Para sobreviver, esquerda precisa abraçar pautas econômicas radicais

Spread the love

“Se nós somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber.” Esse foi o recado dado pelo rapper Mano Brown em outubro de 2018, nas vésperas das eleições presidenciais daquele ano, durante um comício do então candidato Fernando Haddad (PT).

A mensagem, entretanto, claramente não foi compreendida pela esquerda e permanece atual. Prova disso é o resultado das eleições 2024: esquerda derrotada, “centrão” (ajuntamento de partidos fisiológicos de direita e centro-direita) vitorioso, e extrema direita com votação expressiva.

Assine a newsletter Últimas Notícias e receba uma análise exclusiva do 2º turno das eleições 2024

Um ano antes da análise de Brown, um estudo da fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, revelou que moradores da periferia de São Paulo que tinham manifestado preferência pelo partido em pleitos realizados entre 2000 e 2012, mas que não votaram em Dilma Rousseff (PT) para presidente em 2014 nem em Fernando Haddad em 2016 na sua malfadada busca pela reeleição para prefeito de São Paulo, eram eleitores que não enxergavam a existência de uma luta de classes entre patrões exploradores e trabalhadores explorados.

A pesquisa avaliou que, para essa população, ricos e pobres dividiam o mesmo barco contra um inimigo comum: o Estado taxador e burocrático que não entrega serviços de qualidade. Não à toa o ex-coach Pablo Marçal (PRTB) teve mais votos na periferia de São Paulo contra Guilherme Boulos (PSOL) no primeiro turno das eleições deste ano.

A chave, entretanto, está na seguinte conclusão da pesquisa: o fato de o Estado não entregar serviços públicos de qualidade. Essa foi a principal razão, inclusive, que motivou as revoltas de junho de 2013, as quais deram início a uma série de manifestações pelo país que se prolongaram pelos anos seguintes e que acabaram sendo cooptadas pela direita e criando o germe da extrema direita, impulsionada pelo discurso antissistema.

Dessa maneira, na ausência de um Estado que promova serviços públicos de qualidade, o discurso do empreendedorismo promovido por figuras como Marçal encontra terreno para se proliferar. Isso porque o ato de empreender, ainda que por necessidade e não por vocação, acaba sendo uma maneira de a população conseguir aumentar a sua renda diante da precarização dos trabalhos promovida por reformas e políticas neoliberais das últimas décadas.

Inúmeras pesquisas revelam que o povo brasileiro, na verdade, não é liberal e quer um Estado que garanta direitos básicos e que promova o bem-estar social. Um exemplo disso está na pesquisa Quaest realizada em julho deste ano para avaliar o governo Lula.

No levantamento, a imensa maioria dos entrevistados concordou que os salários deveriam subir acima da inflação (90%); os juros no Brasil são muito altos (87%); a carne consumida pelos mais pobres deveria ser isenta de impostos (84%); e que o governo não deve satisfação ao mercado (67%).

Portanto, o problema não é a presença ou não do Estado em si na economia, mas a falta de retorno dos impostos pagos pela sociedade na forma de serviços públicos de qualidade, tais como educação, saúde, transporte. Na ausência do Estado, surge o discurso do empreendedorismo como solução individual para as suas falhas.

No artigo “Foi um pássaro, foi um avião? Redistribuição no Brasil no século XXI”, a professora titular do Instituto de Economia da UFRJ Celia Kerstenetzky analisa que, embora os governos petistas tenham promovido uma redução da desigualdade apoiada no aumento constante do salário mínimo acima da inflação e no aumento das vagas de trabalho formais aliados a políticas de transferência de renda, eles falharam em manter constantes os avanços sociais.

Para isso, deveriam ter feito uma reforma tributária que criasse um sistema progressivo de tributação, no qual os mais ricos paguem muito mais impostos, o que subsidiaria a expansão e qualificação dos serviços públicos ofertados à população.

Diante das vastas evidências da realidade, portanto, o que se faz necessário para que a sociedade brasileira prossiga em seu rumo de prosperidade econômica e social é que os governos, atual e futuros, deixem de lado a mera gestão do sistema neoliberal, responsável pela destruição de direitos e precarização dos trabalhos, e adotem propostas reformistas radicais.

Isso significa retomar pautas econômicas que unificam as minorias fragmentadas que hoje se encontram dispersas, defendendo cada uma as suas bandeiras, e que promovam a melhoria da qualidade de vida da maioria.

Reforma tributária progressiva, com isenção para os mais pobres e várias faixas de imposto progressivas para os mais ricos; redução dos impostos sobre consumo, que faz com que os pobres acabem pagando mais impostos proporcionalmente às suas rendas, e aumento das taxações sobre renda e patrimônio; e criação do imposto sobre grandes fortunas, previsto no artigo 153 da Constituição e que, após quase 36 anos, nunca saiu do papel.

Uma bandeira que também melhora substancialmente a vida da maioria das pessoas e que tem se mostrado popular é o fim da jornada de trabalho 6×1, que consiste em seis dias de trabalho para um de folga, defendido pelo Movimento VAT (Vida Além do Trabalho). O criador do movimento, Rick Azevedo, se elegeu como o vereador mais votado do PSOL do Rio de Janeiro, desbancando nomes tradicionais e mais populares do partido mesmo contando com muito menos verbas partidárias, o que mostra a força dessa pauta.

No Brasil, a desculpa para que não seja sequer tentada a aprovação de reformas estruturais é que o governo Lula não possui maioria no Congresso. Porém, a Colômbia já provou que é possível promover mudanças sem ter maioria apostando na mobilização popular, como já discutido em artigos anteriores desta coluna.

O presidente colombiano Gustavo Petro, de esquerda, aprovou recentemente uma reforma trabalhista a favor dos trabalhadores apesar de ter minoria no Legislativo. Antes, ele havia aprovado uma reforma da previdência que também teve como objetivo beneficiar milhões de trabalhadores do seu país.

Não entendendo o recado das urnas, o presidente Lula, porém, caminha no sentido oposto do que deveria ser feito. Seu governo está encaminhando ao Congresso um pacote de medidas “antipobre”, cortando gastos com o seguro-desemprego, com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), além de rebaixar tetos constitucionais para saúde e educação — algo que nem mesmo Jair Bolsonaro (PL) ousou fazer em seu mandato.

Parece que, para o presidente, a solução dos problemas do país consiste em aumentar a dose do “remédio”, no caso medidas neoliberais com a intenção de conquistar o mercado, até que ele acabe virando um veneno matando o povo, ao invés de mudar o medicamento e buscar outros caminhos. Não há do que reclamar depois quando a extrema direita voltar ao poder, já que é na insatisfação com o atual sistema neoliberal que ela cresce.

Se quiser sair do impasse em que se encontra, a esquerda só precisa voltar a ser… esquerda.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *