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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Equador no caso Viteri Ungaretti e outros Vs. Equador, em sentença divulgada no dia 22 de março. Segundo o Tribunal, o Estado equatoriano violou o direito à liberdade de expressão do ex-militar Julio Rogelio Viteri Ungaretti, que sofreu represálias depois de denunciar um suposto esquema de corrupção nas Forças Armadas do país.
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O caso chama a atenção para a proteção aos denunciantes de boa-fé, os chamados whistleblowers, no sistema interamericano de direitos humanos, e a necessidade de estabelecer medidas estatais mais efetivas na investigação de denúncias de corrupção.
Julio Rogelio Viteri Ungaretti servia como adido naval e de Defesa do Equador na embaixada equatoriana no Reino Unido quando denunciou ter presenciado atos de favorecimento a militares do alto escalão em 2001.
O ex-militar levou as denúncias ao embaixador equatoriano no Reino Unido à época e, poucos dias depois, passou a sofrer represálias. Ele foi chamado a retornar ao Equador com urgência e, depois de prestar depoimento ao comando das Forças Armadas, acabou preso por “conduta inadequada”.
Viteri ficou detido por 15 dias em uma unidade militar, na qual, disse, mal tinha acesso a água e alimentação. Ao relatar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em audiência no ano passado, afirmou que os militares tinham colocado guardas armados com ordem para disparar caso ele quisesse escapar.
Depois de liberado, Viteri foi destituído do cargo, retirado da lista de promoção e começou a receber uma série de ameaças. O caso foi levado à Justiça equatoriana e, em agosto de 2002, a Corte Constitucional do país julgou que as sanções administrativas foram aplicadas sem garantias processuais, mas não apontou outras violações.
Os danos, diz Viteri, já estavam feitos. Sua carreira estagnou, e o ex-adido chegou a ter de deixar o país, com diversas consequências negativas para sua vida profissional e pessoal. Ele e a família solicitaram asilo político e vivem em Londres há mais de 20 anos.
Uma das situações de corrupção relatadas à Corte ocorreu quando uma comissão formada por quatro membros de alta patente das Forças Armadas esteve em Londres para realizar um processo de contratação de seguros para aeronaves. Sem avisar, contou Viteri ao Tribunal, eles levaram familiares e passaram a tratar a viagem oficial como “férias”.
“A comissão tinha 15 dias para fazer o processo de contratação de seguros de aeronaves militares, mas, no segundo dia em que estiveram lá, em três minutos eles decidiram qual era a companhia ganhadora do concurso. Quinze dias se converteram em três minutos. Eles receberam envelopes, que tinham passagens aéreas para viagens de lazer em Paris e em Roma. Eles só voltaram no 14º dia a Londres, dizendo que eu deveria organizar uma festa de despedida”, contou o denunciante na ocasião.
O ex-adido também afirmou que, quando se mudou para Londres, estranhou o valor que era pago por dez anos pelo aluguel da sede onde trabalhava. “Na minha análise, com o que havíamos pagado por dez anos, poderíamos comprar uma sede. Teríamos um lugar próprio e não dependeríamos de ninguém”, contou aos juízes da Corte IDH no ano passado.
Viteri afirmou ter feito as denúncias “no cumprimento dos meus deveres como cidadão e por ter jurado defender a Constituição e as leis da República”. Mas, depois das represálias sofridas, teve de deixar o país, suas raízes e cultura para trás.
Denúncias de interesse público
Na sentença, a Corte considerou que o Equador violou os direitos à liberdade de pensamento e expressão e à liberdade pessoal, além do direito à estabilidade trabalhista. O Tribunal concluiu ainda que foram violados vários direitos da família de Viteri Ungaretti.
Para o Tribunal, como membro das Forças Armadas do Equador, Viteri “tinha o direito e o dever de fazer uso de seu direito à liberdade de expressão para se pronunciar sobre os supostos atos de corrupção dos quais tomou conhecimento durante o exercício de suas funções”.
“O Tribunal entendeu que o senhor Viteri exerceu esse direito uma vez que tinha ciência razoável da ocorrência dos fatos e, para isso, recorreu aos canais disponíveis naquele momento”, afirmaram os juízes na sentença.
A Corte destacou que a aplicação de sanções de detenção impediu que Viteri exercesse adequadamente seu direito à liberdade de pensamento e expressão em relação a assuntos de interesse público.
Afirmou ainda que, diante da falta de disposições legais que contemplassem mecanismos de denúncia de fatos de corrupção e proteção de denunciantes, o Estado equatoriano não cumpriu com sua obrigação de adotar disposições internas para o exercício adequado do direito à liberdade de expressão.
Na sentença, os juízes salientam a importância de os Estados tomarem medidas para criar um ambiente seguro e propício para denunciantes de irregularidades, testemunhas, ativistas, defensores dos direitos humanos, jornalistas, procuradores, advogados e juízes, com o objetivo de proteger essas pessoas de qualquer ameaça derivada de suas atividades de prevenção e combate à corrupção.
Chamam a atenção, também, para a corrupção específica de autoridades estatais. Segundo o Tribunal, embora o impacto negativo de atos de corrupção recaia sob os direitos humanos de todas as pessoas, a corrupção de autoridades estatais ou prestadores privados de serviços públicos atinge particularmente os grupos mais vulneráveis.
A Corte enfatizou que os atos citados no caso têm claro interesse público uma vez que as ações denunciadas de funcionários públicos ocorreram durante o exercício de suas funções. E afirmou que existe um interesse legítimo da sociedade de saber sobre a ocorrência dessas irregularidades.
Os funcionários públicos, reforçou o Tribunal, têm o direito e o dever de denunciar atos de corrupção sobre os quais tenham convicção razoável da sua ocorrência. Será suficiente, para isso, que o denunciante averigue cuidadosamente se a informação é precisa e confiável, na medida permitida pelas circunstâncias, sem que seja necessário estabelecer a autenticidade das informações divulgadas no momento da denúncia.
Cabe aos Estados, determinou a Corte, fornecer canais internos e externos adequados para facilitar e incentivar a denúncia de atos de corrupção e proteger os denunciantes.
Os Estados devem, ainda, estabelecer mecanismos de proteção para denunciantes de irregularidades de maneira que proteja sua identidade e a confidencialidade da denúncia, além de adotar medidas que preservem sua integridade pessoal e impeçam punições ou demissões injustificadas em decorrência das denúncias.
Voto brasileiro convergente
O juiz Rodrigo Mudrovitsch apresentou voto convergente, no qual afirmou que a Corte resolveu o caso dando novos e importantes contornos ao direito à liberdade de expressão, que consolidam estândares contidos em sentenças recentes do Tribunal sobre os limites do direito sancionador em assuntos de interesse público. Para isso, citou casos já analisados, como Álvarez Ramos Vs. Venezuela, Moya Chacón Vs. Costa Rica e Baraona Bray Vs. Chile.
“Como a Corte IDH estabeleceu anteriormente e se repete na sentença deste caso, são de interesse público as opiniões ou informações que digam respeito a assuntos nos quais a sociedade tenha interesse legítimo de estar informada”, disse Mudrovitsch. Esse interesse, acrescentou, surge quando estão em jogo assuntos relacionados ao funcionamento do Estado ou aos direitos ou interesses da sociedade.
“É importante destacar desde o princípio que a sentença neste caso, em seu parágrafo 89, estabeleceu que os atos de corrupção são uma questão de interesse público e, portanto, que a denúncia de atos de corrupção constituiu discurso especialmente protegido em virtude do artigo 13 da Convenção. Se o caso se refere a atos de corrupção, malversação de recursos públicos, fraude ou inclusive condutas cometidas por funcionários no exercício de suas funções, a caracterização como assuntos de interesse público será inequívoca”, afirmou o juiz brasileiro e atual vice-presidente da Corte.
No voto convergente, Mudrovitsch reforça também a proteção especial que deve ser concedida às pessoas que denunciam atos de corrupção, e a destaca como inovação importante estabelecida na sentença.
Outro aspecto mencionado foi a garantia de não repetição outorgada pela Corte, que surge do próprio propósito de controle de convencionalidade: garantir a reparação integral e garantir que violações como as que foram identificadas no caso Viteri Ungaretti não voltem a ocorrer.
Para especialistas ouvidos pelo JOTA, a sentença avança na jurisprudência da Corte e cria um marco para toda a região na proteção a denunciantes, especialmente em casos de interesse público.
“A decisão tem grande mérito de servir como um farol para casos similares que envolvam essas relações entre cidadão e organizações estatais e a proteção que cidadãos denunciantes, testemunhas, devem receber do próprio Estado, sem que sejam vistos como adversários ou inimigos”, afirma o advogado, jurista e professor Lenio Streck.
No caso equatoriano, lembra o especialista, Viteri Ungaretti fez a série de denúncias quando era adido militar e teve de se exilar tamanha a gravidade das represálias adotadas por parte do Estado.
“A Corte avança em uma medida que serve de blindagem contra a retaliação do Estado em casos de denúncias e presta um relevante serviço à transparência e ao combate à corrupção”, diz Streck, ressaltando que o caso cria um precedente aplicável a todos os países signatários pela convencionalidade.
Para o advogado, jurista e professor, a decisão ainda poderia ser interpretada, por analogia, para grandes empresas privadas.
“Quando um funcionário de uma grande empresa tem algo a denunciar, muitas vezes não tem todas as provas e, ao fazer a denúncia, acaba demitido. Se se fizer uma boa interpretação dessa decisão e dela se tirar o núcleo essencial, pode-se extrair disso um bom precedente também para aplicação nas relações privadas”, afirma Streck.
Para o procurador regional da República e membro fundador do Instituto de Direito e Inovação (IDi) Vladimir Aras, o caso Viteri Ungaretti segue uma prática em casos recentes da Corte de reforçar a necessidade de proteção a ativistas de direitos humanos no geral, como advogados, jornalistas e ambientalistas, entre eles denunciantes, desde que tenham boa-fé.
“A sentença no caso Viteri Ungaretti liga o direito à liberdade de expressão a direitos de envergadura ampla, como direitos democráticos e, no caso específico, a luta contra a corrupção. É um avanço importante. Iguala a jurisprudência do sistema interamericano à jurisprudência europeia, que já há alguns anos, desde o caso da Moldávia, tinha um regime jurídico de proteção a denunciantes”, diz o professor da UFBA e do IDP e membro do Pessoal Associado da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Aras salienta a proteção outorgada a denunciantes, mesmo que não sejam funcionários públicos, ou militares, como no caso equatoriano.
“A Corte reforçou a importância do dever de investigação de todas as violações a direitos humanos por parte do Estado. A corrupção é uma violação indireta, porque por meio dela se violam direitos econômicos, sociais, culturais, ambientais. Mas de todo modo o dever de investigar compete ao Estado. O cidadão não tem como quebrar sigilo bancário, fazer escuta telefônica ou busca e apreensão. Quem tem esses meios é o Estado”, afirma.
Aras destacou a importância do trabalho da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão no caso e o voto do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch.
“(O voto) ajuda na compreensão do julgado e a marcar pontos que merecem evolução posterior, em um avanço jurisprudencial, com destaque dado à temática da boa-fé, especialmente, em casos de interesse público”, afirma.
“A discussão mostra que casos como o Viteri ou de outros denunciantes de boa-fé podem revelar esquemas não só de subtração de dinheiro público, mas que têm impactos em outros aspectos da vida e que atingem outros direitos”, diz.
Daí a importância, afirma, como ressaltou o Tribunal, de que haja um sistema de proteção eficiente, com canais internos e externos para a realização de denúncias e a obrigação, por parte do Estado, de levar adiante essas denúncias e dar respostas ao denunciante. E, no caso de represálias, que haja mecanismos estabelecidos de proteção.
Vladimir Aras reforça também que o caso é marcante pelo potencial de levar a evoluções no direito interno de outros países da região, com ampliação à proteção de denunciantes no sistema interamericano.
“Há um efeito poderoso da coisa julgada. Já sabemos qual é a interpretação que a Corte vai dar a esse sistema de proteção, a denúncias de ilícitos públicos, e o que se espera das leis nacionais. É uma proposta de diálogo da Corte com o poder Legislativo. E de alguma forma também com o Executivo de cada um dos países, que devem propor leis, se não as tiverem, e ter um sistema apto a tramitar denúncias de interesse público, proteger a liberdade de expressão e outros direitos de denunciantes”, explica.
O Brasil, lembra, possui a lei 13.608/2018, que prevê a proteção a denunciantes, mas ainda há avanços a serem feitos.
“Nosso sistema melhorou muito, mas cabe uma reflexão do Legislativo sobre se o que temos está conforme com a decisão da Corte. E (cabe uma reflexão) do Judiciário brasileiro e o de outros países, porque existe um diálogo necessário entre as Cortes. A Corte Interamericana não fala sozinha, ela fala para os juízes também, principalmente os de tribunais superiores. O caso evidencia que é preciso haver mais interação entre os Judiciários de cada um dos países e a Corte Interamericana”, afirma Vladimir Aras.
Reparação
A Corte ordenou diversas medidas de reparação para o caso, como indenizações financeiras, inclusive para atenção médica e psicológica de Viteri e sua família. O Estado equatoriano também deve publicar o resumo oficial da sentença em um meio de comunicação nacional e no diário oficial, além da íntegra da sentença em dois sites institucionais oficiais. Além disso, afirmou a Corte, deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional e desculpas públicas.
Entre as medidas de não repetição, o Tribunal estabeleceu que o Equador faça uma adequação normativa, ofereça capacitações e pague uma série de indenizações por danos materiais e imateriais, além das custas do processo, direcionadas ao Fundo de Assistência Legal de Vítimas.
Participaram da análise do caso e elaboração da sentença os juízes Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Nancy Hernández López (Presidente, Costa Rica), Verónica Gomez (Argentina), Patricia Pérez Goldberg (Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (Vice-presidente, Brasil).