Desafios do compartilhamento de linhas de produção por startups da área da saúde

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A economia do compartilhamento é uma realidade em diversos setores da economia, incluindo modelos de negócios como Uber, Airbnb e Spotify. Embora inicialmente esse tipo de negócio tenha se concentrado no mercado de consumo (B2C), recentemente vem evoluindo para abranger oportunidades de negócios entre fornecedores (B2B).

Um exemplo disso é o compartilhamento de espaços físicos (mais conhecido como coworking) por pessoas que não têm interesse, recursos ou demanda de trabalho/produção suficiente para explorar tais espaços com exclusividade nos modelos tradicionais de locação ou de compra e venda de propriedade.

Os exemplos mais comuns de coworking são relacionados a espaços para escritórios e consultórios, mas já existem iniciativas de compartilhamento de espaços para atividades fabris – os chamamos coworkings industriais. O coworking industrial pode ser uma solução mais barata e mais segura, pelo menos no início, para pequenas empresas e startups.

Imagine, por exemplo, um grupo de estudantes de pós-graduação que desenvolve um novo tipo de produto para higiene pessoal ou cosmético. Como viabilizar a fabricação desse produto de uma forma menos custosa e que atenda a todos os requisitos sanitários de boas práticas de fabricação, composição, rotulagem, além das normas de licenciamento urbanístico e de cadastro fiscal?

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Arranjos dessa natureza podem reduzir barreiras à entrada associadas ao alto custo de instalação de um estabelecimento fabril na área da saúde, que envolve não só investimentos para a adequação da infraestrutura física, mas também remuneração de profissionais técnicos e da área jurídica para garantir o atendimento às normas sanitárias.

Contudo, o tema é objeto de debate, tendo em vista que, de acordo com o art. 52, I, da Lei nº 6.360/1976, que dispõe sobre normas aplicáveis a produtos tão diversos como medicamentos, cosméticos, produtos para higiene pessoal, saneantes e outros, “quando um só estabelecimento industrializar ou comercializar produtos de natureza ou finalidade diferentes, será obrigatória a existência de instalações separadas para a fabricação e o acondicionamento dos materiais, substâncias e produtos acabados”.

O tema foi objeto de diversas normas editadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com foco principalmente no compartilhamento de linhas de produção de medicamentos. Não obstante os avanços obtidos com as alterações normativas realizadas a partir de 2015[1], o tema permanece em aberto, tendo sido excluído, no início de 2024, da agenda regulatória da Anvisa, sob a justificativa de que “o tratamento do processo regulatório depende de alteração legislativa para dar suporte às mudanças de mérito que vem sendo debatidas tecnicamente entre a Anvisa e o setor regulado”[2].

Ao que tudo indica, o tema ficará a cargo da interpretação das vigilâncias sanitárias locais (em especial, dos municípios), que fiscalizam e licenciam as instalações fabris, tanto sobre o que caracteriza produtos de “natureza e finalidade diferentes”, quanto “instalações separadas”.

Apesar desse vácuo normativo federal, o histórico da discussão do tema no âmbito da Anvisa pode trazer alguma luz para o tratamento da questão pelas vigilâncias sanitárias locais, e fundamentar a aprovação de modelos inovadores.

Em primeiro lugar, há alguma margem de interpretação sobre o que caracteriza produtos de “natureza e finalidade diferentes”. Na Consulta Pública nº 26/2013[3] da Anvisa, por exemplo, a procuradoria da agência concordou com a possibilidade de utilização das mesmas instalações fabris para medicamentos humanos e veterinários, mas considerou que “não há como sustentar que produtos para saúde, produtos para higiene, cosméticos e alimentos possuam a mesma natureza e finalidade dos medicamentos”[4].

A Gerência-Geral de Inspeção e Controle de Medicamentos e Produtos (GGIMP), por sua vez, defendeu que “pode-se entender que produtos de mesma qualidade e que tem em comum a destinação podem ser considerados como de mesma natureza e finalidade. Na amplitude dada por esse enquadramento, poderiam, portanto, a critério de quem analisa serem considerados os medicamentos veterinários, produtos médicos, cosméticos, produtos de higiene e alimentos como de mesma natureza e finalidade aos medicamentos de uso humano”.[5]

Nessa linha, como contraponto ao argumento da procuradoria, a GGIMP afirmou que “o critério utilizado pela Procuradoria para fundamentar a conclusão quanto à finalidade dos medicamentos de uso veterinário foi a utilização apenas de insumos já aprovados para uso humano, entendemos que este mesmo argumento é aplicável às demais categorias de produtos. (…) de modo a considerar como aceitável apenas o compartilhamento de áreas utilizadas na produção de medicamentos com a fabricação de produtos que obedeçam ao critério da utilização de insumos de igual ou superior qualidade àqueles usados na produção de medicamentos. Desta forma, enquadram-se nessa mesma premissa os medicamentos veterinários e também os demais produtos (…) (produtos para a saúde, produtos de higiene, cosméticos e alimentos)”.

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Destacou, ainda, o compartilhamento ocorrerá somente quando “houver comprovação científica e técnica de que os materiais empregados são de igual ou superior qualidade àqueles usados na produção de medicamentos” e quando a fabricação de tais produtos for realizada “de acordo com todos os requisitos de BPF referentes a instalações, equipamentos, pessoal e materiais previstos nesse regulamento”, devendo ser “demonstrado por meio de avaliação técnica que a fabricação de tais produtos não representa risco de contaminação”.

A Gerência-Geral de Fiscalização (GGFIS) afirmou que “a interpretação da Lei nº 6.360/1976 manifestada pela Procuradoria está defasada em relação ao entendimento mundial sobre o assunto e em relação à tendência de combinação de produtos e linhas de produção observadas no cenário mundial”[6].

Um segundo ponto diz respeito à delimitação do que se deve considerar por “existência de instalações separadas”. Em uma lógica de proporcionalidade e de necessidade de compatibilização das exigências regulatórias com os efetivos riscos associados à atividade, seria razoável exigir uma segregação física absoluta entre linhas de produção ou áreas de armazenamento? Novas tecnologias que garantam a segurança da produção não poderiam ser utilizadas para ultrapassar essa limitação?

Um exemplo trazido pela GGIMP pode tornar mais concreta a discussão: “(…) um suplemento de vitamina C que contenha 150% da Ingestão Diária Recomendada (IDR) disposta pela Resolução RDC nº 269/2005 seria registrado como medicamento e poderia ser produzido em uma Indústria Farmacêutica licenciada e autorizada para a produção de medicamentos. Entretanto, se o fabricante pretende fabricar um produto semelhante alterando apenas a quantidade da vitamina C, de 150% para 100% da IDR, a classificação na ANVISA seria alterada para alimento, e segundo o entendimento atual, deveriam ser necessárias áreas distintas para a produção dos produtos contendo vitamina C 150% e 100%. Tal situação não oferece risco sanitário e não se justificada tecnicamente”[7].

Dentro desse cenário, fica claro que há espaço para interpretação e regulamentação das limitações impostas pela Lei Federal nº 6.360, na longínqua década de 1970. A ausência de delimitação desses pontos no cenário federal traz margem para a adoção de interpretações diversas no âmbito de cada órgão do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), em detrimento da segurança jurídica.

É essencial que tais limitações sejam interpretadas à luz da evolução da tecnologia e de forma proporcional aos efetivos riscos sanitários gerados pelas atividades econômicas. Essa é uma medida necessária para diminuir as barreiras à entrada do setor, pelo menos enquanto não for alterada a regra legal em questão.


[1] Com a edição da RDC nº. 33/2015, da IN nº. 2/2015 e da RDC nº. 301/2019, todas já revogadas.

[2] Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/regulamentacao/agenda-regulatoria/agenda-2021-2023/arquivos/despacho_arquivamento_ndeg-9-de-23-de-fevereiro-de-2024.pdf/view

[3] https://antigo.anvisa.gov.br/consultas-publicas#/visualizar/25229

[4] Disponível em: https://antigo.anvisa.gov.br/documents/33880/2553929/Justificativa%2BAltera%25C3%25A7%25C3%25A3o%2Bdo%2B252%2B%252822-07%2529.pdf/e4dd6089-3acf-4057-b057-217eac0563a1

[5] Disponível em: https://antigo.anvisa.gov.br/documents/33880/2553929/Justificativa%2BAltera%25C3%25A7%25C3%25A3o%2Bdo%2B252%2B%252822-07%2529.pdf/e4dd6089-3acf-4057-b057-217eac0563a1

[6] Disponível em https://antigo.anvisa.gov.br/documents/33880/2553929/CP%2B26-2013%2B-%2BNota%2BT%25C3%25A9cnica.pdf/9bc18ceb-7f98-4775-92ea-60b31e289772

[7] Disponível em https://antigo.anvisa.gov.br/documents/33880/2553929/Justificativa%2BAltera%25C3%25A7%25C3%25A3o%2Bdo%2B252%2B%252822-07%2529.pdf/e4dd6089-3acf-4057-b057-217eac0563a1

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