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O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 2.416/2024, que dispõe sobre os atos próprios dos médicos, sua autonomia, limites, responsabilidade e juridicidade, amparada na Lei 12.842/2013, conhecida como Lei do Ato Médico, e no Decreto 12.842/2013.
A Exposição de Motivos da resolução esclarece que a finalidade da norma é definir de forma objetiva a atividade médica visando à proteção da vida e da saúde dos cidadãos. Para isso, estabelece limites e vedações ao exercício do ato médico, que têm sido interpretados como uma tentativa de limitar a atuação de outros profissionais de saúde em áreas correlatas à medicina.
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Nesse sentido, este artigo tem como objetivo analisar os principais aspectos da resolução, especialmente os atos definidos como típicos da medicina e que podem ou não ser praticados por outros profissionais de saúde.
Atos privativos dos médicos
A resolução define os atos considerados privativos dos médicos na propedêutica, terapêutica, reabilitação, na administração dos serviços de saúde, bem como na elaboração de atos jurídicos pertinentes à medicina.
No âmbito da propedêutica, a anamnese, o exame físico e mental e a solicitação de exames complementares são definidos como atos privativos dos médicos, enquanto as técnicas utilizadas por outros profissionais de saúde para identificar sintomas e sinais são considerados como entrevistas e avaliações, que devem se concentrar em intervenções terapêuticas dentro de suas respectivas competências
A norma cita ainda que dentistas e nutricionistas têm autorização legal para requisitar e interpretar exames nos limites de suas atuações profissionais. Já os enfermeiros só poderiam requisitar os exames clínicos previstos em protocolos de saúde.
No âmbito terapêutico, a resolução determina que a prescrição de especialidades farmacêuticas, nutracêuticas, agentes esfoliantes e dermoabrasivos, toxina butolínica, bioestimuladores, preenchedores, fios de sustentação e quaisquer dispositivos médicos implantáveis é reservada aos profissionais médicos.
Essa restrição também se aplica à indicação e execução de procedimento invasivo — entendidos como aqueles que penetram parcial ou totalmente no corpo, seja através de um de seus orifícios ou atravessando a pele — sejam eles diagnósticos, terapêuticos ou estéticos. A aplicação de procedimentos que exijam sedação, anestesia local, segmentar ou geral também é definida pela resolução como ato privativo de médico.
Ademais, a resolução determina que a emissão de documentos considerados de importância jurídica e médico-legal é ato privativo dos médicos. Previstos na Resolução CFM 2.381/2024, tais documentos compreendem atestados médicos de afastamento e acompanhamento, declarações de comparecimento, declarações de óbito e relatórios médicos circunstanciados.
Ainda, a elaboração de laudos relacionados a exames complementares de caráter diagnóstico e a definição da causa mortis, embora possam não resultar de uma relação entre médico e paciente, também são considerados privativos dos médicos, dadas suas implicações na saúde pública e seus os desdobramentos no âmbito jurídico (art. 4º, IV).
Exceções a essas regras são os laudos psicológicos e pareceres biopsicossociais emitidos por assistentes sociais, bem como os relatórios emitidos por outros profissionais que atuam em áreas correlatas à medicina. Contudo, tais documentos não podem incluir diagnósticos de doenças nem utilizar a Classificação Internacional de Doenças (CID).
No âmbito da administração dos serviços de saúde, apenas médicos podem coordenar eventos na área da medicina e estão proibidos de ensinar ou delegar atos privativos a pessoas que não possuem a formação médica. Apesar de o artigo 4º, inciso V, letra “f”, indicar que a vedação ao ensino se restrinja a ambientes médicos, o CFM já se manifestou afirmando que “médicos não poderão ensinar atos médicos a outros profissionais de saúde”.
Das vedações
O artigo 6º da resoluções impõe restrições aos médicos, determinando que eles não podem atender a solicitações de exames complementares feitas por não médicos, exceto em casos previstos por lei ou em programas de saúde pública que envolvam a participação de um médico.
