O STF e a assistência farmacêutica no SUS: um remédio amargo?

Spread the love

Após quase 16 anos da admissão do RE 566471/RN e dois anos do reconhecimento da repercussão geral no RE 1366243/SC, o Supremo Tribunal Federal (STF) proclamou o resultado dos julgamentos dos Temas 6 e 1234.

Com isso, a Corte editou a Súmula Vinculante 61, firmando o seu novo posicionamento quanto ao fornecimento de medicações registradas na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não padronizadas no Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de decisões judiciais.[1]

Com notícias direto da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para grandes empresas do setor. Conheça!

Medicação não padronizada é aquela que não consta nas listas de medicamentos essenciais disponibilizados gratuitamente pelo SUS. Esses medicamentos são selecionados de acordo com critérios como eficácia, segurança e custo-benefício, sendo considerados fundamentais para suprir as necessidades básicas de saúde da população.

A decisão sobre a incorporação desses novos medicamentos cabe à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), que avalia as evidências científicas e os impactos financeiros para determinar se o medicamento será oferecido ou não para prescrição rotineira no sistema público de saúde.

Os contornos do julgamento

O julgamento do Tema 6 ocorreu após a conclusão das discussões do Tema 1234, valendo-se do ali decidido como fundamentos. Mesmo que originalmente o primeiro tema tratasse do fornecimento de medicamentos de alto custo, os casos foram julgados de forma conjunta, para garantir a coerência nas teses fixadas.

Em vista da complexidade jurídica e da sensibilidade social do tema, que afeta diretamente a saúde e a sobrevivência de muitos brasileiros, destacou-se o procedimento adotado pelo tribunal na tomada de decisão. Em vez de seguir por um caminho estritamente jurisdicional, o ministro relator Gilmar Mendes convocou todos os atores responsáveis pela gestão do SUS, incluindo órgãos de controle e representação, além de representantes dos Três Poderes, para que, em consenso, definissem as diretrizes relativas ao fornecimento de medicações não padronizadas.

Nesse contexto, evidenciou-se o protagonismo do Judiciário em relação aos demais Poderes, que assumiu o papel de verdadeiro regulador das políticas públicas, além de sua função tradicional de mediador de conflitos e aplicador das normas. Esse cenário ressalta a crescente juridificação das decisões políticas, que, constantemente judicializadas, passaram a somente produzir efeitos concretos mediante validação posterior do Judiciário.

Sabe-se que tais questões, em princípio, deveriam ser conduzidas pelo Poder Executivo, principal responsável pela gestão do SUS. No entanto, a necessidade de pacificar e uniformizar a jurisprudência sobre esses temas, bem como de alinhar as decisões judiciais a uma visão estrutural do sistema — que leve em conta as nuances de seu financiamento e a necessidade de prover assistência à saúde de forma universal e integral — resultou na composição nos moldes em que ela ocorreu.

Nada obstante, o Plenário do Supremo homologou parcialmente os acordos celebrados pelos entes referidos, que além de estabelecerem critérios para resolver a antiga celeuma acerca da competência jurisdicional e do ressarcimento interfederativo, definiram as situações excepcionais nas quais se dará o fornecimento de medicações não padronizadas no SUS.

Repartição de responsabilidades, legitimidade passiva e competência de justiça

Quanto à repartição de responsabilidades entre os entes federativos, o critério adotado foi o de valor do tratamento anual do fármaco não incorporado, com base no Preço Máximo de Venda do Governo (PMVG). O acordo homologado definiu que:

até 7 salários-mínimos, o custeio será de responsabilidade do Estado;
acima de 7 e abaixo de 210 salários-mínimos, haverá ressarcimento pela União de 65% e custeio de 35% pelo Estado; e
acima de 210 salários-mínimos, a incumbência será da União. Para tratamentos oncológicos, deverá haver acordos específicos na Comissão Intergestores Tripartite (CIT).

Além disso, quando este valor anual ultrapassar 210 salários-mínimos, a Justiça competente para julgar o caso será sempre a Federal; e, do contrário, eventuais ações deverão ser ajuizadas na Justiça Estadual. Isso não significa, porém, que estado e município não devam figurar no polo passivo das ações na Justiça Federal, podendo haver condenação supletiva destes entes para facilitar o cumprimento da ordem judicial, com posterior ressarcimento pela União por repasses via fundos.

Importante pontuar, ainda, que não foi alterada a regra já fixada no Tema 500 do STF, que adotou a tese segundo a qual o pedido de fornecimento de medicamento sem registro na Anvisa deve ser proposto em face da União, pois esse registro é um dos pressupostos para incidência da nova tese.

Restrições ao fornecimento de medicações não padronizadas por decisões judiciais

Independentemente das particularidades na condução do julgamento, o mais relevante agora é avaliar seus resultados práticos e o impacto na vida dos pacientes. O ponto de maior interesse para o jurisdicionado foi a restrição mais rigorosa ao fornecimento de medicamentos não padronizados, com a definição de um rol taxativo de requisitos cumulativos e excepcionais, e, apenas quando esses requisitos forem verificados, os magistrados poderão obrigar os entes federativos a adquirir tais medicamentos.

No rol estabelecido, alguns dos requisitos para o fornecimento foram mantidos em relação ao entendimento anteriormente em vigor, sendo eles:

 a negativa administrativa do fornecimento,
 a incapacidade financeira do paciente,
 a impossibilidade de substituição por outro fármaco já previsto nos protocolos terapêuticos da Conitec e;
a imprescindibilidade clínica do tratamento.

Quanto às mudanças trazidas pelo novo posicionamento, temos como requisitos a exigência, sob pena de nulidade do ato judicial, da análise: i) do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou demora em sua apreciação, e ii) da comprovação da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do medicamento, necessariamente respaldadas por ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise.

Em relação à obrigação do Judiciário de analisar o ato da Conitec que indeferiu a incorporação do fármaco, tal análise se limita à verificação da regularidade do procedimento e da legalidade do ato de não incorporação questionado. Portanto, restringiu-se substancialmente a margem para eventuais discussões de mérito em relação ao posicionamento técnico do órgão, inclusive de ordem orçamentária.

Portanto, quando a negativa de padronização de um tratamento é realizada pela Conitec sem violar as normas legais vigentes, o seu fornecimento por meio de decisão judicial passou a ser vedado, mesmo que o tratamento ofereça vantagens terapêuticas. Esses acréscimos têm como objetivos nítidos assegurar que o Judiciário respeite as escolhas administrativas do Executivo, e elevar o nível de fundamentação técnico-científica nas decisões judiciais.

Curiosamente, o que à primeira vista parecia ser uma interferência do Judiciário nas competências dos outros Poderes, revelou-se, na verdade, um mecanismo de autocontenção, para conformar a atuação dos magistrados às decisões do órgão cujo papel institucional é justamente decidir sobre o tema: a Conitec. A posição atual do STF, portanto, traz mais previsibilidade ao sistema público, mas com um severo reflexo negativo para os usuários, de restringir o acesso aos melhores tratamentos disponíveis, muitas vezes com base exclusivamente em análises de custo-efetividade.

Um exemplo material desta circunstância está na análise realizada pela Conitec para a incorporação do Pembrolizumabe em monoterapia ou associado à quimioterapia para pacientes com câncer de pulmão de células não pequenas avançado ou metastático (PD-L1 positivo) em primeira linha de tratamento, que deu parecer negativo à padronização (Relatório nº 420/2023), de onde se extrai:

Os participantes com experiência no uso do pembrolizumabe relataram como efeitos positivos a baixa toxicidade, a facilidade de manipulação do medicamento e a ausência de eventos adversos graves. O aumento da sobrevida, a remissão da doença e o menor tempo de tratamento também foram dignos de nota. Os participantes mencionaram ainda a melhora na qualidade de vida e os ganhos relacionados à manutenção e realização das atividades cotidianas […]

Recomendação final da Conitec

Os membros do Comitê de Medicamentos presentes na 16ª Reunião Extraordinária da Conitec no dia 1º de novembro de 2023 recomendaram, por maioria simples, a não incorporação do Pembrolizumabe em monoterapia ou associado à quimioterapia para pacientes com câncer 8 de pulmão de células não pequenas avançado ou metastático (PD-L1 positivo) em primeira linha de tratamento.

A recomendação considerou que os valores estimados para o custo do tratamento por ano de vida com qualidade eram muito superiores ao limiar de custo-efetividade utilizado pela Conitec, muito embora tenha reconhecido os benefícios clínicos da tecnologia.

Neste caso, foram observados as normas, prazos e procedimentos referentes ao processo de padronização do fármaco, mas que resultou na sua não incorporação, mesmo com evidências da melhor efetividade e impacto positivos na vida do paciente. Aos que sofrem de câncer de pulmão e pretendem o uso deste medicamento via SUS, a porta se fechou, baseando-se unicamente na questão pecuniária.

Por outro lado, é digno de reconhecimento o avanço da qualidade do debate no que diz respeito à atuação do Judiciário nas demandas desta natureza. Ao exigir a utilização da medicina baseada em evidência e elevando o padrão informacional necessário para conceder esses fármacos, o Estado acaba por se blindar de situações que possam comprometer a integridade financeira do SUS.

Vale destacar, ainda, as propostas de melhor sistematização para o fornecimento de medicamentos, através de uma plataforma nacional que unificará todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármacos, de fácil consulta e informação ao cidadão, na qual constarão dados básicos para possibilitar a análise e eventual resolução administrativa, além de posterior controle judicial.

Conclusão

O julgamento dos temas 6 e 1234 encerra questões que ocuparam as Cortes nacionais por décadas, fixando uma série de pontos e previsões que, de fato, contribuem para uma maior previsibilidade do orçamento público e segurança jurídica no Brasil.

Em contrapartida, o Judiciário terá menos liberdade para agir segundo seus próprios critérios para efetivar o direito à saúde em caráter universal e integral, e ficará mais subordinado às diretrizes das políticas de assistência farmacêutica previamente determinadas pelo Poder Executivo.

Assim, o jurisdicionado poderá ter mais segurança em relação ao fornecimento de medicações não padronizadas pelo SUS, e em quais situações ele efetivamente poderá exigi-las judicialmente. Da mesma forma, os gestores públicos terão orçamentos cada vez mais precisos e com maior previsibilidade, caminhando para a melhor gestão do erário na efetivação de políticas públicas de acesso à saúde.

Se o STF não tivesse adotado essa postura, qualquer solução acordada entre as demais partes envolvidas provavelmente seria, conforme a tradição já consolidada no país, levada ao Supremo para uma decisão definitiva. Isso reforça o papel controverso do tribunal como instância máxima de decisão, mesmo quando essas questões fundamentais já tenham sido tratadas em outras esferas.

Por fim, como observação crítica, embora o debate nos tribunais voltado para equilibrar os interesses em prol do sistema de saúde esteja em evolução, ainda parece distante de alcançar questões semelhantes no campo da saúde suplementar.

Nesse ambiente, a tensão orçamentária e as incertezas geradas pela judicialização afetam tanto os consumidores quanto as operadoras de saúde, sendo igualmente prejudiciais. A ausência de uma regulação clara nesses casos mantém um cenário de instabilidade para todas as partes envolvidas, e poderia ser aprimorada.

[1] Súmula vinculante 61- A concessão judicial de medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471).

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *