Retomada de julgamento pelo STF traz novas perspectivas para gestão de resíduos sólidos no país

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O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou, em 2024, a discussão acerca da constitucionalidade de atividades de gestão de resíduos e da implementação de aterros sanitários em Áreas de Preservação Permanente (APPs). O tema tem relação direta com trechos do Código Florestal (Lei 12.651/2012) e com direitos de estatura constitucional, a exemplos dos direitos à saúde e ao meio ambiente equilibrado.

Em um julgamento de 2018, o STF havia concluído ser inconstitucional a expressão “gestão de resíduos” entre o rol de atividades e serviços excepcionais que podem ser realizados, por utilidade pública, nas APPs. Na época, foram julgadas uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 42) e quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs).

Agora, a Corte se debruça sobre embargos à decisão de 2018 e traz novamente o assunto à tona.

“Em 2018, por maioria, foi declarada inconstitucional a expressão ‘gestão de resíduos’ prevista no art. 3º, VIII, ‘b’, do Código Florestal. Isso ocorreu com base no argumento de que a gestão de resíduos e a proteção ecológica são direitos fundamentais antagônicos e colidentes, devendo prevalecer, neste caso, a defesa do meio ambiente”, explica Ingo Wolfgang Sarlet, pós-doutor em Direito pela Universidade de Munique e professor titular da PUC-RS.

O termo “gestão de resíduos” passou a ser inconstitucional no caso, porém continuou prevista na lei a possibilidade de se realizarem, nas APPs, obras e serviços públicos voltados ao transporte, sistema viário, energia, telecomunicações, saneamento e mineração.

O manejo de resíduos é considerado uma das partes integrantes dos pilares do saneamento básico, assim como a água potável, o esgoto sanitário e a drenagem e manejo de águas pluviais.

Gestão de resíduos sólidos e aterros sanitários

Para a implementação de um aterro sanitário, é necessário atender obrigatoriamente às exigências ambientais. Antes do início de suas operações, é preciso realizar um licenciamento ambiental, regido por normas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Nesse processo, após a análise dos estudos de impacto ambiental, o aterro alcança uma licença ambiental prévia. Em seguida, recebe uma licença ambiental de instalação, para efetivamente implementar a estrutura.

Por fim, depois de ser instalado e certificado pelo órgão ambiental, há a solicitação da licença de operação, que é concedida se as etapas anteriores estiverem dentro da conformidade com a viabilidade ambiental. Após a instalação, os aterros continuam sendo fiscalizados por órgãos ambientais.

Se o termo “gestão de resíduos” do Código Florestal for mantido como inconstitucional, será necessário desativar parte dos aterros sanitários ativos no Brasil. Nesse caso, 10 das 27 capitais brasileiras ficarão irregulares na dispensação de resíduos sólidos. Apenas nas capitais, sem contabilizar as populações que vivem em áreas metropolitanas, mais de 23 milhões de pessoas serão afetadas com a manutenção dessa decisão. Os dados são da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema). 

Nova etapa do julgamento pelo STF

Em 2024, o STF retomou o julgamento do recurso que questiona essa decisão. Os embargos foram opostos pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pelo Partido Progressista (PP), com o argumento de que os aterros devem ser mantidos na lista de excepcionalidades, uma vez que se diferem dos lixões, por serem desenvolvidos com técnicas que visam à proteção ambiental e da comunidade. 

O julgamento dos embargos declaratórios opostos ao acórdão da ADC 42 teve início em agosto de 2024 pelo Plenário Virtual do STF, após o voto do ministro Luiz Fux, relator do caso. 

Em entrevista ao Estúdio JOTA, o advogado Ingo Wolfgang Sarlet, pós-doutor em Direito pela Universidade de Munique e professor titular da PUC-RS, detalha os aspectos mais importantes desse novo capítulo. 

JOTA: Como uma gestão de resíduos adequada se relaciona com aspectos socioambientais e com os direitos fundamentais?

SARLET: A gestão de resíduos, mediante o tratamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos, representa a prestação de um serviço essencial de alto interesse social e utilidade pública. Notadamente por estar diretamente relacionada à proteção do meio ambiente, em especial pela sua relevância para a própria fruição e efetividade do direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tal como consagrado no art. 225 da CF/1988. 

A gestão de resíduos também assegura o direito fundamental à saúde, na sua dupla dimensão individual e coletiva (art. 6º, caput, e art. 196 da CF/1988), e o direito fundamental ao saneamento básico, que, por sua vez, guarda relação tanto com o já referido direito à saúde, como com outros direitos fundamentais: à alimentação, à água potável, à moradia. São todos expressões do direito a um mínimo existencial para uma vida condigna, largamente reconhecido na doutrina e jurisprudência brasileiras, destacando-se a farta jurisprudência do STF sobre a matéria.

De modo a reforçar a importância de uma articulação entre saneamento básico, gestão de resíduos e proteção ambiental, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) veicula o direito ao saneamento ambiental, quando estabelece o conteúdo do direito à cidade sustentável, que também inclui os direitos à moradia, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho, ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2º, I).

JOTA: Qual é o principal aspecto em reavaliação pelo STF e por que houve a retomada desse julgamento?

SARLET: Efetivamente, o STF, já em 2 de fevereiro de 2024, retomou a apreciação da controvérsia jurídico-constitucional que trata da possibilidade de determinado tipo de intervenção em áreas de preservação permanente, as chamadas APPs. 

No caso, o Plenário Virtual começou a julgar os embargos de declaração opostos pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pelo Partido Progressista (PP) no âmbito da ADC 42, em que se questiona a deliberação da Corte que havia retirado a atividade de “gestão de resíduos” do rol de hipóteses de utilidade pública que autorizariam intervenções de maneira excepcional nas APPs.

Ocorre que a posição adotada até o momento deixa de considerar aspectos importantes relacionados à legislação ambiental, em especial relativa aos resíduos sólidos e ao saneamento básico, além do grave impacto em termos sociais, econômicos e mesmo ambientais.

Tais questões necessariamente exigem um adequado enfrentamento pelos ministros da Suprema Corte, sob pena de que a decisão ora discutida em sede de embargos não apenas não surta o efeito esperado, como venha a causar sérios prejuízos à coletividade.

JOTA: Qual é o principal argumento sobre a inconstitucionalidade do termo “gestão de resíduos”? 

SARLET: No julgamento, por maioria, foi declarada inconstitucional a expressão “gestão de resíduos” com base no argumento de que a gestão de resíduos – e o saneamento básico – e a proteção ecológica são direitos fundamentais antagônicos e colidentes, devendo prevalecer, neste caso, a defesa do meio ambiente. Na prática, as repercussões da decisão irão depender do alcance da modulação, ainda a ser definida quando do julgamento final dos embargos declaratórios.

No nosso sentir, a equivocada equiparação entre os chamados “lixões” e os aterros sanitários levará, caso prevaleça sem os ajustes necessários e constitucionalmente desejáveis, à desativação dos muitos aterros sanitários no Brasil situados em Áreas de Preservação Permanente e que cumprem as exigências da legislação. Isso ocasionaria efeitos colaterais incomensuráveis em termos de custos de remoção, dificuldades para relocalização, comprometimento do saneamento básico, entre outros, gerando um impacto desproporcional sobre uma série de direitos e interesses de estatura constitucional. 

JOTA: Como o senhor interpreta a inconstitucionalidade do termo “gestão de resíduos”?  

SARLET: Na medida em que o próprio STF reconhece como legítima a aplicação do regime jurídico de utilidade pública para obras de infraestrutura em APPs destinadas aos serviços públicos de saneamento, que incluem, nos termos da Lei 11.445/2007, as instalações de tratamento e destino final dos resíduos sólidos domiciliares e dos resíduos de limpeza urbana, a declaração de inconstitucionalidade da expressão gestão de resíduos contida no art. 3º, VIII, alínea “b”, da Lei 12.651/2012 não se mostra razoável e justificável. 

A gestão de resíduos por meio de aterros sanitários é instrumento fundamental da Política Nacional do Meio Ambiente, da Política Nacional de Resíduos Sólidos e da Política Nacional de Saneamento Básico para a erradicação progressiva e definitiva dos lixões no Brasil.

JOTA: Quais são as repercussões dessa decisão na prática?

SARLET: Note-se que o STF, ao decidir pela inconstitucionalidade da gestão de resíduos (enfatize-se, ambientalmente adequada) em APP, estabelece entendimento genérico para todas as situações possíveis, incidindo em ingerência indevida na discricionariedade administrativa, ao inviabilizar por completo a possibilidade de avaliação técnica pelo gestor público acerca das diferentes situações concretas envolvendo a implementação de aterros sanitários. 

Nesse sentido, é necessário destacar que, em seu voto divergente, o ministro Gilmar Mendes afirmou: “haverá situações em que a execução de obra de gestão de resíduos sólidos será melhor alocada em área de proteção ambiental, sem que com isso haja decréscimo da proteção ambiental. Para controlar essas situações em concreto, há a exigência do licenciamento ambiental, no bojo do qual serão examinadas e ponderadas as circunstâncias de instalação da infraestrutura em determinado local”.

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