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Para compreender a relação entre tributação e desigualdade de gênero, é preciso, antes de tudo, romper com a ideia de que o sistema tributário é neutro. Os impactos da tributação não afetam os contribuintes da mesma forma: há aspectos determinantes que integram e reforçam as desigualdades estruturais, tais como a proporção entre a destinação de parte (ou da integralidade) do salário para aquisição de bens de consumo e a brutal concentração de renda no Brasil[1].
Como é cediço, o sistema tributário brasileiro atual tributa mais pesadamente os bens de consumo e menos a renda e o patrimônio dos contribuintes. Tal escolha confere um caráter regressivo ao sistema, caracterizado por onerar proporcionalmente mais as pessoas de baixa renda.
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Em outras palavras, os indivíduos com menor poder aquisitivo comprometem uma parcela maior de sua renda para consumir produtos básicos, enquanto pessoas de classe social mais abastada são menos impactadas pela tributação.
Segundo Luiza Machado Menezes, as mulheres estão no centro desse impacto nocivo do sistema tributário ao menos em razão de dois fatores[2]: (i) a maior tributação dos bens de consumo destinados a elas, sobretudo quando comparados aos bens direcionados aos homens; e (ii) a relação entre a tributação e a divisão sexual do trabalho, que se desdobra no fato de que as famílias lideradas por mulheres gastam mais em despesas essenciais, enquanto os lares chefiados por homens gastam mais em veículos.
De outro lado, a cada dez lares comandados por mulheres, seis são administrados por mulheres negras[3], estando estas em maior situação de vulnerabilidade econômica: enquanto as mulheres brancas ganham 79,5% da renda obtida pelos homens, as mulheres negras percebem menos da metade (44,4%) dos proventos adquiridos por estes (IBGE, 2019). Portanto, são as mulheres negras, as cidadãs que ocupam a posição mais desfavorecida de distribuição de renda no Brasil, e, assim, as maiores impactadas pela regressividade do sistema.
Diante desse cenário, faz-se fundamental a discussão interseccional de gênero, raça e tributação como forma de concretizar uma efetiva justiça tributária. Justamente nesse contexto, e com o objetivo de expandir tal agenda, nasceu o grupo de pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito SP, em maio de 2020.
Desde então, tributaristas de todo o Brasil reúnem-se periodicamente para debater a literatura nacional e internacional relacionada ao tema, ao lado da intervenção nos debates em torno da reforma tributária. O resultado se vê em alterações importantes tanto no texto da Emenda Constitucional 132/2023 quanto na redação do Projeto de Lei Complementar 68/2024, tais como a inclusão da desigualdade de gênero como medida para a avaliação quinquenal de incentivos fiscais e a previsão da tributação favorecida para bens de higiene menstrual, atualmente contemplados na lista daqueles que terão alíquota zero de CBS e IBS.
Ainda em debate, estão as seguintes emendas, apresentadas pela senadora Zenaide Maia e elaboradas por tal grupo:
Emenda 456: Exclusão dos alimentos ultraprocessados do rol de alimentos destinados ao consumo humano submetidos à redução de 60% das alíquotas de CBS e IBS;
Emenda 457: Inclusão de critério que permita que as medidas de avaliação quinquenal dos benefícios fiscais contemplem as desigualdades entre homens e mulheres de diferentes grupos étnico-raciais de maneira diversa;
Emenda 458: Inclusão dos medicamentos ligados à fisiologia feminina, preservativos e dispositivos intrauterinos de cobre no rol dos produtos com alíquota zero;
Emenda 459: Inclusão das fraldas infantis e geriátricas nos regimes mais benéficos;
Emenda 460: Inclusão de armas e munições no grupo sujeito ao Imposto Seletivo;
Nos próximos textos que serão publicados nesta coluna, as proposições acima serão abordadas de forma aprofundada, de modo a ampliar o debate público sobre a conexão entre tributação e gênero, visando à efetiva incorporação dessas questões na legislação tributária. O objetivo é caminhar para que o direito tributário seja reconhecido como um instrumento adicional para a mitigação da desigualdade de gênero no Brasil.
[1] Concentração de renda no topo: novas revelações pelos dados do IRPF. Disponível em: https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/politica-economica/pesquisa-academica/concentracao-de-renda-no-topo-novas-revelacoes-pelos-dados-do. Acesso em 27 de agosto de 2024.
[2] MENEZES, Luiza. Tese de dissertação de Mestrado. Tributação e Desigualdades de Gênero e Raça: vieses de gênero na tributação sobre produtos ligados ao trabalho de cuidado e à fisiologia feminina. 2023. UFMG.
[3] Boletim Especial de 8 de março – Dieese com dados do IBGE – Pnadc. 2023. SP.