Fiagro como veículo de investimento na descarbonização da economia

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Os Fundos de Investimento em Cadeias Agroindustriais (Fiagros) representam uma modalidade relativamente recente no mercado de capitais, criada pela Lei 14.130/2021, que modificou a legislação que regula os Fundos de Investimento Imobiliário (FII).

Após a Consulta Pública CVM SDM 3/2023, os Fiagros foram recentemente regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em outubro deste ano, por meio da Resolução CVM 214/2024, que incluiu o Anexo Normativo VI e determinados suplementos ao Marco Regulatório dos Fundos de Investimento (Resolução CVM 175/2022).

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Desde a sua criação em 2021 até agora, os Fiagros haviam funcionado sob uma regulamentação temporária e experimental, a Resolução CVM 39/2021, que será substituída em março de 2025 pela regulamentação definitiva mencionada acima.

Dentre as principais mudanças na regulamentação definitiva dos Fiagros, destaca-se a inovadora possibilidade de investimento em créditos de carbono[1][2] destinados ao público em geral (varejo), considerando o potencial do nosso país no desenvolvimento desse mercado.

Dentro desse contexto, é importante ressaltar que o país está discutindo o PL 182/2024[3] em tramitação no Senado. O projeto visa regulamentar o mercado de carbono no Brasil, por meio do sistema cap-and-trade, com a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE).

Nesse formato, as empresas possuem um limite máximo de emissão de GEE (cap), a ser estabelecido pelo órgão gestor do SBCE de acordo com os setores/atividades regulados que estejam obrigados a reduzir as suas emissões. A emissão depende de Cotas Brasileiras de Emissões (CBE), que representam o direito de emissão de uma tonelada de carbono equivalente (CO2eq), ou de Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs), que representam a efetiva redução de emissões ou remoção de uma tonelada de carbono equivalente (CO2eq) da atmosfera.

No âmbito do mercado regulado brasileiro, representado pelo SBCE, serão instituídos e transacionados os CBEs e os CRVEs, enquanto os créditos de carbono permanecerão fora desse sistema, com possibilidade de comercialização no mercado voluntário.

O PL também propõe a criação dos Certificados de Recebíveis de Créditos Ambientais (CRAM), que são títulos de crédito nominativos, de livre negociação, representativos de promessa de pagamento em dinheiro ou em entrega de créditos de carbono, emitidos por companhias securitizadoras.

Contudo, conforme amplamente divulgado na mídia, se o PL for aprovado com o texto atual, as obrigações impostas no âmbito do mercado regulado de carbono não se aplicarão ao uso da terra e à produção na agricultura e na pecuária. Apesar da possibilidade de o setor agro participar do mercado voluntário de carbono, esse tema tem sido objeto de extenso debate, considerando que tais atividades são um dos focos prioritários da agenda ambiental internacional de descarbonização da economia.

A dificuldade de incluir o setor agro no mercado regulado está principalmente relacionada à necessidade de utilização de parâmetros mais uniformizados e embasados na ciência e no uso de tecnologia para avaliar e mensurar a emissão e remoção de GEE da atmosfera por essa atividade. Isso considerando as características da agricultura tropical brasileira e as especificidades da diversidade de cultivos, regiões e técnicas utilizadas, atribuindo assim as responsabilidades de forma adequada e justa.

Apesar das legítimas preocupações com desmatamento, incêndios e metano produzido por ruminantes, o agro brasileiro já utiliza técnicas sustentáveis de cultivo e manejo de pastagens e, com uso de parâmetros adequados e tecnologia, acredita-se que poderia se tornar um grande gerador de créditos de carbono. Isso beneficiaria inclusive os produtores de pequeno e médio porte com a geração de renda extra por meio da venda desses créditos.

No entanto, essa questão dos parâmetros para mensuração, avaliação e atribuição de responsabilidades não afeta somente o setor agro, mas coloca-se como um desafio transversal e global. Existem diferentes parâmetros de mensuração não apenas no mercado voluntário, mas também no mercado regulado por diferentes jurisdições, o que acaba gerando impasses de arbitragem regulatória transnacional e desafios geopolíticos relacionados aos critérios de importação ou investimento entre jurisdições que utilizam parâmetros diferentes.

Há importantes debates internacionais em curso sobre a matéria em fóruns como a ONU e a Iosco, além de debates em blocos econômicos, em especial na União Europeia, e em acordos bilaterais.

