A indisponibilidade de bens nas ações de improbidade

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A tutela provisória tem grande relevância para garantir uma prestação jurisdicional adequada e efetiva nas ações decorrentes de atos de improbidade administrativa. A indisponibilidade cautelar do patrimônio do réu, por exemplo, constitui medida fundamental para assegurar o futuro ressarcimento do erário.

Todavia, até a edição da Lei 14.230/2021, aplicava-se a ideia de um periculum in mora presumido[1], baseado apenas na gravidade da conduta, na lesividade ao patrimônio público e no risco (em tese) ao ressarcimento futuro. Essa visão levava a distorções pois, como aponta a doutrina, nem mesmo no processo penal se admitia que medidas cautelares fossem baseadas apenas na gravidade em abstrato do crime[2].

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Com efeito, bastava a acusação da prática de atos ímprobos para que o patrimônio dos réus fosse liminarmente indisponibilizado. Falava-se equivocadamente em tutela da evidência[3]. Isso porque, ao julgar o Recurso Especial Repetitivo 1.366.721-BA, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu que a medida não estaria condicionada à comprovação de dilapidação patrimonial[4]. Fixou-se, naquela época, a tese do Tema Repetitivo 701, que autorizava o bloqueio de bens sem a demonstração do periculum in mora[5].

Esse cenário mudou quando a Lei 14.230/2021 passou a exigir a demonstração do periculum in mora para o decreto judicial da indisponibilidade.

Não há dúvida que a ação de improbidade deve ser reservada para infrações realmente graves, as quais precisam ser severa e exemplarmente combatidas. Isso implica evitar pedidos genéricos de condenação, os quais conduzem “à eternização dos litígios, usualmente envolvendo disputas políticas (mais do que jurídicas)”[6]. Dessa forma, o combate à improbidade deve ganhar mais agilidade e eficiência. Parafraseando Yves Strickler: se tudo se torna ato de improbidade, nada mais o é[7].

Atualmente, portanto, exige-se a demonstração concreta do periculum in mora e da probabilidade do direito (Lei 14.230/2021, art. 16, § 3.º) – ou seja, os requisitos legais previstos no artigo 300 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015. Mas eles seriam exigíveis nas decisões de indisponibilidade de bens já proferidas sob a égide da lei anterior e com base no periculum in mora meramente presumido?

Para definir essa questão, em maio de 2024, o STJ afetou os Recursos Especiais 2.074.601, 2.076.137, 2.076.911, 2.078.360 e 2.089.767 como paradigmas do Tema 1257. A questão submetida a julgamento visa definir a possibilidade ou não de aplicação da nova Lei de Improbidade Administrativa a processos em curso, iniciados na vigência da Lei 8.429/1992, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens.

Nosso sistema admite a aplicação retroativa da lei nova (menos gravosa) para beneficiar os réus (Constituição Federal, art. 5.º, XL). Ainda que o texto da Carta se refira à lei penal, a garantia aplica-se ao direito sancionador de um modo geral[8]. Exatamente por essa razão, deve-se concluir que, nas ações de improbidade e nas ações baseadas na Lei Anticorrupção, as garantias constitucionais devem ter densidade equivalente ao processo penal[9].

Mas é necessário avaliar também a aplicação da lei processual aos atos cujos efeitos se protraem no tempo. Nesses, pouco importa a natureza do ato praticado (se de direito material ou processual), pois, nas relações de trato continuado ou nos atos que se alongam temporalmente, admite-se sempre a incidência da lei nova.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, em sede do Tema 1199 de Repercussão Geral[10], sobre a possibilidade de “retroatividade da nova Lei 14.230/2021 para atingir aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado”.

No voto condutor, o ministro Alexandre de Moraes ressaltou que “a retroatividade da nova lei dirige-se para abrandar o poder de punir do Estado, impondo-lhe limitações materiais e temporais mais compatíveis com a dignidade dos acusados e com o direito à duração razoável do processo”, mas não se pode “falar que a retroatividade atingiria atos jurídicos processuais perfeitos e acabados”, uma vez que o direito de punir só está perfeito e acabado “quando a sentença condenatória transita em julgado”[11].

A tese definida no Tema 1199 do STF admite a possibilidade de retroatividade dos aspectos materiais da nova Lei 14.230/2021, fazendo a ressalva de que a retroatividade não atinge situações jurídicas já consolidadas.

A indisponibilidade de bens é medida cautelar de natureza provisória, de caráter precário[12], que visa resguardar o direito material a ser tutelado ao final do processo. Importa em efeitos de direito material ao constranger o patrimônio do atingido. Como medida liminar, pode ser revista a qualquer tempo (CPC, art. 296). Assim, é possível a sua revogação ou modificação, se no curso do processo sobrevierem alterações (fáticas ou legislativas) que modifiquem a situação fático-jurídica vigente no momento do proferimento da decisão.

A Lei 14.230/2021, ao estabelecer novos requisitos para a concessão da cautelar – uma vez que passou a exigir a demonstração do requisito da urgência, além da plausibilidade do direito invocado, para o deferimento da indisponibilidade de bens em sede de ação de improbidade administrativa –, provoca uma alteração fático-jurídica que autoriza a revogação da decisão, desde que não sejam preenchidos os novos requisitos autorizadores da medida.

Se, do ponto de vista do direito material, a lei mais benéfica deve retroagir para beneficiar o réu, o mesmo deve ocorrer em relação aos efeitos concretos da aplicação do direito processual.

Deve-se, pois, admitir a aplicação imediata das novas regras e requisitos, uma vez que se trata de uma decisão precária, temporária, cujos efeitos se prolongam no tempo, conforme já se manifestou o STJ[13], admitindo que, por possuir natureza de tutela provisória de urgência cautelar, a decisão de indisponibilidade de bens reveste-se de caráter processual, podendo ser revogada ou modificada a qualquer tempo, de modo que, por força do artigo 14 do CPC/2015, a Lei 14.230/2021 deve ter aplicação imediata aos processos em curso.

Apesar da incidência do princípio do tempus regit actum[14], segundo o qual a lei processual atinge o processo no estágio em que ele se encontra, não é possível admitir a permanência de efeitos de atos que se protraem no tempo se a nova lei processual não é mais com eles compatível. Não se pode admitir a permanência de uma decisão precária, temporária, que não está sujeita à estabilização e cujos efeitos se prolongam no tempo.

Em suma, as novas regras e os novos requisitos trazidos pela Lei 14.230/2021, em matéria de indisponibilidade de bens, valem para os processos em curso e, portanto, autorizam eventual revisão da decretação de indisponibilidade pelo magistrado. É inadmissível que uma decisão provisória, proferida sob a luz de lei revogada, continue produzindo efeitos se não atende os requisitos da nova lei.

A medida de indisponibilidade de bens somente deverá permanecer se os novos requisitos forem preenchidos; se estiverem ausentes, a medida deve ser revogada. Fica claro, portanto, que todas as decisões de indisponibilidade de bens baseadas no sistema anterior devem ser revistas à luz dos requisitos atuais introduzidos pela Lei 14.230/2021. Isso pode ocorrer em segundo grau, se houver recurso pendente, ou em primeiro grau, mediante provocação ou decisão ex officio.

[1] Nesse sentido, para ser determinada a indisponibilidade de bens, bastava a demonstração de que o suposto ato de improbidade causara lesão ao patrimônio público ou ensejara enriquecimento ilícito (STJ (2. Turma). AgInt no REsp 1631700-RN. Relator: Min. Og Fernandes. Julgamento: 6/2/2018).

[2] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazario de; VIOLIN, Jordão; MADALENA, Luis Henrique. A nova improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 180.

[3] Na verdade, nunca se tratou de tutela da evidência (cuja característica é a dispensa do periculum in mora), mas sim de tutela de urgência em que o periculum in mora era presumido. Assim, o que existia nas ações de improbidade até o surgimento da Lei n.º 14.230/2021 não era evidência, mas uma urgência preestabelecida pela lei. Nesse sentido, vide: DOTTI, Rogéria Fagundes. Tutela da evidência: probabilidade, defesa frágil e o dever de antecipar a tempo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 185 et seq.

[4] STJ (1. Seção). REsp 1.366.721-BA. Relator: Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Relator para Acórdão: Min. Og Fernandes. Julgamento: 26/2/2014.

[5] Tema 701 do STJ: “É possível a decretação da ‘indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro’”.

[6] JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. VII.

[7] Ao criticar a banalização do conceito de urgência na França, Yves Strickler destaca: “Mais, si tout devient urgent, plus rien ne l’est. Il faut donc se souvenir que l’exception ne saurait absorber le principe” (STRICKLER,Yves. L’évolution contemporaine du référé et des procédures d’injonction. Revista de Processo, São Paulo, v. 41, n. 261, nov. 2016, p. 167-196).

[8] JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 267.

[9] MERÇON-VARGAS, Sarah. Teoria do processo judicial punitivo não penal. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 122.

[10] Tese definida: “1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa – é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”.

[11] STF (Pleno). ARE 843.989. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgamento: 18/8/2022, p. 150-151.

[12] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazario de; VIOLIN, Jordão; MADALENA, Luis Henrique. A nova improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 178.

[13] “[…] A nova redação da Lei n. 8.429/1992, dada pela Lei n. 14.230/2021, passou a exigir a demonstração do requisito da urgência, além da plausibilidade do direito invocado, para o deferimento da indisponibilidade de bens em sede de ação de improbidade administrativa. 4. Por possuir natureza de tutela provisória de urgência cautelar, podendo ser revogada ou modificada a qualquer tempo, a decisão de indisponibilidade de bens reveste-se de caráter processual, de modo que, por força do art. 14 do CPC/2015, a norma mencionada deve ter aplicação imediata ao processo em curso […]” (STJ (1. Turma). AgInt no AREsp n. 2.272.508-RN. Relator: Min. Gurgel de Faria. Julgamento: 6/2/2024. Publicação: DJe de 21/3/2024.). “[…] Por possuir natureza de tutela provisória de urgência cautelar, podendo ser revogada ou modificada a qualquer tempo, a decisão de indisponibilidade de bens reveste-se de caráter processual, de modo que, por força do art. 14 do CPC/2015, a norma mencionada deve ter aplicação imediata ao processo em curso. […]” (STJ (1. Turma). AgInt no REsp n. 2.059.096-PE. Relator: Min. Gurgel de Faria. Julgamento: 2/10/2023. Publicação: DJe de 4/10/2023). “[…] por possuir natureza de tutela provisória de urgência cautelar a decisão de indisponibilidade de bens reveste de caráter processual, de modo que, por força do art. 14 do CPC, a norma mencionada alhures deve ter aplicação imediata ao processo em curso. […]” (STJ. REsp n. 2.042.925. Relatora: Min. Assusete Magalhães. Publicação: DJe de 27/3/2023.)

[14] “[…] 1. Tanto o CPC/1973 (art. 1.211) quanto o CPC/2015 (art. 1.046, ‘caput’) adotaram, com fundamento no princípio geral do ‘tempus regit actum’, a chamada ‘teoria do isolamento dos atos processuais’ como critério de orientação de direito intertemporal, de maneira que nada obstante a lei processual nova incida sobre os feitos ainda em curso, não poderá retroagir para alcançar os atos processuais praticados sob a égide do regime anterior, mas apenas sobre aqueles que daí em diante advierem. […]” (STJ (2. Turma). AgInt no AREsp n. 776.028-SP. Relator: Min. Mauro Campbell Marques. Julgamento: 27/6/2017. Publicação: DJe de 30/6/2017). “[…] Ocorre que, por mais que a lei processual seja aplicada imediatamente aos processos pendentes, deve-se ter conhecimento que o processo é constituído por inúmeros atos. Tal entendimento nos leva à chamada ‘Teoria dos Atos Processuais Isolados’, em que cada ato deve ser considerado separadamente dos demais para o fim de se determinar qual a lei que o rege, recaindo sobre ele a preclusão consumativa, ou seja, a lei que rege o ato processual é aquela em vigor no momento em que ele é praticado. Seria a aplicação do princípio tempus regit actum. Com base neste princípio, temos que a lei processual atinge o processo no estágio em que ele se encontra, onde a incidência da lei nova não gera prejuízo algum às partes, respeitando-se a eficácia do ato processual já praticado. Dessa forma, a publicação e entrada em vigor de nova lei só atingem os atos ainda por praticar, no caso, os processos futuros, não sendo possível falar em retroatividade da nova norma, visto que os atos anteriores de processos em curso não serão atingidos. […]” (STJ (1. Seção). REsp n. 1.404.796-SP. Relator: Min. Mauro Campbell Marques. Julgamento: 26/3/2014. Publicação: DJe de 9/4/2014.). Ver também: STJ (1. Turma). AgInt no AREsp n. 2.197.290-SP. Relator: Min. Gurgel de Faria. Julgamento: 23/4/2024. Publicação: DJe de 2/5/2024.

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