A etapa processual da reforma tributária – ou um ataque à Justiça Estadual

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A reforma tributária foi promulgada (EC 132/23). Atenções agora se voltam para as leis complementares que virão. Nesse mar de novidades, parece ainda acanhado o debate quanto a outro plano da reforma: o processual. É sobre ele que este texto se debruça. E o mote para fazê-lo é a nova PEC que há pouco tomou os jornais.

Divulgou-se que AGU e Ministério da Fazenda apresentaram ao ministro Luís Roberto Barroso, no último dia 14 de março, uma “minirreforma do Judiciário”[1]. Ela consistiria, na essência, (i) na criação de Ação Declaratória de Legalidade de ato normativo ou de interpretação de lei federal relacionada à CBS e ao IBS, de competência do STJ, e (ii) em nova competência da justiça federal de primeiro grau, para “causas relativas aos tributos previstos nos arts. 195, V, e art. 156-A, nos termos da lei” – i.e., a CBS e o IBS.

Há, nessa segunda proposta, um velado ataque à Justiça Estadual, componente do federalismo que a Constituição adota (CF, arts. 125, caput, c/c 18, caput, e 60, § 4º, I). A tentativa de aproximar CBS e IBS, mirando em uniformidade e simplificação, não deveria chegar a tanto. Listo abaixo sete razões demonstrando o porquê.

1) Esvaziando a Justiça Estadual para o IBS

A principal fonte de receita tributária dos estados é, hoje, o ICMS. Tudo leva a crer que assim se seguirá com o IBS.

Se a Constituição concede aos estados “a sua Justiça” (CF, art. 125, caput), custa crer que conflitos relativos às suas principais fontes de receita sejam reservados a “outra Justiça”, a federal. No núcleo da federação há de estar sustentabilidade financeira, e, para ela, repartição de receitas e os respectivos meios de efetivação[2]. A propalada PEC passa ao largo disso e pinça precisamente o que não poderia sair da Justiça estadual.

Pensemos num problema concreto. Leis estaduais ainda fixarão alíquotas para o IBS (CF, art. 156-A, § 1º, V). Como será exercido o controle de constitucionalidade dessas leis perante a Constituição Estadual? Colocando-se uma muralha entre o concentrado e o difuso, este deixado rotineiramente à Justiça federal, distante dos valores locais que embebem a Justiça estadual?

2) Uniformidade pela Justiça federal?

É um erro tomar a Justiça federal de primeiro grau para uniformizar tratamento. Isso exigiria, primeiro, estatísticas apontando que juízes federais discordam menos entre si sobre a mesma regra de direito material do que juízes estaduais, ou que juízes federais no Acre discordam menos de juízes federais no Rio Grande do Sul sobre a mesma regra de direito material do que os respectivos magistrados estaduais.

A reforma trouxe uniformidade no direito material do IBS. Colher de outro cenário a imagem da Justiça estadual como vilã, quando essa uniformidade não existia, exigiria mais para afastar a pecha de achismo.

3) Um ou vários juízos federais especializados?

Dizer que o órgão judicial federal será especializado, com competência sobre todo o território nacional, não resolve. Um órgão a concentrar todo o contencioso judicial tributário do IBS é, para dizer o mínimo, pouco crível. Se forem vários, como se imagina, dois cenários surgem.

Se vários na mesma seção judiciária, v.g., Distrito Federal, vêm à tona para os estados os problemas enfrentados – e resolvidos – no acórdão da ADIn 5.492/DF contra os arts. 46, § 5º, e 52, parágrafo único, do CPC/15, além do dito no item anterior[3]. Por sinal, é distorcer aquele acórdão lê-lo apenas a evitar pulverização de demandas por todo o país. Ali se disse mais: que estados não podem ser alijados de suas Justiças estaduais e que a prática eletrônica de atos processuais não elimina a ofensa ao contraditório (vide p. 114 do acórdão, item 8 do voto do ministro Barroso).

Se, porém, forem vários em seções judiciárias distintas, retornamos ao item anterior.

4) As bases da Justiça federal no Brasil

O rol do art. 109 da Constituição não milita pela uniformidade do direito material federal. Milita, predominantemente, pela tutela do interesse do ente central. São exceções, no dispositivo, competências cíveis que miram no direito aplicável (incs. III, V-A, X, parte final, e XI). No Brasil, justiça federal e justiça estadual aplicam ambas, rotineiramente, direito material federal.

Se verdadeira a premissa da PEC, então seria de se pensar: por que não guardar para a Justiça federal conflitos regidos pelo Código Civil? Por que não manter uniforme, pelo mesmo caminho, a aplicação do Código Penal? O que faz a aplicação da lei tributária pairar acima destes últimos à luz da isonomia?

Pior: a PEC parece olhar apenas para conflitos “contribuinte X fisco”, esquecendo-se que a nova regra pode atrair conflitos “fisco X fisco”. Se assim for, é para uma arena distante, e mais afeta a outros interesses, que a sorte da principal receita de Estados será lançada.

5) Padronização decisória e um bis in idem

O Brasil é hoje fértil em técnicas processuais de formação de padrões decisórios vinculantes. Até 13/03/2024, não se mencionava a competência de primeiro grau da justiça federal como uma delas.

Servem a isso IRDR, IAC, centralização de processos repetitivos e recursos repetitivos, além de súmulas e controle concentrado de constitucionalidade. Passaremos a ter também, se a PEC avançar como está, a referida Ação Declaratória de Legalidade (ADL).

Não é este o espaço para aprofundar o exame da ADL. O ponto é mais simples: por que prever na PEC duas propostas rigorosamente para o mesmo fim, de uniformidade? Queremos verdadeiramente uma só voz no IBS a esse ponto, concentrando em primeiro grau e na cúpula? No limite, a ânsia por segurança e uniformidade pode nos levar a repetir caminhos já repugnados, como a instituição da ação avocatória pela EC 7/77 à CF/69, abandonada com festejo pela CF/88.

6) Escolhendo o vilão

Todos queremos segurança jurídica, no direito tributário e fora dele. Contribuem para isso Emendas Constitucionais bem redigidas e Leis Complementares que resolvam mais problemas do que criem, assim como leis ordinárias e regulamentos que, dentre outras virtudes, se atenham aos papeis que lhes cabe no sistema constitucional tributário.

A favor ou contra jogam também os Tribunais Superiores quando firmam precedentes vinculantes, a depender do apuro com que redijam seus acórdãos – ou, para alguns incautos, suas ementas.

Entregar um contencioso judicial tributário que promova previsibilidade precisa ser um esforço de muitos. Nenhum dos elos nessa cadeia age sozinho como vilão ou mocinho.

7) Estreitando o caminho forçado da judicialização

O STF impediu que a Fazenda buscasse extrajudicialmente a constrição de bens do devedor tributário (ADIn 5.881/DF). Com isso, impôs a via judicial para a execução da dívida ativa, colocando o Brasil ao lado apenas da Venezuela no quadro das democracias ocidentais. Ao invés de liberar essa amarra, a PEC aperta ainda mais a corda contra estados, dificultando-lhes o caminho em juízo para a cobrança por si ou sob a coordenação do Comitê Gestor do IBS (CF, art. 156-B, § 2º, V).

Em suma, simplificação tributária é um valor caro a todos, hoje com assento constitucional (CF, art. 145, § 3º). Nem por isso há de servir de altar em que se sacrificará a Justiça estadual.

[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/03/governo-discute-nova-pec-com-minirreforma-do-judiciario-para-solucionar-conflitos-tributarios.shtml; acesso em 14/03/2024.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional brasileiro: o problema da federação, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1982, p. 77 e segs.

[3] Sobre o tema, conferir, deste autor, O novo CPC e o federalismo, Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 70, 2016, p. 134-160. Disponível também em https://uerj.academia.edu/GuilhermeJalesSokal.

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