplicação dos comentários é controversa. Os comentários da OCDE são soft law e não são obrigatórios para países não membros. Adicione-se que o parágrafo 81 citado pelo ministro foi incluído em 2003, ou seja, posteriormente à assinatura dos TDTs firmados com Bélgica (1973), Dinamarca (1974) e Luxemburgo (1980). Essa “sugestão” de organização da qual o Brasil não faz parte pode ser utilizada para interpretar tratados anteriores?

Por último, é importante lembrar que os TDTs pautam-se no princípio de reciprocidade (art. 30 da Convenção de Viena) e da uniformidade dos termos utilizados (art. 31 da Convenção de Viena). Nesse sentido, Bélgica e Luxemburgo expressaram suas reservas em relação aos comentários da OCDE de 2003:

66. Belgium cannot share the views expressed in paragraph 13 of the Commentary. Belgium considers that the application of controlled foreign companies legislation is contrary to the provisions of paragraph 1 of Article 7. This is especially the case where a Contracting State taxes one of its residents on income derived by a foreign entity by using a fiction attributing to that resident, in proportion to his participation in the capital of the foreign entity, the income derived by that entity. By doing so, that State increases the tax base of its resident by including in it income which has not been derived by that resident but by a foreign entity which is not taxable in that State in accordance with paragraph 1 of Article 7. That Contracting State thus disregards the legal personality of the foreign entity and acts contrary to paragraph 1 of Article 7

67. Luxembourg does not share the interpretation in paragraph 13 which provides that paragraph 1 of Article 7 does not restrict a Contracting State’s right to tax its own residents under controlled foreign companies provisions found in its domestic law as this interpretation challenges the fundamental principle contained in paragraph 1 of Article 7″

Bélgica e Luxemburgo entendem que o art. 7 dos TDTs impede a aplicação de regras CFC que pretendem tributar, por ficção, os lucros auferidos no exterior.

Consequentemente, o Decreto 6.332/2007 que promulgou a convenção adicional e alterou o TDT Brasil-Bélgica não trouxe a ressalva de que suas disposições seriam compatíveis com a aplicação de regras CFC e similares, como tornou-se usual nos TDTs mais recentes. E o Decreto 9.851/2019 que promulgou a convenção adicional ao TDT Brasil-Dinamarca e também não estabelece essa disposição em seu protocolo.

Assim sendo, Bélgica, Luxemburgo e Dinamarca consideram que o art. 7 dos TDTs impede a tributação dos auferidos por lucros de controladas no exterior antes de sua distribuição, mas que o art. 10 permite a distribuição de dividendos quando houver o efetivo pagamento.

Os lucros das controladas poderão ser tributados então:

quando auferidos pelo Estado de residência (Bélgica, Luxemburgo e Dinamarca), nos termos do art. 7 dos respectivos TDTs;
pelo Brasil, também quando auferidos pelas controladas, nos termos do art. 74 da MP 2158/2001 ou da Lei 12.973/2014;
pela Bélgica, Luxemburgo e Dinamarca quando forem pagos os dividendos à controladora, nos termos do art. 10 dos respectivos TDTs.

Haverá, portanto, tripla tributação do mesmo rendimento, e o Brasil somente concederá crédito de imposto após o efetivo pagamento dos dividendos aos controladores, quando comprovado pagamento de imposto na Bélgica, em Luxemburgo e na Dinamarca[2].

Portanto, com a devida vênia, o entendimento exarado no voto do ministro Gilmar Mendes no RE 870.214 merece um debate profundo e reflexões pelo Supremo Tribunal Federal.

[1] Art. 24 e 24-A da Lei 9430/96 e IN 1037/2010.

[2] Confira-se o art. VIII do Decreto 6.332/2007.

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