A Defensoria Pública e a tutela extrajudicial de direitos

Spread the love

Dentre as instituições que compõem o sistema de justiça brasileiro, a Defensoria Pública foi a que mais se oxigenou constitucionalmente no último vicênio. Neste período, foram promulgadas quatro emendas constitucionais tratando direta ou indiretamente da estrutura, organização e funcionamento da instituição.

A EC nº 45/2004 inseriu o § 2º no artigo 134 da Constituição Federal de 1988, reforçando a autonomia – administrativa, funcional e orçamentária – das Defensorias Públicas Estaduais. A seu turno, as ECs nº 69/2012 e 74/2013 trataram de estender referida autonomia às Defensorias Públicas do Distrito Federal e da União.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Mais recentemente, a EC nº 80/2014 operou verdadeira reestruturação orgânica na Defensoria Pública, completando o ciclo de reforma institucional à luz do modelo público de assistência jurídica adotado pela Carta Democrática de 1988.

É possível mencionar, como principais inovações:

  1. a inclusão da instituição como uma das “funções essenciais à Justiça” na Seção IV, do Capítulo IV, do Título IV, da CF/88;
  2. a inserção do § 4º no art. 134, que determina a aplicação dos arts. 93 e 96, inc. II, da CF/88 à Defensoria Pública, estabelecendo regras de organização e a iniciativa de projetos de lei para a estruturação da carreira;
  3. a explicitação, no mesmo § 4º, dos princípios cardeais da instituição (unidade, indivisibilidade e independência funcional).

Não obstante, a inovação mais importante veio com a reformulação, no caput do art. 134, da missão constitucional desenhada à Defensoria Pública. A EC nº 80 de 2014 concedeu-lhe o status de instituição permanente e expressão do regime democrático, necessariamente vinculada à promoção dos direitos humanos e à defesa judicial ou extrajudicial dos direitos individuais ou coletivos dos necessitados.

De curial relevância, para os fins aqui propostos, que se empreenda um esforço analítico sobre esta última atribuição institucional incluída pelo Poder Constituinte Derivado Reformador: a defesa extrajudicial de direitos individuais ou coletivos.

Em proêmio, necessário esclarecer que a previsão constitucional referente à tutela de direitos dos necessitados não representa um recorte estanque de atuação institucional, capaz de alimentar uma liberdade plena entre um agir judicial ou extrajudicial.

É preciso, antes de tudo, desmistificar esse estado de coisas, assumindo ser possível, a partir do texto constitucional, extrair interpretações adequadas acerca da missão constitucional imposta à instituição.

Dito de outro modo: segundo o modelo proposto, não há dois caminhos a seguir ou duas rotas baseadas no livre convencimento. Há, ao revés, um percurso devidamente orientado, que necessariamente privilegia o tratamento adequado dos conflitos, priorizando a tutela extrajudicial de direitos e a solução consensual das controvérsias.

A hermenêutica acima proposta é reforçada pelo art. 4º, inc. II, da LC nº 80/1994 (Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública), que institui a “promoção prioritária da solução extrajudicial dos litígios” como dever funcional dos defensores públicos.

O mesmo comando normativo pode ser extraído do CPC/2015, que adota norma fundamental no sentido de que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos devem ser estimulados por defensores públicos” (art. 3º, § 3º).

Referido modelo de atuação institucional, que implica obviamente em uma mudança de mentalidade, homenageia a garantia do acesso à justiça, em sua dimensão substantiva, já que o direito de “acessar o justo” não pode ser mais confundido com o direito de “acessar o Poder Judiciário”.

Não é por outra razão que Cappelletti e Garth já indicavam a necessidade de se substituir o acesso à representação em juízo por uma concepção mais ampla, com o enfoque metodológico do acesso à Justiça.

Conheça o JOTA PRO Poder, uma plataforma de monitoramento político e regulatório  que oferece mais transparência e previsibilidade para empresas

Segundo os autores: “o novo enfoque de acesso à justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa ‘terceira onda’ de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas” [1].

Assim: “nós o denominamos ‘enfoque do acesso à Justiça’ por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso”[2].

No Brasil, a concepção de acesso à justiça representa, fundamentalmente, o acesso à ordem jurídica justa[3]. Esse direito tem como bases elementares:

  1. o direito à informação, pleno conhecimento dos direitos e deveres e orientação jurídica necessária ao exercício da cidadania;
  2. o direito à solução adequada dos conflitos, por instituições e pessoas qualificadas;
  3. o direito à uma justiça multiportas[4], que proporcione canais, procedimentos e mecanismos adequados de tratamento de disputas;
  4.  o direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham à plena realização do acesso à Justiça.

O sistema de justiça, nesse contexto, tem uma acepção ampla, incluindo não apenas o Poder Judiciário, mas também outras instituições, públicas e privadas, que atuam e contribuem qualitativamente na distribuição da justiça.

Como lembram Fredie Didier Jr. e Leandro Fernandez: “o sistema de justiça, como se nota, é plural, poliédrico ou multinível, multiportas, com o oferecimento de modos variados de resposta a problemas jurídicos existentes na sociedade”[5].

No mesmo sentido, Trícia Navarro conceitua a justiça multiportas como “um sistema que compreende variados espaços e ferramentas de prevenção e solução de disputas, com potencialidade de interconexão, proporcionando à sociedade formas eficientes de alcance da pacificação social”[6].

Mas não é só. Compreender o acesso à Justiça como o acesso à ordem jurídica justa implica igualmente reconhecer que, diante das características do conflito e dos sujeitos envolvidos, determinados modos de solução de problemas jurídicos são preferencialmente mais adequados do que outras formas de solução.

Assim, “em um sistema de justiça multiportas, o direito fundamental de acesso à justiça não abrange o direito de obtenção da solução do caso por meio de uma sentença em toda e qualquer hipótese”[7]. Ao contrário, se solucionado o problema jurídico por outro meio mais adequado, concretiza-se o acesso à justiça, ao invés de violá-lo.

Caso clássico é a preferência por mecanismos consensuais quando o conflito envolver disputas no interior de comunidades indígenas ou povos tradicionais. É o que assegura as Regras 48 e 49 das 100 Regras de Brasília sobre o Acesso à Justiça para Pessoas em Condições de Vulnerabilidade.

À Defensoria Pública reserva-se um papel central no sistema de justiça multiportas, uma vez que o tratamento adequado e as soluções consensuais praticadas pela instituição abrem novos caminhos à pacificação dos conflitos envolvendo indivíduos vulneráveis.

Referida centralidade decorre do próprio modelo público de assistência jurídica adotado pela Constituição Federal de 1988, que atribui à Defensoria Pública a missão de assistir, integral e gratuitamente, os necessitados.

Ganha destaque aqui a tutela do direito à informação jurídica, que envolve as atividades de consultoria sobre direitos e deveres, aconselhamento quanto aos riscos da causa e orientação jurídica necessária ao exercício da cidadania.

A equação é lógica: se o cidadão não toma consciência de seus direitos e deveres, deixa de desenvolver uma consciência crítica necessária para afirmá-los e reivindicá-los, seja na vida pessoal, seja na vida coletiva. Daí a importância da educação jurídica para a cidadania, porquanto a ignorância alija do conhecimento a própria dignidade humana e o acesso aos direitos[8].

As práticas de educação em direitos e a orientação jurídica prestada nos casos concretos, portanto, são modalidades de tutela extrajudicial do direito à informação jurídica, que contribuem para reduzir as assimetrias impeditivas do acesso a direitos e serviços essenciais.

Importante compreender que essa assimetria informacional não recai única e exclusivamente sobre os direitos e deveres contidos no ordenamento jurídico. Recai também sobre o conhecimento do próprio sistema de justiça multiportas, seus canais de acesso, procedimentos e serviços.

Envolve, ainda, o conhecimento dos mecanismos de solução consensual de conflitos, em especial a possibilidade de se obter uma resposta adequada a um problema jurídico independentemente de uma sentença judicial.

Daí a relevância do papel da Defensoria Pública, como agente de superação das barreiras informacionais do público necessitado.

Mas existem outras formas de atuação extrajudicial por parte da instituição. Quando se fala em tratamento adequado dos conflitos, é possível sustentar a existência de duas perspectivas relevantes.

De um lado, a perspectiva que trata os conflitos globalmente, considerando a multiplicidade dos problemas sociais e a heterogeneidade das necessidades jurídicas da população.

Essa modalidade de agir institucional, pressupõe o correto diagnóstico da litigiosidade, estratégias de prevenção de conflitos e, fundamentalmente, a interlocução com outras instituições, públicas e privadas, sejam elas componentes do sistema de justiça multiportas, sejam elas litigantes habituais[9].

Já a segunda perspectiva considera os conflitos de interesses individuais e coletivos a procura de solução adequada. Assim, vista enquanto verdadeira “porta” de realização da justiça, à Defensoria Pública cumpre oferecer meios de se concretizar uma tutela efetiva dos direitos dos cidadãos vulneráveis, mediante tratamento adequado.

Ambas as perspectivas são igualmente importantes, tendo a primeira a particular relevância de situar a Defensoria Pública enquanto importante agente (player) no tratamento adequado dos conflitos, combatendo a violação massiva de direitos, acompanhando a implementação de políticas públicas e prevenindo a quantidade de conflitos judicializados.

Já a segunda tem a virtude de oferecer uma resposta adequada aos problemas dos cidadãos, priorizando a solução consensual de controvérsias. Isso vale tanto para o tratamento de conflitos individuais, quanto para o tratamento de conflitos coletivos, em especial a autocomposição envolvendo litígios estruturais e os recentes conflitos climáticos.

Assim, pode a Defensoria Pública se valer do incentivo à negociação, da conciliação ou mediação, da avaliação imparcial de terceiro, de processos restaurativos, de termos de ajustamento de conduta, de consulta à população e realização de audiências públicas, dentre outras formas adequadas de tratamento e solução de controvérsias.

Para exercer, entretanto, sua importante missão constitucional, a Defensoria Pública enfrenta um desafio crucial frente à sua atual realidade institucional: uniformizar a sua atuação extrajudicial, mapeando e institucionalizando as boas práticas já existentes, sem prescindir do fomento à atividade extrajudicial de defensores públicos que já trilham um caminho consensual em suas atribuições funcionais.

Um primeiro e relevante passo foi dado nesta empreitada. Em 19 de setembro de 2024, o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais instituiu, mediante a Portaria CONDEGE nº 03/2024, Comissão Científica responsável pela elaboração da Política Nacional de Tratamento Adequado e Soluções Consensuais de Conflitos das Defensorias Públicas.

A futura normativa, que ainda depende de deliberação e aprovação daquele colegiado, corresponde a um dos compromissos assumidos pelo CONDEGE no apoio ao Encontro Nacional da Defensoria Pública sobre Tratamento Adequado de Conflitos e Solução Consensual de Controvérsias, que se realizará no próximo dia 6 de novembro de 2024, tendo por local a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

O projeto integra o ciclo de debates Encontros Nacionais sobre Tratamento Adequado e Solução Consensual dos Problemas e Conflitos no Sistema de Justiça Brasileiro, capitaneado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ), que também conta com o apoio da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, da Associação Paulista de Defensores Públicos (APADEP) e da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública de São Paulo.

Como preconizou Mauro Cappelletti, o enfoque do acesso à justiça deve ser visto, antes de tudo, como um programa de reforma institucional e como um método de pensamento, que coloca o cidadão no centro das preocupações da justiça[10].

Esperamos que o caminho promissor trilhado pela Defensoria Pública alcance os escopos do acesso à justiça e implique uma mudança de mentalidade, tornando possível a substituição de uma “cultura da sentença”, ainda predominante, por uma “cultura da pacificação” dos conflitos.


[1] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 67.

[2] Ibid.

[3] WATANABE, Kazuo. Acesso à ordem jurídica justa: conceito atualizado de acesso à justiça, processos coletivos e outros estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2019.

[4] Originalmente, o termo foi utilizado como “tribunal multiportas”, cf. SANDER, Frank. Varieties of Dispute Processing. Hearings Before the Subcommittee on Courts, Civil Liberties, and the Administration of Justice of the Committee on the Judiciary, House of Representatives, Ninety-fifth Congress, Second Session on S. 957. Washington: US Government Printing Office, 1978.

[5] DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas: sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça no Brasil. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 40.

[6] NAVARRO, Trícia. Justiça multiportas. Indaiatuba/SP: Editora Foco, 2024, p. 07.

[7] DIDIER JR.; FERNANDEZ, op. cit., p. 283.

[8] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil: Introdução ao Direito Processual Civil. Vol. I. 5ª e. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 10.

[9] GALANTER, Marc. “Why the ‘Haves’ come out ahead: Speculations on the Limits of Legal Change”. Law and Society Review, v. 9, n. 1., p. 95-160, 1974

[10] CAPPELLETTI, Mauro. Accesso alla giustizia come programma di riforma e come metodo di pensiero. Rivista di diritto processuale. Padova: v. 37, série II. CEDAM – Casa Editrice Dott. Antonio Milani, p. 233-245, 1982.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *