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A Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho entrou em vigor internacionalmente em 25 de junho de 2021, dois anos depois de ter sido adotada pela Conferência Internacional do Trabalho (CIT) da OIT e traz a primeira definição internacional de violência e assédio no mundo do trabalho.
Embora ainda se encontre em processo de ratificação no Brasil, tal circunstância não tem impedido sua utilização como fundamentação para proteção de trabalhadoras e trabalhadores no ambiente de trabalho. Aliás, há julgados do Tribunal Superior do Trabalho e de Tribunais Regionais do Trabalho que utilizam a convenção como razão de decidir.
No país há previsão, em leis infraconstitucionais, do crime de assédio sexual no artigo 216-A do Código Penal e, recentemente, a Lei 14.612, de 2023, introduziu a definição de assédio moral e sexual, além da punição por infração disciplinar do advogado que praticá-los (Lei 8.906/94, artigo 34, XXX e §2º, I e II).
Há, ainda, a Resolução 351 de 28 de outubro de 2020 do CNJ, que instituiu, no âmbito do Poder Judiciário, a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação e foi alterada pela Resolução 518 de 31 de agosto de 2023, que trouxe as definições de assédio moral e assédio moral organizacional (artigo 2º, incisos I e II). Essas normas legais têm aplicação restrita, por certo.
A construção da definição de assédio no Brasil, de forma abrangente e até o momento, é essencialmente doutrinária e jurisprudencial. A ausência de legislação não impede, contudo, que ele seja cada vez mais recorrente como causa de pedir das reclamações trabalhistas distribuídas na Justiça do Trabalho. Há no PJE a possibilidade de cadastro dos assuntos assédio moral (14018), assédio sexual (14019), atos discriminatórios (14020) e até assédio eleitoral (15236), incluído recentemente no Sistema de Gestão de Tabelas Processuais Unificadas do CNJ (versão de 29/09/2023).
Segundo o TST, a Justiça do Trabalho recebe por mês, em média, 6,4 mil ações relacionadas a assédio moral no trabalho. O cálculo leva em consideração o volume de processos distribuídos em 2022[1] .
A recorrência de processos envolvendo o tema evidencia a importância da ratificação da Convenção 190 para proteção legal de matéria tão discutida judicialmente. Isso porque o STF reconhece o status supralegal, inferior à Constituição da República, mas superior à legislação interna, dos tratados e convenções internacionais com conteúdo de direitos humanos, uma vez ratificados e internalizados. Criam direitos para os indivíduos e, também, operam a supressão de efeitos de normas infraconstitucionais que se contrapõem à sua plena efetivação (STF. ADI 5.240, voto do rel. min. Luiz Fux, P, j. 20-8-2015, DJE 18 de 1º-2-2016.).
Porém, ainda que não ratificada até o momento, inequívoca a importância da proteção à dignidade do trabalhador (CR, artigo 1º, III) e à efetivação de sua cidadania (CR, artigo 1º, II). Tanto assim que a Resolução nº 518, de 31/08/2023 do CNJ definiu assédio moral como “violação da dignidade ou integridade psíquica ou física de outra pessoa por meio de conduta abusiva, independentemente de intencionalidade, por meio da degradação das relações socioprofissionais e do ambiente de trabalho, podendo se caracterizar pela exigência de cumprimento de tarefas desnecessárias ou exorbitantes, discriminação, humilhação, constrangimento, isolamento, exclusão social, difamação ou situações humilhantes e constrangedoras suscetíveis de causar sofrimento, dano físico ou psicológico” (artigo 2º, I).
Em paradigmático voto proferido em agosto de 2009, no Recurso Ordinário em Dissídio Coletivo n° TST-RODC-309/2009-000-15-00.4, o relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, ressaltou que a falta de regramento da dispensa coletiva, naquele caso e à época, não impedia a decisão do juiz, por força da Lei de Introdução ao Código Civil vigente. E, ainda, o fato da declaração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho, declarar que “todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções” (artigo 2)
Para tanto, considerou que na “vigência da Constituição de 1988, das convenções internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil relativas a direitos humanos e, por conseqüência, direitos trabalhistas, e em face da leitura atualizada da legislação infraconstitucional do país, é inevitável concluir-se pela presença de um Estado Democrático de Direito no Brasil, de um regime de império da norma jurídica (e não do poder incontrastável privado), de uma sociedade civilizada, de uma cultura de bem-estar social e respeito à dignidade dos seres humanos, tudo repelindo, imperativamente, dispensas massivas de pessoas, abalando empresa, cidade e toda uma importante região. Em consequência de todo o exposto, fica claro, conforme o entendimento deste Relator, que a nulidade das dispensas existiria até que fosse efetivada a negociação coletiva trabalhista, ou, não sendo possível, processado o dissídio coletivo”.
Com relação à Convenção 190 da OIT, no mesmo sentido do voto referido, há construção de algumas decisões dos Tribunais do Trabalho que não se limitam a mencioná-la, utilizá-la apenas como parâmetro hermenêutico ou para fins conceituais, mas entendem pela sua efetiva aplicação, ainda que não tenha sido ainda aprovada pelo Congresso Nacional.
A 8ª Turma do TRT da 4ª Região (TRT-4 – RORSUM: 00209779020195040234, Data de Julgamento: 14/09/2021, 8ª Turma), considerou aplicável a Convenção 190, pois a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho prevê que todos os membros da OIT devem respeitar os princípios e direitos fundamentais que elenca, dentre os quais está “a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação” (item 2, “d”). Mesmo raciocínio foi adotado pelo TST (RR-229-85.2021.5.09.0021, 3ª Turma, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, DEJT 20/10/2023).
A 2ª Turma do TRT da 24ª Região (TRT-24 – ROT: 00252586520215240007, Relator: Francisco das Chagas Lima Filho, 2ª Turma, Data de Publicação: 10/02/2023), por sua vez, considerou a norma internacional “auto e imediatamente aplicável”, fundamentando-se no art. 5º, §§1º e 2º, da CR, e por se tratar de norma internacional de proteção de direito fundamentais do trabalhador contra a violência e o assédio no trabalho.
A 4ª Turma do TRT da 9ª Região (TRT-9 – AIAP: 00009232820195090020, Relator: Luiz Eduardo Gunther, Data de Julgamento: 09/09/2021, 4ª Turma, Data de Publicação: 16/12/2021) utilizou outra razão jurídica: o art. 8º, caput, da CLT, que estabelece que, na falta de disposições legais, ou contratuais, pode-se decidir conforme princípios e normas gerais de direito, principalmente do Direito do Trabalho. “A Convenção nº 190 da OIT, mesmo ainda não internalizada no Brasil, já sinaliza que a terminologia ‘violência e assédio’ refere-se a um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou de suas ameaças, de ocorrência única ou repetida, que visem, causem, ou sejam suscetíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, e inclui a violência e o assédio com base no gênero (…)” (Julgamento: 09/09/2021, 4ª Turma, Data de Publicação: 16/12/2021).
Ao aplicar a Convenção 190 da OIT, conjuntamente com as Resoluções do CNJ de nº 351/2020 e de nº 518/2023 do CNJ (que altera a Resolução CNJ n. 351/2020, considerando a superveniência da Resolução CNJ n. 492/2023, que tornou obrigatória a adoção em todo poder judiciário do julgamento com perspectiva de gênero), a 3ª Turma do TST apreciou caso de assédio moral e entendeu “desnecessária a existência de conduta reiterada e prolongada a que alude a doutrina para a caracterização do assédio (e violência) no mundo do trabalho. Com efeito, o instrumento internacional passou a qualificar o assédio a partir de seus efeitos – e não de sua reiteração.” Portanto, ainda que não o tenha dito expressamente, aplicou a Convenção 190 para apreciar caso concreto (RR-1406-93.2019.5.17.0001, Relator Ministro Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 18/09/2023).
Diante dessas várias decisões fundamentadas na Convenção 190 da OIT é possível extrair um rol de razões objetivas que motivam, permitem e justificam a adoção da norma internacional para a solução do conflito, ainda que esteja em processo de ratificação no país, quais sejam:
A Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho prevê que todos os membros da OIT, o Brasil dentre eles, devem respeitar os princípios e direitos fundamentais, inclusive “a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação”.
A Convenção 190 é norma internacional auto e imediatamente aplicável, em coerência com o artigo 1º, §§1º e 2º da CR, por ser de proteção de direito fundamentais.
O art. 8º, caput, da CLT permite, na falta de disposições legais, decisões por princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com o direito comparado, prevalecendo o interesse público.
A Resolução CNJ 492/2023 tornou obrigatória a adoção em todo Poder Judiciário do Protocolo para julgamento conforme a Perspectiva de Gênero, que traz expressamente a Convenção 190 como integrante do sistema universal de proteção de direitos.
Para além da interpretação imediata de que a Convenção 190, porque ainda não ratificada pelo Brasil, não pode ser aplicada por subsunção aos processos trabalhistas em curso no país, as decisões elencadas vislumbram uma leitura de inclusão e de efetiva proteção de trabalhadoras e trabalhadores em verdadeiro diálogo das fontes.
A motivação referida nos acórdãos não se contrapõe à jurisprudência sedimentada pelo STF. Ao contrário, prestigia, bem como reconhece e aplica aos casos concretos, de forma não exclusiva, norma global de importância fundamental para reconhecer e proteger o direito de todas as pessoas a um mundo do trabalho livre de violência e assédio.
Por tudo isso, embora existam discussões a respeito da viabilidade de aplicação da Convenção 190, apesar de não ter sido internalizada formalmente, há importante movimento de adoção de seus princípios, conceitos e objetivos. Tal fenômeno decorre da rede protetiva formada por tantas outras normas que integram o alicerce de amparo à dignidade da trabalhadora e do trabalhador no Brasil.
[1] (Justiça do Trabalho recebe mensalmente cerca de seis mil ações por assédio moral – TST). Acesso em 06/12/2023