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Em decisão de 24 de agosto, Alexandre de Moraes determinou o bloqueio dos ativos financeiros da Starlink, sob o argumento de que a empresa integraria o mesmo “grupo econômico de fato” do X. Como se sabe, assim como a rede social, a provedora de internet via satélite pertence ao mesmo Elon Musk. A decisão veio na esteira de uma série de recusas de Musk de desativar contas identificadas pelo STF como ilícitas no X, e após a plataforma fechar seu escritório no Brasil, esquivando-se, assim, do cumprimento das determinações judiciais.
O argumento do “grupo econômico de fato” é controverso. O X, é uma rede social e pertence ao X Holdings Corp. A Starlink integra a Space Exploration Technologies Corp e provê conexão via satélite com autorização da Anatel para operar desde 2022. Apesar de Musk ser o maior acionista das duas corporações, não é o único. Além disso, as atividades-fim, operações e serviços providos pelas empresas são distintos. Por outro lado, dois dias após o STF determinar a suspensão do X, a Starlink informou à Anatel que não bloquearia o acesso à plataforma para seus usuários. Apesar da empresa ter voltado atrás e suspendido a rede social, ficou registrado comportamento que reforça a alegação de que as duas sociedades possuem, no mínimo, interesses cruzados.
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Para além do imbróglio jurídico, no entanto, devemos reconhecer que há uma questão de fundo na discussão do bloqueio dos ativos da Starlink. A empresa é, hoje em dia, a maior provedora de internet via satélite do Brasil. Segundo dados da Anatel, isso significa uma parcela aproximada de 0,4% do mercado brasileiro de internet, um número aproximado de 200 mil acessos. A cifra pode parecer baixa quando pensamos em um país de mais de 200 milhões de habitantes, porém, é necessário olhar para as características dessa fatia de usuários. Dos 200 mil acessos da Starlink, 71,2 mil estão só na região Norte, sendo a região que mais utiliza as antenas da empresa.
Em parcela significativa dos lugares em que a Starlink é acessada, ela é a principal e, muitas vezes, única opção de conectividade, na medida em que lugares remotos que encontravam dificuldades de infraestrutura para se manterem conectadas antes da chegada desse tipo de provedor. A título de exemplo, a Starlink chegou a 90% das cidades da Amazônia Legal.
Diante desse cenário, esse texto propõe reflexão sobre o que está em jogo na decisão do STF. O que o atual cenário de conectividade no Brasil nos ensina? Como o poder público, por meio de suas diversas instituições e formatos, age para proteger a soberania nacional e promover o acesso universal à internet?
As desigualdades de conectividade no Brasil: as regiões de difícil acesso e os satélites de baixa órbita
O acesso à internet é – ou ao menos deveria ser – um direito humano fundamental. Em 2011, a Organização das Nações Unidas reconheceu o direito humano “de buscar, receber e difundir informações e ideias de todo o tipo por meio da internet”. A nível nacional, a Constituição Brasileira, apesar de múltiplas emendas constitucionais apresentadas, ainda não consagrou o acesso à internet como um direito fundamental.
A internet não se apresenta, hoje, apenas como uma forma de acesso à informação e expressão, mas também como um meio de efetivação de direitos básicos, como direito à saúde, à educação, à segurança e aos direitos políticos. Em um contexto em que as políticas públicas estão cada vez mais digitalizadas, em que a transformação digital do setor público cresce, com o emprego estratégico de recursos e capacidades para a adoção de novas tecnologias em diferentes fases dos processos, operações e da própria mentalidade da gestão pública, garantir o acesso à internet é também possibilitar às pessoas o acesso às políticas públicas.
Contudo, no Brasil, esse acesso não chega para todos. De acordo com a TIC Domicílios, 84% dos lares brasileiros têm algum acesso à internet, independente da velocidade ou do tipo de conexão. O número pode parecer alto, especialmente se compararmos com índices de quase 10 anos atrás: em 2015, apenas 51% dos domicílios estavam conectados. Apesar desse crescimento, a distribuição regional do acesso não é uniforme. A região Sul e Sudeste registram 89% e 85% de domicílios com conexão, respectivamente. Em contraste, nas regiões Nordeste e Norte, os percentuais decrescem para 80 e 78% de domicílios com algum acesso à internet. Quando analisamos os dados de conectividade significativa, as discrepâncias são ainda maiores. De acordo com a pesquisa do NIC.br, 57% dos usuários de internet no Brasil têm condições insatisfatórias de conectividade. A investigação aponta que as regiões Norte e Nordeste têm condições inferiores de conectividade significativa no Brasil, quando comparadas ao Sul e Sudeste. O Norte e Nordeste têm as piores notas de conexão, com apenas 11% e 10% dos habitantes, respectivamente, com acesso considerado de alta qualidade.
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O que esses dados apontam é que a distribuição da conectividade, em termos tanto de infraestrutura, quanto de qualidade de conexão, é desigual no país. Enquanto Sul e Sudeste possuem altos níveis de conexão e de conectividade significativa, as regiões Norte e Nordeste seguem com territórios inteiros sem acesso à internet. A região amazônica, por exemplo, apresenta desafios específicos no que diz respeito à conectividade: a alta densidade da floresta, a população dispersa no território, além das desigualdades econômicas e políticas históricas, que marcam o território há anos.
