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O Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) recentemente processou a Visa, alegando que a empresa tem utilizado práticas anticompetitivas para manter seu domínio no mercado de cartões de débito. A centralização de poder da Visa e suas consequências para a inovação no mercado de pagamentos estão no centro deste processo.
A declaração do DOJ ao anunciar o processo é contundente: “A Visa não manteve sua dominação inovando, competindo pelos méritos ou defendendo a escolha do consumidor; ela fez isso através da exclusão e penalização. A conduta da Visa é ilegal”.
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Para entender o que está em jogo aqui, precisamos dar um passo atrás e olhar para as origens da infraestrutura dos cartões de crédito e débito. Empresas como Visa e Mastercard desempenharam um papel essencial na criação de uma rede de pagamentos segura e global que possibilitou transações eletrônicas em escala nunca vista antes.
Durante décadas, essa infraestrutura foi um pilar de segurança e inovação no setor de pagamentos. No entanto, nos últimos anos, com os avanços tecnológicos e o crescimento de startups e fintechs, o mercado de pagamentos vem mudando drasticamente. Novas tecnologias desafiam não apenas a relevância da infraestrutura dos cartões, mas também seu papel enquanto intermediários exclusivos dos fluxos de pagamento.
Nesse contexto, a Visa se vê pressionada a manter sua posição não apenas por inovação, mas também por práticas que, segundo o DOJ, são anticompetitivas. A estratégia da Visa envolve o uso de sua posição dominante para excluir concorrentes e prejudicar a capacidade de startups e fintechs de inovarem e competirem no mercado de débito.
Podemos ilustrar essa estratégia de exclusão de concorrentes com o exemplo da Visa contra o PayPal, citado na ação do DOJ. Esse caso é particularmente relevante porque destaca o impacto direto das práticas da Visa sobre os consumidores e sobre a inovação.
Em 2016, a Visa assinou um grande acordo com o PayPal, utilizando sua tática, conforme o DOJ, de ameaçar com altas taxas e oferecer incentivos financeiros para trazer o volume de transações do PayPal de volta para sua rede. A Visa temia que o PayPal, ao promover pagamentos diretamente por conta bancária usando carteiras digitais, pudesse desintermediar sua participação no mercado de pagamentos. Assim, a Visa ofereceu vantagens ao PayPal em troca de manter as transações dentro de sua infraestrutura.
Além disso, a Visa impôs restrições ao uso de métodos de pagamento alternativos pelo PayPal, dificultando a adoção de tecnologias inovadoras como ACH (Automated Clearing House) para pagamentos diretos. Ao impedir que o PayPal e outros concorrentes desintermediassem a Visa no mercado de pagamentos, a Visa não apenas restringiu a concorrência, mas também limitou a capacidade dos consumidores de acessar alternativas mais inovadoras e eficientes. Esse exemplo específico ilustra uma prática que não é isolada, mas faz parte de uma estratégia mais ampla da Visa para manter sua posição dominante.
Essa estratégia é reforçada por uma visão mais ampla da Visa em relação aos novos concorrentes. Em vez de tratá-los como competidores diretos, a Visa busca absorvê-los em sua rede, utilizando acordos comerciais e incentivos para manter sua posição dominante. Como afirmou o ex-CFO da Visa, também citado na denúncia: “Todo mundo é um amigo e parceiro. Ninguém é um concorrente.” Essa filosofia de parcerias, que aparentam ser colaborativas, visa, na verdade, garantir que a Visa continue sendo indispensável, limitando a inovação e a concorrência no setor.
A estratégia da Visa para manter seu domínio incluiria não apenas a criação de preferências comerciais, mas também a construção de proteções legais que dificultam a entrada de novos concorrentes.
A discussão sobre como certos privilégios legais ajudaram a fortalecer a Visa é fundamental. A Visa não atingiu sua posição dominante apenas por inovação e mérito competitivo, mas também por meio de privilégios institucionais e legais que criaram barreiras significativas para a concorrência.
Um exemplo disso é o desenvolvimento das redes de débito nos EUA, conforme descrito na ação do DOJ: “A evolução das redes de débito nos EUA ajudou a Visa a obter sua dominância. Nos anos 1960, as primeiras redes de débito começaram como redes de caixas eletrônicos (ATM), e posteriormente evoluíram para redes de PIN. A Visa aproveitou a infraestrutura já existente dos cartões de crédito para lançar seus produtos de débito, utilizando sua escala e suas relações com bancos membros para rapidamente consolidar sua posição no mercado.”