Além disso, os médicos não podem delegar ou assumir responsabilidades por atos de outros profissionais relacionados à prescrição de medicamentos e tratamentos ou acatar laudos de exames diagnósticos emitidos por não médicos, a menos que haja previsão legal.
Ainda, os médicos devem notificar o Conselho Regional de Medicina sobre eventos adversos causados por não médicos, assim como comunicar à autoridade policial em casos de suspeita de exercício ilegal da medicina para a realização de necropsia.
Conforme a Exposição de Motivos, os atos relacionados a diagnósticos e prescrições, mesmo em programas de saúde pública, são exclusivos dos médicos, e qualquer delegação ou compartilhamento deve ocorrer sob sua supervisão. O objetivo é proteger a atuação médica e assegurar que diagnósticos e tratamentos sejam sempre realizados por médicos, promovendo assim a segurança nos cuidados de saúde.
Lei do Ato Médico
É importante ressaltar que, durante a tramitação do PL 7703/2006, que aprovou a Lei do Ato Médico, ocorreram vetos relacionados às atividades consideradas como interseccionais com a medicina. Na época, entendeu-se, por exemplo, que o texto original do artigo 4º, inciso I, e do parágrafo 2º inviabilizaria a manutenção de ações preconizadas em protocolos e diretrizes clínicas do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como em rotinas e protocolos já consagrados nos estabelecimentos de saúde privados, que operam com a atuação integrada dos profissionais de saúde, como nos programas de prevenção e controle da tuberculose e hanseníase.
Como se pode verificar a partir do veto apresentado durante a aprovação da Lei do Ato Médico, já havia a compreensão de que, devido à dinâmica das equipes multidisciplinares dos estabelecimentos de saúde, tanto públicos quanto privados, certos atos poderiam ser realizados por profissionais de saúde além dos médicos.
Por outro lado, a Exposição de Motivos da resolução esclarece que o veto, com a equivocada justificativa de preservar os programas de saúde pública, não eliminou o trinômio:
formular o diagnóstico,
fazer a prescrição relativa ao diagnóstico; e
realizar prognóstico baseado no diagnóstico nosológico, conforme previsto no inciso X do artigo 4º da Lei do Ato Médico. Ato impossível de ser alcançado por qualquer uma das profissões que atuam complementarmente à medicina, pois suas formações não contemplam esse trinômio.
Ainda, segundo o CFM, algumas disposições trazidas na resolução já estariam contempladas em normas anteriores, portanto, pacificadas no atual arcabouço legal e regulatório, como os artigos 15 e 30 do Decreto 20.931/1932, e os artigos 1º e 2º da Resolução CFM 1.627/2001.
Do limite de atuação do CFM
Alguns conselhos profissionais se manifestaram contrários à nova resolução, argumentando que algumas de suas disposições são ilegais por contrariarem leis federais que regulamentam o ato médico e o exercício de outras profissões da saúde, como enfermagem, odontologia, fisioterapia, fonoaudiologia e outros.
As atribuições do CFM são definidas pela Lei 3.268/1957, regulamentada pelo Decreto 44.045/1958. De acordo com o artigo 33, inciso XIII do decreto: “Ao Conselho Federal de Medicina compete: XIII – expedir normas para o desempenho ético da Medicina”.
Nesse contexto, a autonomia e a divisão de responsabilidades entre as diversas profissões de saúde trazem à tona a necessidade de se observar todo o arcabouço deontológico e legal existentes, para evitar conflitos normativos, assegurar a plena eficácia dessas diretrizes, bem como propiciar segurança jurídica aos profissionais de saúde subordinados às normas aplicáveis às suas atividades.
Como exemplo, as limitações estabelecidas no âmbito terapêutico — redação do artigo 4º, inciso II, letra “a” que determina que a aplicação de toxina butolínica, bioestimuladores, preenchedores, fios de sustentação e quaisquer outros dispositivos implantáveis deve ser condicionada a prescrição médica — têm gerado questionamentos. Isso porque ela contraria regulações já emitidas pelo Conselho Federal de Odontologia (Resolução CFO 176/2016) sobre o tema.
