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“É preferível que a lei governe e não qualquer um dos indivíduos”. É o que dizia Aristóteles, na Política, no que veio a se tornar uma formulação clássica para o ideal de rule of law.
O Estado de Direito, na tradução mais frequente, já se tornou quase um clichê em aulas de introdução ao estudo de Direito e, de algum modo, no próprio debate público. De conceito utilizado por professores na explicação da teoria política moderna a artifício retórico utilizado para criticar ou elogiar governos, passando por inúmeras menções em livros acadêmicos e decisões de tribunais superiores, o rule of law, tão reivindicado, nem sempre é bem explicado.
O que efetivamente significa dizer que o governo deve ser “das leis”, em contraposição ao governo “dos homens”?
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Essa pergunta adquire contornos teóricos ainda mais complexos quando levamos em consideração o seguinte ponto, talvez até um tanto paradoxal: embora o Estado de Direito seja hoje, talvez unanimemente, um dos principais critérios de legitimidade política no mundo hoje, não há um acordo geral acerca daquilo que ele significa. Na literatura, há quem sugira até se tratar de um conceito essencialmente contestável — conceitos sobre os quais há desacordos substantivos genuínos e razoáveis sobre sua melhor interpretação.
De todo modo, mesmo no caso de conceitos (essencial ou minimamente) contestáveis, há algum acordo pré-interpretativo mínimo que permite que os participantes do jogo de linguagem em questão estejam falando sobre a mesma coisa.
Em linhas muito gerais, tal como mais tradicionalmente recebido na literatura, o rule of law envolve as exigências de que:
- pessoas em posições de autoridade exerçam seus poderes de acordo com os termos de uma estrutura de normas públicas, não a partir de suas próprias preferências pessoais; de que
- haja regras gerais, públicas, dispostas com clareza e fixadas de antemão, cuja permitindo que os cidadãos — enquanto destinatários dessas regras — saibam aquilo que se exige deles e as consequências de suas ações; e de que
- haja tribunais que funcionem como um fórum imparcial de resolução de disputas.
Vemos assim que o Estado de Direito envolve uma série de princípios formais e procedimentais no que diz respeito ao modo e sistema de governança em uma comunidade. Em sua noção mais incipiente, isto é. Como é o caso de todo conceito disputável, várias são as perguntas que essa noção mais abstrata deixa em aberto — e é aí que surgem as diferentes concepções, que reivindicam a melhor interpretação acerca desse conceito mais geral.
Assim, há articulações que reivindicam, sob o ideal do rule of law, a presença de valores também substantivos, para além dos princípios de forma e procedimento. Há autores que defendem que, para além de elementos formais, é impossível classificar como próprio do Estado de Direito um sistema de governança que não respeita direitos humanos básicos internacionalmente consolidados, por exemplo.
Ao mesmo tempo, há quem defenda que o Estado de Direito é apenas uma da várias virtudes possíveis que um sistema jurídico pode apresentar: uma virtude que não se confunde com democracia, justiça, igualdade, direitos humanos, dignidade, enfim, de modo que um sistema de governança que não respeita nenhum desses outros valores e princípios poderia ser um sistema jurídico, ainda que iníquo, em conformidade com o rule of law.
Embora a discussão seja certamente interessante do ponto de vista teorético, acadêmico, penso que buscar o melhor significado de rule of law em termos de elementos formais ou substantivos significa perder de vista o melhor ponto de partida. A melhor pergunta não é o que é o império da lei, ou quais são seus elementos, mas por que o rule of law?
Nesse sentido, penso que a mais acertada lição até aqui é a de Gerald Postema, que identifica o cerne, o âmago do império do Direito na promessa de proteção e recurso contra o potencial exercício arbitrário do poder por meio das ferramentas próprias do Direito.
É certo, também essa definição deixa algumas perguntas em aberto. O que conta como poder arbitrário? Por que o Direito? Por que isso importa, afinal?
Postema não deixa nenhuma dessas questões fundamentais sem resposta, e é por essa razão que sua concepção de rule of law classifica-se como uma concepção verdadeiramente filosófica. É por isso também que, quando passei a discutir a proposta de Postema, passei a falar em império do Direito: penso que sob essa concepção, mais do que uma sob uma noção tradicional de Estado de Direito — que envolve leis gerais, públicas e prospectivas, etc., ou, na tradição continental, direitos públicos subjetivos sacralizados na lei positiva —, capturamos o espírito filosófico subjacente à ideia de um sistema de governança genuinamente jurídico; capturamos, enfim, a ideia de viver em comum sob as leis como uma forma de vida.
O poder arbitrário, afinal, é o poder unilateral: o poder exercido de forma indiferente. Indiferente a regras, a razões razoáveis, aos interesses daqueles que lhe são sujeitos, à ideia mesma de responsabilização.
Daí por que o Direito, por meio de suas ferramentas próprias, é o veículo ideal para a realização dessa promessa de proteção e recurso contra o poder exercido de maneira arbitrária. O Direito, corretamente compreendido, é mais do que mero produto desse poder exercido sem controle: é, antes, uma prática social que constitui e controla esse exercício mesmo.
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Como vem defendendo José Reinaldo de Lima Lopes, se o sentido do Direito consistisse na obediência a uma autoridade arbitrária, num sistema puro de poder verticalizado, daí não resultaria uma prática social propriamente.
Ora, se é verdade que, conceitualmente, o Direito tem algumas diferenças em relação à moralidade, também é verdade que o Direito não é simplesmente um sistema bruto de coerção. O Direito, como disciplina, é uma empreitada discursiva e deliberativa de raciocínio prático — que, tendo como uma de suas funções a orientação e a coordenação da conduta humana por meio de regras, tem necessariamente, como seus destinatários, agentes racionais, autônomos, moralmente responsáveis.
Isso permite algumas conclusões conceituais, cuja relevância prática não é pequena ou trivial. O Direito — sendo um fenômeno que, por natureza própria, reivindica autoridade em face de seus destinatários — já carrega, intrinsecamente, uma obrigação de ao menos pretender oferecer aos cidadãos uma justificação; uma justificação capaz de, ao menos potencialmente, conferir-lhe legitimidade. Se o Direito reivindica autoridade legítima, as razões que oferece devem ser razões que os cidadãos são capazes de reconhecer como suas.
Se o Direito é um modo distintivo de governança, um sistema jurídico significa mais do que a implementação eficaz de um sistema centralizado de comando e controle. O poder não pode ser sua própria justificação: governar por meio do Direito é um compromisso, que introduz um elemento de reciprocidade entre governantes e governados.
A reflexão sobre o rule of law, assim, ajuda também a elaborarmos uma concepção mais rigorosa do próprio Direito, na medida em que percebemos que aquilo que dá sentido à prática é mais do que a eficácia de normas positivadas.
Parafraseando Jeremy Waldron, não é que abandonemos a força exatamente, mas embarcamos na “paradoxal empreitada da coerção respeitosa”. O Direito pode fracassar em fazer aquilo que promete fazer — mas é o tipo de coisa que promete fazê-lo.