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Passados mais de dez anos desde o início da operação de aplicativos de mobilidade e entrega no Brasil, as controvérsias jurídicas em torno desse uso da tecnologia seguem em aberto. Há desde discussões sobre a existência ou não de vínculo empregatício entre plataformas e motoristas e entregadores a debates anteriores, sobre qual é a Justiça competente para lidar com os temas. Enquanto a discussão segue em aberto, decisões divergentes da Justiça geram enorme insegurança jurídica para o setor.
Na avaliação de especialistas, esse cenário afasta investimentos do Brasil e dificulta a definição das proteções aos motoristas e entregadores que usam plataformas para gerar ou complementar renda. Por isso, uma definição, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), é essencial para reduzir o excesso de conflitos no Judiciário e também dar mais clareza à questão.
Atualmente, é aguardada decisão pelo STF no RE 1.144.336, que é o Tema 1291. Ela poderá dar uma resposta definitiva sobre a questão do vínculo de emprego, mas, até aqui, já há uma jurisprudência consolidada na Corte Suprema – que parece, inclusive, apontar o caminho a ser tomado.
As próximas discussões
A professora, doutora em Direito Administrativo e advogada Marilda Silveira acredita que o STF terá de se debruçar sobre o tema em breve. Enquanto isso não acontece, são proferidas centenas de decisões de outras instâncias sobre o assunto.
Em julho, a Uber reiterou ao Supremo o pedido para que sejam suspensos, em âmbito nacional, todos os processos que versem sobre vínculo empregatício até que a Corte se pronuncie em definitivo sobre o tema.
O pedido, que havia sido feito no início de março, foi reforçado após a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidir sobrestar o julgamento de todos os casos sobre vínculo até que haja decisão do STF. De forma oposta, a 2ª Turma do TST negou suspender os casos análogos.
De um lado, as ações debatem se há a caracterização do vínculo empregatício em atividades de motoristas e entregadores de aplicativos, abordando a subordinação, a habitualidade e a pessoalidade. De outro, avalia-se a posição dos motoristas e entregadores parceiros que consideram a flexibilidade e autonomia como as principais vantagens do modelo, confirmando a natureza cível-comercial da relação com as plataformas.
Em agosto, a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou no caso, requerendo a juntada do texto do Projeto de Lei Complementar (PL) 12/2024 em que consta expressamente que “o exercício da atividade pelo motorista não gera vínculo de emprego com a operadora”, desde que não haja relação de exclusividade, tampouco exigência de tempo mínimo e habitualidade.
Individualmente, nas reclamações constitucionais movidas contras as decisões da Justiça do Trabalho, os ministros do STF vêm decidindo pela ausência de vínculo de emprego. Mas o tema ainda será submetido ao plenário, em repercussão geral reconhecida, e deve ser levado a julgamento em breve.
“Esse julgamento é muito importante para a garantia de maior segurança jurídica tanto para os usuários quanto para as plataformas digitais. A expectativa é de que o STF avance em um entendimento que garanta um equilíbrio e maior previsibilidade para o setor, contribuindo para um ambiente regulatório mais estável e adequado aos desafios impostos pela economia digital.”, diz Marilda Silveira.
Dados apresentados pela Uber ao ministro Edson Fachin, relator do RE 1.446.336, indicam que até 21 de junho, havia 1.246 processos ativos no TST, sendo que 171 foram paralisados até que o STF fixe uma tese. Considerando os casos em Varas do Trabalho e em Tribunais Regionais do Trabalho, são 6.714 processos, dos quais apenas 146 foram sobrestados.
Reclamações no STF
As reclamações que chegam ao STF também sinalizam tanto a falta de clareza das cortes do país a respeito do tema quanto as posições dos ministros do próprio Supremo sobre a matéria. Em fevereiro deste ano, por exemplo, a 1ª Turma da corte formou maioria para manter a decisão de Cristiano Zanin que afastou o vínculo empregatício entre o entregador e a plataforma Rappi. O ministro cassou uma decisão do TST que havia reconhecido a relação trabalhista. A discussão se deu em um agravo regimental ajuizado na Reclamação 63823.
O mesmo colegiado, em dezembro do ano passado, cassou uma decisão da Justiça Trabalhista que havia reconhecido o vínculo empregatício entre um motorista e o Cabify, empresa que deixou de operar no país em 2021. Por unanimidade, ficou definido que o acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), de Minas Gerais, desrespeitou precedentes da Corte sobre formas alternativas de organização do trabalho. A matéria é objeto da RCL 60.347.
“Voltamos, a meu ver, com o devido respeito às posições em contrário, àquela discussão da reiterada desobediência, do reiterado descumprimento, pela Justiça do Trabalho, das decisões do Supremo Tribunal Federal”, afirmou na sessão o ministro Alexandre de Moraes, relator da reclamação.
Há, ainda, decisões individuais. Em novembro de 2023, o ministro Gilmar Mendes cassou, em caráter liminar, uma decisão que reconhecia o vínculo empregatício entre um motorista e o aplicativo de transporte individual Cabify. A decisão cassada também é do Tribunal TRT3, de Minas Gerais.
Em sua decisão, Mendes destacou que, ao declarar a existência do vínculo de emprego, não ”obstante a comprovada existência de acordo entre as partes acerca do modo de contratação, o TRT3 descumpriu as decisões da Suprema Corte acerca da matéria”.
No mesmo mês, Zanin cassou uma decisão do TST que reconhecia o vínculo entre um entregador e a plataforma Rappi. O relator considerou que o julgado violou precedentes sobre outras formas de trabalho que não empregatícia. No mesmo mês, o ministro Gilmar Mendes cassou decisão semelhante, mas sobre a Cabify. O ministro destacou “a comprovada existência de acordo entre as partes acerca do modo de contratação”.
Antes, em setembro de 2023, Luiz Fux decidiu na mesma linha a respeito de dois casos, as RCL 59.404 e RCL 61.267. O ministro também entendeu que o reconhecimento da relação de emprego desconsiderou precedentes da Corte sobre a validade da terceirização. Em maio, Alexandre de Moraes seguiu a mesma compreensão e determinou a remessa dos autos mencionados na Rcl 59.795 à Justiça Comum.
Vale observar também o posicionamento da Procuradoria-Geral da República (PGR). Sob o comando de Paulo Gonet Branco, a PGR adotou um novo entendimento sobre o uso de reclamações constitucionais para questionar decisões trabalhistas que identificaram vínculo empregatício nesses casos. Em manifestação enviada ao Supremo em janeiro, a instituição afirmou que decisões trabalhistas em face da plataforma contrariam o entendimento da Corte sobre a validade de formas alternativas de trabalho.
Precedentes do STF
No STF, há ainda uma construção anterior de precedentes em torno do tema. A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 449, julgada em setembro de 2019, questionou uma lei de Fortaleza, de 2016, que proibia o uso de carros particulares, cadastrados ou não em aplicativos, para o transporte remunerado individual de pessoas e previa multa de R$ 1.400 ao condutor do veículo.
Sob relatoria do ministro Luiz Fux, a corte fixou que a proibição limita de forma desproporcional as liberdades de iniciativa e de profissão.
Da mesma forma, o RE 1.054.110 teve a repercussão geral reconhecida e tramitou sob o Tema 967, tendo sido julgado em setembro de 2019. No caso, uma lei municipal de São Paulo vetava a modalidade. O recurso foi relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que também considerou inconstitucionais as restrições.
Assim como Luiz Fux, Barroso destacou que a livre iniciativa é um dos fundamentos do Estado brasileiro, ao lado do valor social do trabalho, e que o modelo previsto na Constituição é o da economia de mercado. “No caso do transporte individual remunerado, não há nenhum princípio que prescreva a manutenção de um modelo específico”, disse, à época.
Em outro entendimento, o STF decidiu que a competência para processar e julgar ações que envolvam contratos de representação comercial autônoma é da Justiça Comum e não da Justiça do Trabalho. A questão foi objeto do RE 606.003, com repercussão geral (Tema 550), apreciado em outubro de 2020. Segundo o acórdão, cuja redação ficou com Barroso, compete à Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que “inexiste entre as partes vínculo de emprego ou relação de trabalho, mas relação comercial”
Nova modalidade e suas competências
Já no Superior Tribunal de Justiça (STJ) há precedentes firmados no sentido de que a relação entre plataformas de tecnologia e motoristas ou entregadores parceiros é de natureza cível e, por isso, as controvérsias dela decorrentes devem ser apreciadas e julgadas pela Justiça Comum (e não pela Trabalhista) – sob o entendimento de que não há relação de emprego envolvida, tampouco de trabalho já que as plataformas são responsáveis pela intermediação do. serviço prestado pelo motorista ao usuário.
O conflito de competência (CC) 164.544 foi definido em agosto de 2019 pela 2ª Seção por unanimidade. Por meio dele, o colegiado definiu que compete à Justiça comum estadual julgar casos de pedidos de reparação de danos materiais e morais. No caso concreto, o motorista pedia a reativação de sua conta Uber para voltar a usar o aplicativo de tecnologia e, por intermédio dele, oferecer os serviços de transporte.
“As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículo particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma”, diz a decisão.
Professor titular da Faculdade de Direito da USP e sócio de Mannrich e Vasconcelos Advogados, Nelson Mannrich destaca justamente essa nova modalidade de interação econômica como fonte de debate e da complexidade da questão.
“O empregado recebe ordens do empregador, trabalha em horário e local fixos. Do outro lado, estava o profissional liberal, que assumia o risco da sua atividade, como o dentista, o advogado. Essa era a grande divisão do mundo do trabalho. Tivemos muitas mudanças com essa economia disruptiva. O mundo do trabalho mudou e surgiram atividades que apresentam um terceiro gênero, entre subordinado e autônomo”, diz.
Segundo o professor, em outros países essa nova figura já é prevista na legislação. No Brasil, no entanto, a divisão, formal e legal, segue como a tradicional.
No caso dos aplicativos de mobilidade e entregas, por exemplo, a empresa de tecnologia é usada por motoristas e entregadores parceiros para a localização e captação de usuários. Essas companhias afirmam que fazem uma intermediação de serviços sob demanda, por meio de plataforma tecnológica digital, e mediante o pagamento de uma taxa por viagem pelo motorista pelo uso do serviço de tecnologia. Não seriam, assim, empresas de transporte e tampouco contratam os motoristas ou entregadores.
As empresas argumentam que os motoristas e entregadores de aplicativos contratam a tecnologia, além do que não mantêm relação hierárquica. O serviço de transporte também é prestado pelo motorista ou entregador ao usuário de forma eventual – como já reconheceu o STF na ADPF 449 e no RE 1054110 (Tema 967) –, sem horários pré-estabelecidos de trabalho e eles não recebem salário fixo, dentre outros requisitos para caracterizar o vínculo empregatício entre as partes.
Além disso, os motoristas e entregadores podem utilizar de forma alternada mais de uma plataforma de tecnologia, o que é mais uma característica da relação que destoa do vínculo empregatício, que, em geral, veda o “trabalho para empresas concorrentes”.
No Tribunal Superior do Trabalho (TST), as turmas se posicionam, até aqui, de formas distintas, ora reconhecendo o vínculo empregatício, ora recusando a existência desse tipo de relação. A jurisprudência da corte é construída desde 2018 e inclui casos da Uber, 99, Cabify e iFood.
Outro processo julgado pela 8ª Turma da corte, relatado pelo ministro Alexandre Agra Belmonte, foi levado ao Supremo pela plataforma Uber por meio de um recurso extraordinário. O caso se tornou o RE 1.144.336, relatado pelo ministro Luiz Edson Fachin.
A advogada especialista em Direito Empresarial Carol Caputo ressalta que, por ora, a definição fixada pela Justiça, especialmente o precedente do STJ, deve balizar a discussão. Ainda, ela lembra que aquele acórdão não foi questionado no STF e, portanto, transitou em julgado no próprio STJ.
“O STJ, a quem a Constituição atribuiu a missão de dar a última palavra sobre interpretação e aplicação das leis e dos tratados, se pronunciou acerca da matéria, afirmando ser de competência da Justiça Comum apreciar e julgar as causas envolvendo plataformas digitais e motoristas parceiros. Esses precedentes não podem ser ignorados pelas demais instâncias, inclusive pelo STF, sob pena de indevida sobreposição entre os Tribunais”, afirma a advogada Carol Caputo.
Um precedente relevante que precisa ser levado em conta, na visão dos especialistas ouvidos pelo JOTA, é a ADPF 324, em que o STF assentou que “a Constituição não impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco veda a terceirização”.
Dentro dessa perspectiva, o STF autorizou, em agosto de 2018, a terceirização da atividade-fim. Portanto, já há uma percepção no sentido de que existem outros modelos de trabalho, amparados pela Constituição, especialmente pelos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
Trabalhadores não típicos
Nelson Mannrich avalia, por exemplo, que os motoristas de aplicativos não são empregados típicos e que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) ainda não está preparada para regular a relação que eles têm com as plataformas.
“A realidade não pode ser ignorada. Nós precisamos ter uma lei que regule e uma jurisprudência pacífica sobre isso, porque isso cria um cenário de insegurança e afasta o investidor”, disse.
O governo federal chegou a enviar um projeto de lei ao Congresso em que classificava o motorista como uma nova figura de trabalhador. Embora seja pacífico o entendimento no cenário político de que a natureza da relação de fato não é empregatícia, a proposta segue em análise na comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados, não tendo sido objeto de nenhuma deliberação até o presente momento.
O PLP 12/ 2024, regulamenta os serviços de aplicativo de transporte de passageiros e ficou conhecido como PL dos Apps. Mas o movimento já sinaliza, segundo o Mannrich, que o próprio governo aposta na autonomia desses trabalhadores.
“A CLT não é o único modelo de proteção; e é possível ter outras formas de proteção. Além disso, o contrato de trabalho não é o único possível a ser celebrado para quem trabalha, nós temos que levar em conta a boa fé contratual”, avalia.
Na análise do advogado, tendo em vista o conjunto das reclamações constitucionais e as teses definidas pelo Supremo, é possível entender que o tribunal hoje chegou à conclusão de que há outros modelos de proteção social do trabalhador além da CLT. Para ele, o Supremo tem se inclinado pela Lei da Liberdade Econômica.
Na ADPF 324, por exemplo, ao assegurar aos agentes econômicos a “liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade”, deixou claro que essas novas formas de organização não configuram, por si só, precarização do trabalho. E complementou: “é o exercício abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações”.