Ainda, para o Conselho Federal de Enfermagem, a vedação trazida pelo artigo 4º da resolução, que define que a prescrição de medicamentos, o diagnóstico nosológico e a solicitação de exames como atos exclusivos dos médicos, é ilegal, pois contraria a Lei 7.498/1986, que regulamenta o exercício da enfermagem no Brasil.
De acordo com o artigo 9º da supracitada lei, os enfermeiros têm o direito de realizar, privativamente, atos como: consultas de enfermagem, prescrição de assistência, prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde, entre outros.
A lei não menciona que o profissional de enfermagem deve realizar apenas os atos típicos de sua profissão sob supervisão médica, como indicado no artigo 5º, § 3º da resolução, vejamos: “Ao delegar a outros profissionais da saúde, decorrente de sua prescrição, a execução de atos não privativos dos médicos, deverá assegurar que sejam realizados sob sua supervisão, assumindo responsabilidade pela correta execução das ações delegadas.”
Já a Lei 8.234/1991, que regulamenta o exercício das atividades dos nutricionistas, dispõe em seu artigo 4º que são suas atribuições: (i) a prescrição de suplementos nutricionais necessários à complementação da dieta e (ii) a solicitação de exames laboratoriais para o acompanhamento dietoterápico. No entanto, isso parece ser contrariado pelo artigo 4°, inciso I, § 1º da Resolução, que estabelece que a requisição de exames complementares é um ato privativo dos médicos.
Além disso, de acordo com a Lei 5.081/66, que regulamenta o exercício da odontologia no Brasil, os cirurgiões-dentistas têm a competência para prescrever e aplicar especialidades farmacêuticas de uso interno e externo indicadas em odontologia.
Entretanto, para o CFM, não se trata de uma imposição, mas da compreensão das competências e limites já definidos nas leis que regem cada profissão. Para o órgão, o parâmetro para delinear competências exclusivas ou compartilhadas na área médica está na legislação que regulamenta cada profissão, a qual serviu de base para os limites estabelecidos na Resolução.
Em suma, vê-se que a nova resolução do CFM condiciona a aplicação de especialidades farmacêuticas à prescrição médica, estabelece que a requisição de exames complementares é um ato privativo dos médicos e define que a prescrição de medicamentos, o diagnóstico nosológico e a solicitação de exames são atos exclusivos dos médicos. Entretanto, tais entendimentos podem ser interpretados como:
contrários às regulações do Conselho Federal de Odontologia;
limitadores das atribuições dos nutricionistas conforme definido pela sua lei regulamentadora; e
restritivos da atuação dos enfermeiros.
Esses exemplos ilustram como as diretrizes da nova resolução do CFM podem entrar em conflito com as definições legais já estabelecidas para outras profissões da saúde. A harmonização dessas normas é essencial para garantir que todos os profissionais possam exercer suas competências de forma plena e segura, respeitando a legislação vigente e promovendo a colaboração interprofissional.
Conclusão
Embora se entenda que as normas editadas pelo CFM não podem determinar limites e vedações a outras profissões, uma vez que são restritas ao exercício da medicina, não se pode desconsiderar que o conflito institucional estabelecido entre conselhos profissionais pode prejudicar a colaboração e reduzir a eficiência dos serviços de saúde, comprometendo, ao final, a segurança do paciente.
Portanto, é essencial ter cautela ao regular temas multidisciplinares que possam interferir nas atividades de outros conselhos profissionais. Isso é especialmente importante porque a atenção à saúde envolve diversas formações, cada uma essencial para a jornada do paciente, onde médicos, enfermeiros, cirurgiões-dentistas, farmacêuticos, fisioterapeutas e outros profissionais colaboram na recuperação da saúde e promoção do bem-estar do paciente.
Em conclusão, é fundamental que as leis vigentes sejam respeitadas, assegurando que a publicação de normas infralegais ocorra dentro dos limites de atribuições legais conferidos a cada conselho profissional, de acordo com uma interpretação sistemática e coerente do sistema legal e profissional como um todo, de modo a garantir que cada profissão atue dentro de seus limites legais, promovendo a colaboração multidisciplinar e melhorando a qualidade da atenção à saúde.