Presunção de consentimento para a doação de órgãos post mortem no Brasil

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Setembro é o mês de conscientização e incentivo à doação de órgãos, mas, assim como as demais campanhas, o tema não pode ficar restrito a um período específico. É preciso atenção constante para o avanço de políticas públicas acerca de questões tão sensíveis.

Em relação à doação de órgãos, aproximadamente 65 mil pessoas estão na lista de espera do Sistema Nacional de Transplantes. De acordo com dados divulgados em 2024, morrem, em média, 3.000 pessoas por ano, enquanto aguardam na fila.

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Essa espera afeta tanto quem precisa do transplante quanto as pessoas ao seu redor. Além da necessidade em si de um órgão, as dificuldades fáticas para a realização do transplante – como o transporte do órgão e a situação de sobreaviso permanente em que fica o potencial receptor – tornam o processo ainda mais angustiante.

Recentemente, poucos dias após o Dia Nacional da Doação de Órgãos, celebrado em 27 de setembro, uma tumultuada corrida contra o tempo para a realização de um transplante virou notícia. De um lado, a Linha Vermelha, no Rio de Janeiro, teve que ser fechada, para dar passagem ao veículo que transportava um fígado. Do outro, a futura receptora do órgão enfrentava dificuldades para sair de casa em direção ao hospital, por causa de um tiroteio na comunidade onde mora.

Vale destacar que o transplante de fígado é o segundo tipo mais comum no Brasil e que, mesmo sendo realizado há 20 anos, só foi incluído no rol da ANS em 2023. Diante das dificuldades estruturais, da escassez de órgãos para doação e da crescente lista de espera por transplantes, é preciso rever a lógica da regulamentação brasileira sobre o assunto.

No Brasil, é a Lei 9.434, de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Originalmente, seu artigo 4º previa que, salvo manifestação de vontade em contrário, seria presumida a autorização para a doação post mortem de órgãos, tecidos e partes do corpo humano.

Em 2001, a Lei 10.211 alterou a redação desse artigo, condicionando a doação à autorização do cônjuge ou parente maior de idade, observada a linha sucessória. A imposição de uma autorização dada por familiares para a doação post mortem, porém, revela-se um elemento dificultador da concretização de transplantes e recebe muitas críticas.

Em primeiro lugar, a exigência de autorização pelo familiar pode ir de encontro à própria vontade da pessoa falecida. Afinal, caso a pessoa tivesse escolhido ser doadora, mas não tivesse informado a seus parentes, seu desejo poderia ser frustrado, pela falta de comunicação. É preciso lembrar que, em nossa sociedade, a morte ainda é um assunto que enfrenta resistência, de modo que muitas famílias não conversam sobre ela e seus efeitos, sejam eles patrimoniais ou acerca de questões como a doação de órgãos.

Além disso, em uma hipótese ainda mais grave, se, apesar da inequívoca opção de uma pessoa por ser doadora, seus familiares não concederem a autorização após sua morte, é esta decisão que prevalecerá, violando a autonomia privada do potencial doador e frustrando as expectativas de quem aguarda na fila para o transplante.

Outro ponto a se considerar é que, normalmente, a morte de um parente já é um momento difícil. Exigir mais uma tomada de decisão – neste caso, acerca da doação de órgãos daquela pessoa, assunto que talvez nunca tenha sido discutido entre eles – pode sobrecarregar seus familiares.

Com o intuito de reverter esse obstáculo à doação de órgãos, diversos projetos de lei estão em tramitação no Congresso Nacional, embora não tenha havido um andamento significativo em muito tempo. Um deles é o PL 3643/2019, de autoria do senador Lasier Martins, que propõe a alteração da lei de doação de órgãos para tornar explícito que o consentimento familiar só se faz necessário quando o potencial doador não tenha, em vida, se manifestado expressa e validamente a respeito.

Essa alteração representaria um avanço em relação à situação atual, por respeitar a expressa manifestação de vontade do doador, que já pode ser feita junto a um cartório, pela internet, por meio da Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos. No entanto, condicionar a doação de órgãos a uma prévia manifestação expressa ainda parece insuficiente.

Diversos países, como Portugal, Espanha, França e Itália, já adotam o modelo do consentimento presumido para a doação de órgãos. Segundo esse modelo, toma-se como regra que toda pessoa será doadora de órgãos após sua morte, salvo manifestação de vontade em contrário.

É importante ressaltar que a presunção do consentimento não obriga a doação de órgãos. Nesse contexto, deve ser assegurada a possibilidade de qualquer cidadão manifestar sua recusa em ser doador, independentemente de justificativa. Afinal, embora não haja muitas justificativas racionais para a recusa da doação post mortem, existem alguns fatores que podem levar a essa recusa. Diante dos receios verificados, como o da mutilação do corpo, por exemplo, é oportuno destacar que a própria lei 9.434 já prevê que o corpo do falecido deve ser recomposto, para ser entregue à família em condições dignas para o sepultamento.

Nesse contexto, também estão em tramitação na Câmara dos Deputados alguns projetos de lei que propõem a adoção do modelo de presunção de consentimento. Assim, encontram-se apensados o PL 10.733/2018, o PL 1774/2023 e o PL 2060/2023. De modo geral, todos estes visam à alteração da lei 9.434 para se presumir autorizada a doação post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, reconhecendo, também, a qualquer pessoa a prerrogativa de se declarar não-doador.

É certo que a questão deve ser objeto de deliberação, não restrita às formalidades do processo legislativo, mas também sensibilizando a sociedade, para que as pessoas não enxerguem a presunção do consentimento como uma imposição legal, o que poderia criar maior resistência a uma atitude – a doação de órgãos – que deveria ser naturalizada.

Muitas vezes, o que falta para a adesão da sociedade a uma proposta de mudança normativa é a sensibilização, que costuma ocorrer quando as pessoas se deparam diretamente com a questão, em suas próprias vidas ou com pessoas próximas. No caso da senhora que recebeu o fígado que parou a Linha Vermelha, após a realização do transplante, seu filho informou que decidiu se tornar doador de órgãos.

Outro exemplo recente, de maior repercussão, foi dado pelos familiares do Faustão. Após o apresentador de TV ter precisado de um transplante de coração, sua família manifestou apoio a um dos projetos de lei que propõe o modelo de presunção do consentimento. Quando essas questões atingem pessoas de interesse público, como o Faustão, ou são abordadas pelas mídias, como na telenovela De Corpo e Alma, a sociedade também é convidada a discutir o assunto.

Portanto, faz-se necessário e urgente retomar a discussão sobre a adoção do modelo de consentimento presumido para a doação de órgãos no Brasil, para que a tramitação dos projetos de lei avance, com o apoio da sociedade, e esta se torne a regra, ressalvando-se o direito individual de se recusar a ser doador.

Dessa forma, espera-se aumentar a quantidade de órgãos disponíveis para doação, a ponto de ser suficiente para atender a demanda dos que se encontram na lista de espera do SUS. Assim, avançaremos na concretização dos direitos à vida e à saúde e do objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

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