Por um jogo mais responsável

Spread the love

Recentes reportagens sobre os reflexos do comportamento dos apostadores no Brasil – em especial nos âmbitos sociais, financeiros, econômicos e de saúde mental – colocaram na pauta do dia o debate sobre jogo responsável.

Segundo pesquisas do Banco Central, os brasileiros gastaram cerca de R$ 20 bilhões por mês em apostas online nos primeiros oito meses de 2024, sendo certo que 24 milhões de pessoas fizeram ao menos um Pix para as chamadas bets no período em tela.

Acompanhe a cobertura das eleições 2024 na newsletter Últimas Notícias e receba a edição especial com análise exclusiva do 2º turno

A discussão tomou maior corpo em razão de, no mês de agosto, 5 milhões de pessoas pertencentes a famílias beneficiárias do programa Bolsa Família terem direcionado R$ 3 bilhões às empresas de aposta – equivalente a 20% do valor total repassado pelo programa no mês.

Tal cenário levou o Ministério do Desenvolvimento Social a acenar com a possibilidade de proibição do uso do cartão do Bolsa Família para gastos com apostas.

Outrossim, em 30 de setembro, o partido Solidariedade ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.723) contra a Lei das Bets (Lei 14.790/2023).

Na referida ação, ao argumento de que as apostas implicaram aumento exponencial do endividamento das famílias, aliado ao comportamento de risco associado ao jogo compulsivo, sustenta o partido que a questionada lei violaria princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, os dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além do direito à saúde.

A ação soma-se à proposta em 24 de setembro, na mesma linha, pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a ADI 7721, na qual se alertou para eventual desvio de consumo para as apostas e para o aumento da inadimplência, com a correlata redução da projeção do crescimento do setor varejista.

O relator das ações, ministro Luiz Fux, atento à relevância e seriedade do tema, designou a realização de audiência pública para o próximo dia 11 de novembro. Foram convidados previamente autoridades públicas e legislativas, a própria CNC, a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) e o Instituto Brasileiro do Jogo Legal (IJL), entre outros.

No referido despacho que determinou a realização da audiência pública, o ministro destacou a necessidade de se “esclarecer as inúmeras questões técnicas associadas à saúde mental, aos impactos neurológicos da prática das apostas sobre o comportamento humano, os efeitos econômicos para o comércio e seus efeitos na economia doméstica, bem como as consequências sociais desse novo marco regulatório”.

De fato, cientificamente, o denominado “transtorno de jogo” ou “gaming disorder” já foi diagnosticado como um possível distúrbio comportamental caracterizado por um padrão persistente de jogo, implicando eventuais prejuízos de ordem social, ocupacional ou financeira, recebendo, inclusive, classificação própria (CID 11 – 6C51).

Atenta ao quadro acima delineado, a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda já havia editado a Portaria SPA/MF 1.231/2024, publicada no Diário Oficial de 01/08/2024, tratando, em apertada síntese:

da restrição à publicidade e patrocínio esportivo apenas por empresas autorizadas, as quais devem ater-se a promoções responsáveis e honestas;
da prevenção e enfrentamento dos transtornos do jogo, com a proteção da saúde mental (dependência) e financeira dos apostadores (superendividamento);
do estabelecimento de relação saudável de consumo entre apostadores e agentes operadores de apostas de quota fixa (transparência; monitoramento; alertas); e
estruturação do sistema de apostas a fim de possibilitar a imposição de limite para tempo logado e recursos apostados.

Na referida portaria, definiu-se como jogo responsável (art. 2º) o conjunto de regras, práticas e atividades destinadas: i) à garantia da exploração econômica, promoção e publicidade saudável e socialmente responsável da modalidade lotérica de aposta de quota fixa, e ii) à prevenção e mitigação de malefícios decorrentes da atividade, em especial consequências negativas à saúde mental e física do apostador, bem como à supostas violações de direitos do consumidor e problemas financeiros e sociais.

Ademais, dentre outras relevantíssimas disposições, foram estabelecidos deveres para o agente operador de apostas (art. 3º), como o dever de diligência na estruturação de seu sistema e das ações de publicidade:

respeitando-se os preceitos do jogo responsável,
prevenindo-se os transtornos do jogo,
garantindo-se a proibição de apostas por crianças e adolescentes (vedação já expressamente prevista no art. 81, inc. V, do ECA),
implementando-se verdadeira e efetiva política de jogo responsável.

Indubitável, portanto, que os pontos que permeiam a modalidade de aposta em tela sejam debatidos de forma ampla, técnica e séria, sendo certo que audiência pública a ser realizada no âmbito da Suprema Corte um espaço procedimental adequado e democrático.

Imprescindível, ainda, que se busque a compatibilização entre todos os valores constitucionais envolvidos, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) – respeitando-se a autonomia e autodeterminação pessoais –, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV) – lembrando-se que o setor gera emprego e renda, direcionando significativa tributação para os cofres públicos, cumprindo a verdadeira função social da empresa –, os direitos sociais à saúde e ao lazer (art. 6º), bem como os princípios gerais da atividade econômica, dentre os quais a livre concorrência (art. 170, inc. IV), a defesa do consumidor (art. 170, inc. V) e o livre exercício de qualquer atividade econômica (art. 170, parágrafo único).

Como se não bastasse, a questão deve ser solucionada à luz dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, em especial os de números 3 (saúde e bem-estar), 8 (trabalho decente e crescimento econômico) e12 (consumo e produção responsáveis).

Finalmente, cumpre aos agentes operadores de aposta de quota fixa a inafastável observância da responsabilidade social e civil da empresa, atentando, ainda, para a eventual obtenção de certificação correlata ao tema, como o Programa de Certificação de Jogo Responsável (Responsible Gaming Framework [RGF]) emitido pela Associação Mundial de Loterias (World Lottery Association [WLA]).

Avaliar estratégias e experiências de outros países que regulamentaram as apostas, enriquecerá a discussão. É importante trazer ao debate as regras e práticas sugeridas pelas portarias da Secretaria de Prêmios e Apostas. Muito se fala sobre os impactos negativos da regulamentação, mas sempre de forma muito genérica, sem se atentar ou buscar entender os requisitos trazidos pelo governo federal para mitigar os riscos.

Não será a ausência de regulamentação a solução dos problemas, aliás, apenas perpetuará aqueles já existentes. A regulamentação facilita a fiscalização e o controle da atividade. Ademais, as portarias até então publicadas pelo regulador, trazem disposições aparentemente eficazes para evitar as maiores preocupações acerca do setor, nos aspectos econômico, financeiro e de saúde pública.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *