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O campo da visão humana abrange cerca de 120 graus. É mais provável não se ver algo a vê-lo, portanto. Essa obviedade precisa ser lembrada constantemente no mundo jurídico – e recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a inaplicabilidade subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) à arbitragem endossa a necessidade de cautela ao que se apresenta, para alguns, como clarividente.
O pano de fundo do Recurso Especial nº 1851324-RS foi a alegação de nulidade de certo procedimento arbitral em razão da atuação de preposto da parte como tradutor na oitiva de testemunhas chinesas – circunstância que havia sido expressamente permitida pelo árbitro.
Ao longo de duas dezenas de laudas, o ministro relator mergulhou profundamente na sentença arbitral objeto de controvérsia. Fez, ainda, relevantes apontamentos sobre o instituto da arbitragem, com especial enfoque à flexibilidade característica da arbitragem. É um daqueles votos de agradável leitura – característica rara ao se examinar a natureza técnica de um julgado.
A Terceira Turma do STJ – especializada em Direito Privado – considerou improcedente a postulação da parte que pretendia anular a sentença. A partir de análise circunstancial da sentença arbitral, destacou-se que a parte insurgente teve a chance de efetivamente conferir detidamente a tradução produzida, bem como de discordar da atuação do tradutor.
Não o fez no momento oportuno – embora o Tribunal Arbitral houvesse expressamente inquirido se teria havido “durante essa audiência ou durante o transcurso do procedimento arbitral” fato ou circunstância que tenha violado a ampla defesa, o contraditório, a igualdade das partes ou o devido processo legal.
Vê-se a cristalização de um duradouro movimento jurisprudencial de respeito e estímulo à arbitragem. A possibilidade de anulação de sentenças arbitrais existe, obviamente, mas é excepcional. O Judiciário brasileiro não é – e nem deve ser encarado como – instância de apelação em casos de insatisfação com o resultado alcançado na arbitragem. Até aqui, nada de novo.
A novidade se deve ao pronunciamento de uma Turma do STJ focada em direito privado sobre a impossibilidade de aplicação subsidiária do CPC à arbitragem. As passagens foram peremptórias: “[o] árbitro não se encontra, de modo algum, adstrito ao procedimento estabelecido no Código de Processo Civil, inexistindo regramento legal que determine, genericamente, sua aplicação, nem sequer subsidiária, à arbitragem”.
O precedente motivou uma enxurrada de artigos e notícias festejando – ou dando como certa – a inaplicabilidade do CPC à arbitragem. Mas convém relembrar o primeiro parágrafo deste texto e ter em mente que a univocidade é, por vezes, um convite à reflexão.
A aplicabilidade do CPC à arbitragem historicamente se portou de forma pendular. Em um extremo, argumentou-se pela aplicabilidade automática, independentemente da vontade das partes. Já em outro extremo, defendeu-se o rechaço integral. O STJ parece endossar a última hipótese. Os dois extremos apresentam graves inconvenientes. E entre os dois extremos há uma miríade de possibilidades – que não deveriam ser descartadas de pronto.
De um lado, a aplicação automática e irrefletida do CPC à arbitragem pode aniquilar a maleabilidade tipicamente desejada do procedimento privado. De outro lado, a rejeição imponderada ao CPC pode complicar a solução de problemáticas cotidianas discutidas há décadas na jurisdição estatal.
A Lei de Arbitragem tem parcos 44 artigos. Os regulamentos das principais câmaras arbitrais costumam ser enxutos. Convenções arbitrais e atas de missão também não costumam ter extensão enciclopédica. Não é raro, portanto, haver algum aspecto procedimental que não esteja previsto na Lei de Arbitragem, não esteja regulado no regulamento da respectiva câmara, nem tenha sido negociado expressamente pelas partes – mas seja, de alguma forma, endereçado em algum dos 1.072 artigos do CPC. Nesse cenário, não parece oportuno impedir que as partes ou o tribunal arbitral possam se socorrer ao CPC.
Não parece haver contradição intrínseca entre acomodar a flexibilidade da arbitragem e a eventual aplicabilidade subsidiária do CPC a situações específicas. Para ficarmos em exemplo singelo – e mais corriqueiro do que se supõe: inexistindo afastamento expresso de honorários sucumbenciais em determinado procedimento arbitral, é plausível impedir as partes ou o tribunal arbitral a se socorrerem do detalhado regramento previsto no CPC sobre honorários? Parece-me que não.
Mais: convém descartar, ex-ante, toda a importantíssima disciplina de coisa julgada prevista no CPC? A resposta também me parece negativa.
Karl Engisch, em obra seminal sobre o pensamento jurídico, destaca que muitas supostas contradições normativas são apenas aparentes. Talvez seja o caso ora em análise.
Em situações de aparente conflito normativo, não sendo possível ampliar o ângulo de visão humana, há um caminho intuitivo: dar um passo atrás e ponderar o novo raio de alcance com maior cautela, desconsiderando mantras que recomendem uma única resposta.