Sem prejuízo dos alinhamentos necessários e pontos de melhoria para garantir a integridade e eficácia dos mercados de carbono e conseguir assim abarcar todos os setores, considerando a centralidade dessa agenda, as metas internacionais e as projeções econômicas, o mercado de carbono apresenta um grande potencial. Temos a oportunidade de acompanhar de perto sua evolução aqui no Brasil, com a possibilidade de receber um impulso do mercado de capitais.

No mundo dos fundos, os Fundos de Investimento Financeiro (FIFs) já podem investir em créditos de carbono registrados em sistema de registro e de liquidação financeira de ativos autorizado pela CVM ou pelo Banco Central, ou negociados em mercado administrado por entidade administradora de mercado organizado autorizado pela CVM. Diante disso, as primeiras bolsas de crédito de carbono começam a surgir no país, a exemplo da B4 CO2, uma iniciativa da AYA Earth Partners, e a Bolsa de Carbono, uma parceria da B3 com a ACX.

Com a regulamentação definitiva dos Fiagros, verifica-se a ampliação desse tipo de investimento sustentável para a carteira desses fundos, uma medida interessante para impulsionar esse mercado, considerando os benefícios fiscais dos Fiagros para as pessoas físicas.

É certo que existem desafios operacionais e jurídicos a serem superados para que essa modalidade de investimento ocorra com segurança, tais como a forma de controle da titularidade dos créditos de carbono, a definição da sua natureza jurídica[4] e o afastamento dos riscos tributários decorrentes da ausência desse tipo de ativo no rol taxativo previsto na Lei 14.130/2021. Mas, sem dúvida, essa é uma medida que, em tese, pode democratizar o acesso à agenda de descarbonização da economia e aos potenciais ganhos advindos desse mercado verde que está florescendo rapidamente.

Também vale ressaltar que a definição de “crédito de carbono do agronegócio” utilizada no anexo normativos dos Fiagros difere daquela empregada no anexo dos FIFs, em especial quanto à necessidade de serem “originados no âmbito das atividades das cadeias produtivas do agronegócio”. Isso pode gerar desafios devido à natureza fungível dos créditos de carbono, uma vez que, quando esses são emitidos, registrados e se tornam negociáveis, passam a existir desvinculados do agente que implantou o projeto ou possui os direitos sobre a terra que originou o crédito.

Nesse contexto, seria necessário diferenciar o crédito originado de atividades relacionadas à cadeia agroindustrial, passíveis de investimento por Fiagros incentivados, daqueles originados de atividades de outros setores da economia. O cumprimento dessa regra aponta para a possível segmentação desse tipo de ativo no mercado voluntário ou quando da emissão dos CRAMs no mercado regulado, de modo que seja possível verificar que foram originados de projetos de redução de gases de efeito estufa (GEE) nesse setor em especial.

Na página da B4 CO2 encontramos uma possível sinalização dessa tendência, com um nicho de “créditos de agronegócio” separado dos “créditos de carbono”[5]. Não chegamos a analisar se tais créditos do agronegócio cumprem os requisitos para investimento por Fiagros, buscamos aqui somente apontar uma possível tendência de que os ativos ambientais sejam nichados para facilitar o cumprimento da regulamentação.

Outro ponto importante e que merece atenção é que no contexto da atual agenda de descarbonização, que envolve diversos agentes e parâmetros, estão surgindo práticas conhecidas como carbon washing. Essas práticas enganosas ou fraudulentas relacionadas à compensação de carbono e à redução das emissões incluem, por exemplo: o uso inadequado da qualificação de produto ou empresa como “carbono neutro”; o investimento em projetos de compensação que não geram redução real de emissões para a obtenção de créditos de carbono; ou a compensação de emissões de GEEs com créditos de carbono certificados de forma insuficiente de acordo com os parâmetros internacionais.

Esse último problema evidentemente se relaciona com o desafio dos diferentes parâmetros utilizados, que abordamos acima. Diante desse cenário complexo, o gestor precisa ser cauteloso na seleção de ativos ambientais para a carteira do fundo, em respeito ao seu dever fiduciário para com os investidores.

A CVM se preocupou em abordar o tema das metodologias de avaliação, que, como vimos, suscita ainda muitos debates. Para isso, atribuiu ao gestor a responsabilidade de definir as metodologias que podem ser aceitas para fins de certificação da efetiva redução ou remoção de GEE nos projetos de originação dos créditos elegíveis à carteira de ativos.

A escolha está limitada a alguns parâmetros, que devem ser necessariamente confirmados pelo  gestor no âmbito da aquisição de créditos de carbono do Agronegócio, quais sejam:

a metodologia de certificação deve ser aderente às melhores práticas de mercado para verificação, mensuração e reporte da redução ou remoção de GEE da atmosfera, e
a certificação deve ser concedida por instituição que não seja parte relacionada ao gestor e possua capacidade técnica e operacional compatível com o serviço.

Essas responsabilidades são muito importantes, uma vez que esse mercado está suscetível a fraudes ou a certificações baseadas em critérios mais flexíveis, que podem não atender às melhores práticas internacionais, e, consequentemente, serem consideradas carbon washing. Cabe assim ao gestor se atualizar e sempre adquirir os ativos de acordo com certificações confiáveis, que estejam de acordo com as melhores práticas e que sejam emitidas por terceiros com credibilidade.

Em conclusão, a inclusão de créditos de carbono e outros ativos ambientais na carteira dos Fiagros representa um passo importante rumo à democratização do acesso ao mercado de carbono e à promoção de investimentos sustentáveis. Embora esse mercado ainda esteja em seus primórdios no Brasil e enfrente desafios em seu desenvolvimento, não podemos ignorar o avanço da agenda global de descarbonização.

O país assumiu compromissos de redução gradual de GEE perante a comunidade internacional com o propósito de zerar suas emissões líquidas até 2050[6]. Em 2025, o Brasil sediará a COP30 em Belém, no Pará, e com certeza será cobrado por avanços nessa área, incluindo a implementação do mercado regulado de carbono em nível nacional e esforços efetivos para redução de emissões de GEE.

Nesse contexto, ainda que desafios precisem ser superados para consolidação dessa agenda no país, avaliamos que a iniciativa da CVM está alinhada com essa tendência e tem o potencial futuro de destravar valor nesse mercado, abrindo mais uma via para canalizar investimentos do mercado de capitais em direção às metas sustentáveis de descarbonização da economia.

[1] Cada crédito de carbono, também conhecido como Reduções Certificadas de Emissões, representa uma tonelada de carbono equivalente (CO2eq) que deixou de ser emitida na atmosfera, oriundo de projetos certificados que foram capazes de capturar essa quantidade de carbono da atmosfera (também chamado de ‘sequestro’ de carbono) ou emitiu o equivalente a essa quantidade de carbono a menos em comparação com alternativas estabelecidas no mercado, como, por exemplo projetos com utilização de fontes renováveis de energia ou eficiência energética comprovada.

[2] Os Fiagros também poderão investir em Créditos de Descarbonização – CBIO, contudo para fins de delimitação do tema do artigo esses ativos não foram abordados nessa ocasião. O CBIO é um ativo ambiental, criado pela Lei 13.579/2017, que equivalente a emissão evitada de uma tonelada de carbono equivalente (CO2eq), com base no ganho de eficiência energética e na emissão de GEE nos processos de produção, importação e comercialização de biocombustível quando comparado ao combustível fóssil substituto, segundo cálculos e critérios previstos na Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio).

[3] O PL n° 182/2024 se refere a nova identificação sob a qual tramita no Senado Federal o PL nº 2.148/2015 (ao qual, entre outros, foi também apensado o PL nº 412/2022, que foi objeto de debate em audiências públicas em 2023), o qual foi aprovado na Câmara dos Deputados em 21/12/2023, e remetido para apreciação do Senado Federal em 6/12/2024, com nova identificação numérica.

[4] O atual texto do PL 182/2024 define os Crédito de Carbono como “ativo transacionável, autônomo, representativo de efetiva redução de emissões ou remoção de 1 tCO2e (uma tonelada de dióxido de carbono equivalente), com natureza jurídica de fruto civil, […]” . A natureza jurídica de ‘fruto civil’ qualifica-o como bem acessório, pressupondo a existência de bem principal de cuja titularidade será também o seu fruto. Além de bem acessório, de acordo com o Código Civil, o crédito de carbono poderia ser classificado como um bem móvel, indivisível e fungível. Caso essa interpretação prospere quando da aprovação do PL, esse tipo de ativo continuaria sendo enquadrados como ‘ativo transacionável’, e não como ‘valor mobiliário’.

[5]Vide site da B4 CO2: https://b4.capital/pt/

[6] Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o Brasil assumiu o compromisso de reduzir gradualmente as emissões de GEE em 48% até 2025 e em 53% até 2030, em relação às emissões de 2005.

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