Nesse contexto de baixa conectividade significativa e infraestrutura insuficiente para consagração da universalização da conectividade em algumas regiões no Brasil, os satélites de baixa órbita apareceram como uma “solução” de baixo custo para o desafio histórico e complexo de garantir internet rápida e financeiramente acessível em todo o território brasileiro. Este tipo de satélite permite a transmissão de dados e o acesso à internet a longas distâncias, sem a necessidade de cabos ou antenas de transmissão, sendo uma forma alternativa para fornecer acesso à internet em áreas remotas e rurais de difícil acesso.
Os satélites de baixa órbita chegaram ao Brasil com a Starlink, a empresa do bilionário Elon Musk. A Starlink utiliza uma constelação de satélites para abranger uma maior cobertura de acesso e, com esse serviço, promete oferecer internet banda larga de alta velocidade em regiões remotas do planeta. Nas regiões que antes tinham pouco ou quase nenhum acesso à internet, a chegada da Starlink no país foi marcada por euforia e, também, por preocupações, especialmente na região amazônica e em regiões rurais isoladas do país. Reportagens apontam que povos indígenas e comunidades tradicionais comemoraram a chegada da internet no território. Por outro lado, preocupações com uso das antenas da Starlink pelo garimpo, concentração de poder e disseminação de desinformação também deram a tônica das discussões sobre a nova tecnologia. Para além disto, a Starlink jogou luz a um problema que, muitas vezes, ficava na penumbra da discussão pública, mas que há muitos anos já era uma importante demandas de movimentos sociais e populações locais: existiam comunidades e territórios inteiros que não tinham nenhum acesso à internet.
Desde a pandemia de Covid-19, é notável o movimento de ampliação das políticas de conectividade, especialmente aquelas voltadas aos territórios “mais difíceis”, ou seja, em que não há infraestrutura prévia e em que há desafios geográficos. Contudo, há um quadro fragmentado de políticas de conectividade, com uma sobreposição de novas iniciativas e descontinuidade de projetos, a depender das gestões em vigor. Como consequência, a conectividade torna-se uma eterna promessa do poder público, mas que nunca se concretiza. A demanda por acesso à internet não caminha no mesmo tempo das políticas de infraestrutura e de universalização da conectividade, abrindo espaço para a entrada de atores como Starlink neste debate.
Concentração de poder, soberania digital e a necessidade de avançarmos em políticas de conectividade
Existem diversos questionamentos legítimos levantados por pesquisadores sobre a entrada da Starlink no mercado de internet no Brasil. Primeiramente, tal como exposto em carta pela Coalizão Direitos na Rede, a concentração de poder de uma empresa privada internacional que avança a passos largos e sozinha na ocupação de um mercado tão importante como o da infraestrutura da internet. Além disso, uma série de pesquisadores já apontaram para os riscos que tal expansão traz à soberania nacional. Como é pautado e demando há décadas por movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a promoção do acesso à internet deve ser uma prioridade da agenda estatal, e depende de políticas públicas efetivas para tornar-se universal e equitativo.
Soma-se ao caldo a figura de Elon Musk e sua ânsia por performar como ator político no desenrolar de processos internos dos países onde atuam suas empresas. Não à toa, tem agendas com diversos presidentes e ex-presidentes, emite opiniões públicas sobre processos políticos, e, tal como no caso em questão, desrespeita de maneira seletiva e deliberada leis e decisões judiciais de órgãos públicos nacionais. Além do caso do Brasil, o bilionário é alvo, por exemplo, de investigações da Comissão Europeia que versam sobre a permeabilidade do X para a circulação de conteúdos ilegais e desinformação. Musk demonstra interesse em desempenhar papel de protagonismo, e sua cada vez mais ampla atuação sobre a camada da infraestrutura da internet gera preocupações em relação às consequências de um domínio do setor.
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Paralelamente a isso, é necessário que nos perguntemos: por que o poder público não chegou nesses lugares antes da Starlink? O que está sendo feito pelas instituições brasileiras, por exemplo, governos locais e nacional e a Agência Nacional de Telecomunicações, para reduzir as lacunas de conectividade que fazem com que o acesso à internet seja tão desigual? A decisão do STF nos dá pistas da negligência institucional brasileira em relação à questão. O afã de bloquear o funcionamento de empresa que desafia a autoridade do poder público brasileiro nubla os efeitos da paralisação consequente de ativos da Starlink: os potenciais danos aos usuários. E nesse caso, com um agravante: o fato de que a empresa provê a única opção de acesso a internet para milhares de pessoas em diversas regiões do país, locais que já vivem às margens do direito da conectividade.
A despeito de a internet ser, hoje em dia, uma condição do acesso a direitos, a conectividade parece ser preocupação periférica das autoridades brasileiras. O objetivo, aqui, não é defender que empresas privadas atuem livremente para ocupar lacunas deixadas pela ausência do poder público. É, na verdade, o contrário. Que as instituições se dêem conta das consequências de sua inércia para o acesso integral à internet no Brasil.