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Diferentemente de concepção mais tradicional, autotutela não é sinônimo de barbárie ou de ilegalidade. Como qualquer meio de solução de conflitos, os agentes envolvidos nessa relação devem atuar nos limites do ordenamento jurídico.
Caracteriza-se por ser uma tutela unilateral: o sujeito, cujos interesses foram lesados ou ameaçados, adjudica um resultado em seu favor, para cessar ou impedir tais ofensas, submetendo o ofensor.
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A afinidade com a autorregulação é fundamental para perceber a grande projeção dessa forma de atuação em ambientes digitais. Seria difícil conceber dinamicidade, agilidade e eficiência de aplicativos ou plataformas sem que usuários, provedores ou gestores pudessem tutelar seus interesses sem precisarem se socorrer de terceiros, como o Judiciário, ou buscarem autocomposição a todo momento.
Mesmo que a autotutela possa se sujeitar a posterior controle, seu emprego apresenta vantagens já percebidas por diversos setores, como superação de barreiras territoriais, adaptação aos modelos de negócios que dependem dessas características, servir de primeira medida de proteção à disposição do interessado, regular de condutas praticadas internamente e, no caso da tecnologia, a facilidade de ser concretizada por algoritmos.
Contudo, nada disso significa que ela deva agravar assimetrias e violar direitos fundamentais.
Um dos grandes desafios para a legitimidade da tutela unilateral no plano digital é o respeito e a preservação desses direitos. O exemplo do exercício da liberdade de expressão em redes sociais ou plataformas digitais é emblemático: o cerceamento de postagens, o bloqueio de perfis e outras sanções aplicáveis representam o exercício desse poder unilateral, levado a efeito tanto pela plataforma, para fazer valer os termos de uso, quanto por usuários, que buscam proteger seus interesses.
Seria possível enfrentar diversas discussões a respeito da liberdade de expressão nesses ambientes, como a influência de opiniões na formação do convencimento e na autodeterminação dos indivíduos, a exposição ideológica contrárias a grupos minoritários, a disseminação de informações falsas e os seus impactos no processo político, o papel da plataforma para manter a isonomia entre os seus participantes sempre que realiza alguma restrição etc.
Cada um desses tópicos renderia reflexões específicas, mas todos eles possuem direta ligação com a autotutela: quando um usuário ou a plataforma se vale dos mecanismos existentes para bloquear, banir ou impor outra restrição à publicação, com base na ilicitude que apresenta, configura-se o exercício da tutela unilateral. Embora passem despercebidos do cotidiano, esses exemplos demonstram o caráter operacional da autotutela para, em específico, a autorregulação e, em geral, a vida em sociedade.
Na relação entre poder unilateral, uso da tecnologia e direitos fundamentais, a atuação dos tribunais nacionais ocupa um capítulo importante. Não se trata apenas da tarefa jurisprudencial de fixar limites para reconhecer a licitude da tutela unilateral, mas definir, em que medida, deve ser preservada a disposição de vontade das partes para se garantir a observância dos direitos de defesa e ao contraditório à luz de cada uma das estruturas de tecnologia usadas.[1] Ao analisarem as condutas internas desses ambientes, os tribunais também devem realizar exame cuidadoso de cada modelo para concluir se ele apresenta conformidade legal.
Um dos reflexos dessa interação com o Judiciário é o debate travado nos temas 533 e 987 de repercussão geral (RE 1.037.396/SP e RE 1.057.258/MG).
Busca-se definir o regime de responsabilidade de provedores de aplicativos ou de ferramentas de internet pelo conteúdo gerado por seus usuários, que possam ofender direitos da personalidade, incitar ódio ou difundir notícias fraudulentas. Em ambos os casos, o STF examinará a constitucionalidade do artigo 19 da Lei 12/965/14 (Marco Civil da Internet), que prevê a necessidade de ordem judicial específica para remoção de conteúdo ilícito produzido por terceiro para configuração da responsabilidade civil.
O cerne da questão vai além disso: a prevalecer a desnecessidade de ordem judicial e, consequentemente, a responsabilidade pela simples existência do conteúdo ilícito, os provedores de aplicativos teriam de exercer, permanentemente, autotutela para remoção de conteúdo, o que demandaria uma série de esclarecimentos do que é conteúdo ilícito, quem definirá o que é ilícito, em qual momento o conteúdo deve ser excluído etc. A ser esse o resultado do julgamento, estar-se-ia diante de um aparente dever de autotutela, o que, por definição, contrastaria com a noção consagrada de poder de atuação unilateral.
Um elemento adicional e essencial neste quadro é o julgamento do REsp 2139749/SP[2]. Elenco algumas razões que me fazem chegar a essa conclusão, para, em seguida, enfrentá-las: (i) a amplitude dos poderes da plataforma; (ii) o modo com que o conteúdo foi moderado; e (iii) os critérios para aferir a regularidade da moderação.
Antes, porém, um breve contexto em que foi proferida a decisão do STJ. O recurso especial apresentava o seguinte pano de fundo: um médico neurologista publicou vídeos no YouTube relativos à pandemia da Covid-19. Esses vídeos foram removidos pela plataforma, sob a justificativa de violação da política de spam, prática enganosa e golpe. A função live também foi bloqueada, o que também impediu a realização de vídeos ao vivo.
Em sua defesa, o médico sustentou que a liberdade de expressão deve prevalecer sobre a livre iniciativa e que a plataforma teria agido com abuso comercial e imposição de meios coercitivos desleais no fornecimento do serviço ao bloquear a função live, cancelar os 7.900 inscritos do canal e utilizar algoritmo para limitar o tráfego e a divulgação dos vídeos.
Pela primeira razão, o acórdão traz linha interpretativa do artigo 19 do Marco Civil da Internet favorável à autotutela, como medida adequada para o controle de condutas naquele ambiente. A decisão reconhece a regularidade da iniciativa do provedor em aplicar mecanismos de moderação de conteúdo “como uma atividade lícita de compliance interno da empresa”.
Ao reconhecer que o referido dispositivo legal “não impede e nem proíbe a moderação de conteúdo” por iniciativa do provedor, está-se reconhecendo a prevalência das regras da autorregulação referentes à tutela unilateral.
Em outros termos, entende-se recomendável e desejável que o provedor assim atue, pois se trata de um esforço conjunto – como é característico na autotutela a divisão de tarefas entre Estado e particulares – o controle à “desinformação (as chamadas fake news) e de práticas ilícitas, que proteja crianças e adolescentes e que fortaleça os princípios de liberdade, direitos humanos, universalidade, privacidade, neutralidade, inovação e autonomia informacional”.
Pela segunda razão, a missão de classificar como ilícito o conteúdo ganha sinalizações relevantes para orientar os provedores. Além de diretrizes fixadas pela jurisprudência sobre o abuso da liberdade de expressão, o consenso científico também é elemento determinante.
No caso concreto, reconheceu-se que o médico propagava informações de segurança da hidroxicloroquina para tratamento contra a Covid-19, sem homologação pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao excluir a publicação, o provedor apoiou-se em seus termos de uso, que incorporaram orientações da comunidade científica a respeito do que era ou não aceitável no tratamento.
É justamente neste ponto que reside a parte relevante do entendimento do STJ: sem ingressar no mérito das diretrizes da medicina, foi aceita a vinculação aos termos de uso como fundamento suficiente para a autotutela. Sob o ponto de vista da tutela unilateral, não haveria um problema inicial quanto à pertinência do conteúdo apresentado pelo usuário, mas se esse conteúdo se adequa às regras dos termos de uso, considerando os aspectos sociais a serem preservados neste espaço virtual e a viabilidade de que o mesmo conteúdo restringido seja veiculado pelo usuário em outro lugar.
Pela terceira razão, a conclusão do STJ sobre a regularidade formal da conduta do provedor é de grande relevância. Em texto anterior, salientei não haver antagonismo entre autotutela e devido processo legal. O segundo serve para conformar e adaptar o exercício do primeiro.
Por isso, quando o tribunal reconhece não haver “violação dos direitos fundamentais do recorrente quanto ao direito de se manifestar, tendo em vista que a plataforma o notificou acerca da necessidade de reavaliar e retirar os conteúdos tidos como irregulares, franqueando-lhe o direito ao contraditório”, confirma-se que o modelo de autotutela a ser adotado deve ser precedido pela oportunidade de ciência, defesa e manifestação do usuário. Parece-me que somente assim será possível avançar para uma tutela unilateral licitamente praticada em ambiente digital.
Finalmente, a importância do precedente não se limita aos casos de moderação de conteúdo. Verifica-se que o STJ passa a fixar balizas gerais do regular exercício da autotutela, que, como dito no início, encontra terreno fértil no ambiente digital. A abrangência da decisão tem o potencial de alcançar as mais variadas relações, não só o caso de exercício da liberdade de expressão: comércio eletrônico, relações de trabalho por aplicativos, apostas e jogos online, dentre outros.
[1] Sobre a relevância do exame do modelo de cada plataforma: SALLES, Raquel Bellini; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Autotutela em plataformas digitais: estudo de caso do algoritmo ‘content ID’ e de seus contornos contratuais. In: EID, Elie Pierre (coord.). Ensaios sobre autotutela. Londrina: Thoth, 2024, pp. 231-234.
[2] STJ, REsp n. 2.139.749/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/8/2024, DJe de 30/8/2024.