Essa expansão foi facilitada por regras da própria Visa que obrigavam os comerciantes a aceitar tanto seus produtos de crédito quanto de débito, limitando a liberdade de escolha de redes de pagamento alternativas. Além disso, até o início dos anos 2000, Visa e Mastercard impuseram exclusividade aos emissores, impedindo que eles trabalhassem com outras redes como American Express ou Discover.
Essas práticas contribuíram diretamente para a consolidação do poder da Visa e dificultaram o crescimento de concorrentes menores. Esses contratos de exclusividade só foram reformados devido à pressão regulatória e processos antitruste, que buscaram promover maior competição e facilitar a entrada de novos concorrentes no mercado.
Outro exemplo de privilégios, é o caso das sobretaxas (surcharge). A proibição de cobrança de sobretaxa de acordo com o meio de pagamento teve como intenção inicial reduzir a discriminação pela forma de pagamento e proteger o consumidor contra taxas abusivas, mas acabou, em muitos casos, beneficiando de forma desproporcional as grandes redes de cartões.
Essa proibição impediu comerciantes de diferenciarem os preços com base nos custos de transação, favorecendo a manutenção das grandes redes como intermediárias predominantes. Jurisdições como Austrália e União Europeia adotaram essa proibição, buscando uniformizar os preços de bens e serviços.
No entanto, algumas jurisdições, como o Canadá e diversos estados dos Estados Unidos, reverteram a proibição de sobretaxas, reconhecendo que permitir essa diferenciação poderia promover uma maior concorrência e reduzir os custos para os consumidores ao aumentar a transparência dos preços.
Em muitos casos, a proibição resultou em maior simplicidade para os consumidores, mas também contribuiu para aumentar os custos de transação para os comerciantes, que repassaram esses custos indiretamente aos consumidores. Esses privilégios acabaram beneficiando empresas como a Visa, consolidando sua posição de poder ao longo do tempo.
No Brasil, por exemplo, a prática de cobrar sobretaxa de pagamentos com cartão foi proibida por muitos anos, baseada no entendimento inicial do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) de que essa prática feria os princípios da isonomia e da proteção ao consumidor, exigindo que o preço fosse o mesmo independentemente do método de pagamento. Essa proibição favoreceu as grandes redes de cartões ao impedir que comerciantes diferenciassem preços conforme os custos de transação.
Dessa forma, os custos de transação associados à infraestrutura de cartões acabavam sendo repassados a todos os consumidores, incluindo aqueles que optavam por utilizar dinheiro em espécie, tornando o sistema menos justo e mais oneroso para todos.
No entanto, a Medida Provisória 764/2016, convertida na Lei 13.455/2017, acertadamente passou a permitir essa diferenciação, desde que informada claramente ao consumidor. Com essa mudança, tornou-se possível cobrar valores distintos para diferentes formas de pagamento, o que pode promover um mercado mais justo e competitivo.
Vale destacar que, no Brasil, a infraestrutura de cartões acabou concorrendo diretamente com a infraestrutura pública do Pix, uma inovação que facilitou pagamentos instantâneos sem custos adicionais para os consumidores.
Esse cenário cria um novo universo de debates sobre as discricionaridades e desigualdades na competição entre participantes no mercado de pagamentos, considerando as vantagens institucionais e tecnológicas que cada infraestrutura possui. A competição entre as redes privadas de cartões e o sistema público do Pix levanta questões sobre como assegurar uma concorrência justa e livre, onde cada participante do mercado possa operar em igualdade de condições, sem privilégios ou barreiras artificiais.
Os acordos comerciais da Visa, muitas vezes apresentados como parcerias para melhorar a eficiência ou a segurança do sistema de pagamento, na prática, conforme o DOJ, acabariam funcionando como barreiras que limitam a entrada de novos concorrentes. Esses acordos, como o caso com o PayPal demonstra, têm o efeito de preservar a posição dominante da Visa ao restringir a capacidade de inovação e competição de outras empresas no mercado de pagamentos.
A posição do DOJ contra a Visa abre uma importante janela de estudo e investigação sobre o papel das infraestruturas de cartões no mercado de pagamentos e a necessidade de assegurar uma concorrência mais livre e justa.
Caso as alegações do DOJ sejam fundamentadas, é crucial analisar como garantir que o mercado de pagamentos seja mais competitivo, sem depender de privilégios legais que favoreçam certos intermediários em detrimento de novos entrantes. O objetivo deve ser permitir que a competição se dê pelos méritos, com inovação e eficiência sendo recompensadas, ao invés de práticas que excluam concorrentes e perpetuem o poder de mercado por meio de vantagens institucionais. Assim, é fundamental assegurar que a evolução do mercado de pagamentos ocorra de forma que promova uma verdadeira liberdade concorrencial.