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No dia 27 de outubro de 2021, três anos atrás, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal que apurou os crimes cometidos por agentes públicos e privados durante a pandemia de Covid-19 entregou à Procuradoria Geral da República (PGR) o seu relatório final, com evidências robustas de vários crimes cometidos durante a pandemia e o indiciamento de mais de 60 pessoas físicas e jurídicas, entre elas o então Presidente da República e ministros de Estado.
É bom lembrar também que, na medida em que os absurdos, abusos e equívocos políticos iam ocorrendo na esfera federal, e as mortes iam se contando aos milhares por dia, foram protocoladas junto à PGR e ao STF várias petições criminais, apresentadas por parlamentares, partidos políticos e entidades sociais, apontando a necessidade de investigar, processar e punir crimes contra a saúde pública, entre eles a suposta disseminação intencional da doença por autoridades federais.
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No entanto, passados três anos da entrega do relatório final da CPI da Covid, o que o Brasil testemunha é uma total omissão dos órgãos de controle federais, PGR à frente, para responsabilizar aqueles que conduziram no país uma política catastrófica, que contrariava as recomendações mais básicas de controle da disseminação do coronavírus e, ainda, incentivava as pessoas a minimizarem os riscos e a adotarem condutas contrárias à proteção da própria vida ou da vida de seus familiares. Isso sem contar o retardamento da compra e disponibilização das vacinas, que causou uma quantidade significativa de mortes evitáveis no país.
Não é por acaso que o Brasil figura entre os países que pior se saiu durante a pandemia. Foram mais de 35 milhões de infectados e mais de 700 mil mortes por Covid-19. Esses números traduzem a vontade e a ação política dos governantes de plantão à época, já que muitas dessas infecções e mortes poderiam ter sido evitadas se o Brasil tivesse adotado uma política de controle alinhada com as evidências científicas e com as diretrizes emanadas da Organização Mundial de Saúde (OMS) desde o início da pandemia.
Vale lembrar que se esperava do Brasil uma das melhores respostas do mundo à pandemia, em razão da existência do Sistema Único de Saúde (SUS), referência internacional em políticas públicas exitosas de controle de epidemias, orientadas por evidências científicas, entre elas o programa nacional de imunizações. No entanto, há consenso entre especialistas internacionais na constatação de que a resposta brasileira foi catastrófica, com a morte evitável de centenas de milhares de pessoas, por meio da condução de uma política deliberadamente contrária às melhores evidências científicas, às vacinas, ao uso de máscaras, ao distanciamento social, dentre outros equívocos propositais.
Diante da omissão da PGR em dar andamento apropriado ao relatório da CPI e às petições criminais abertas, e visando obter deste importante órgão de controle federal uma ação adequada que dê uma resposta satisfatória à sociedade brasileira com relação aos potenciais crimes cometidos na pandemia, os Conselhos Nacionais de Saúde e de Direitos Humanos (CNS e CNDH) protocolaram uma representação ao Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, para que o MPF reabra as investigações sobre os eventuais crimes cometidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seus subordinados durante a pandemia da covid-19. Espera-se que, a partir dos novos elementos levados ao procurador-geral com a representação e da apuração a ser aprofundada, a PGR reúna os elementos necessários para denunciar os responsáveis pelos eventuais crimes cometidos.
A representação protocolada inova pela autoria, já que foi apresentada por órgãos do Estado brasileiro que representam de forma legítima e diversificada a sociedade civil organizada, com longa e reconhecida trajetória na defesa do Estado de Direito e da democracia. Tanto o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) quanto o Conselho Nacional de Saúde (CNS) reúnem em seus colegiados representantes de parcela significativa da sociedade brasileira, revelando que a sociedade não está satisfeita com a atuação do MPF na apuração e responsabilização dos então agentes públicos em exercício. A representação inova também pela perspectiva da saúde pública, ao trazer conhecimentos técnicos indispensáveis da área, graças aos subsídios fornecidos pelo Centro de Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Universidade de São Paulo.
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A representação apresentada pelo CNDH e pelo CNS destaca expressivos indícios de que o governo federal da época disseminou propositalmente a covid-19 por meio da falsa tese da “imunidade de rebanho por contágio” e do também falso “tratamento precoce” para a doença. Tais opções técnico-políticas tiveram como consequência incentivar grande parte da população brasileira a não observar as medidas de saúde pública determinadas pelas autoridades sanitárias dos estados e municípios brasileiros. O uso de máscaras chegou a se tornar uma posição “ideológica” do cidadão, e não um simples ato de proteção básica da vida. O mesmo ocorreu com a vacinação, cujo desencorajamento patrocinado pelo então Presidente da República levou o Brasil às piores taxas de imunização das últimas décadas, não só para a covid-19 mas também para várias outras doenças como sarampo por exemplo.
Ao minimizar a gravidade do coronavírus (“gripezinha”), alardear a falsa ideia de que havia tratamento eficaz para a covid-19 (“tratamento precoce”, cloroquina, ivermectina, p.e.), promover encontros e aglomerações públicas sem usos de máscaras (motociatas), atrasar e desestimular a vacinação (falta de resposta às propostas de pfizer, “pressa para que?”; “vai virar jacaré” etc.), dentre outras barbaridades, as autoridades federais conseguiram a proeza de minar nacionalmente os esforços que estavam sendo feitos pelos estados e municípios para conter a pandemia, gerando confusão e desarticulação da política pública de enfrentamento da covid-19.
Esta estratégia de encorajamento à infecção massiva da população, visando a “imunidade de rebanho por contágio”, estratégia absurda com consequências evidentes de alta mortalidade, persistiu mesmo diante do número de mortos, das evidências de reinfecção pela doença e da comprovação científica da ineficácia do tratamento precoce para a doença. Persistiu, ainda, diante da resistência de setores da sociedade e do Estado que denunciaram incansavelmente estas condutas. A representação apresentada pelo CNDH e CNS demonstra com profundidade a possível motivação eleitoral e econômica da estratégia federal, com documentos e fatos públicos e notórios da época.
Constam dessa retrospectiva macabra apresentada à PGR a difusão sistemática de desinformação, a incitação constante à desobediência de normas sanitárias, a organização de aglomerações massivas em momentos de pico da pandemia e o descumprimento de deveres legais fundamentais da União para o controle da doença. Essas são algumas das numerosas condutas que foram naturalizadas durante a pandemia como se fossem parte legítima do jogo político, demonstrando um potencial uso irresponsável da pandemia e do Programa Nacional de Imunização para fins político-eleitorais.
Ao final, os Conselhos que representam parte expressiva da sociedade civil fazem um importante alerta: a demora na apuração destas condutas pelo MPF e sua responsabilização pelo Judiciário traz o risco de prescrição dos crimes praticados, com a consequente impunidade definitiva dos supostos criminosos. As consequências disto para a saúde púbica nacional e para a legitimidade das futuras ações de vigilância em saúde no Brasil são aterrorizantes. Mais, como será que o Brasil irá enfrentar futuras pandemias se o recado de nossas mais altas autoridades for o de que não é necessário seguir as evidências científicas e nem as determinações das autoridades sanitárias?
Por meio da Representação, os conselhos honram a memória das centenas de milhares de vítimas da covid-19, inclusive trabalhadores da saúde e de atividades essenciais; e defendem os direitos de seus familiares, assim como dos milhões de brasileiros que continuam sofrendo os efeitos persistentes da doença.
Não precisamos esperar o futuro para enxergar o perverso legado que a impunidade dos crimes da pandemia da covid-19 pode nos deixar. A desinformação massiva sobre saúde segue sendo praticada cotidianamente, inclusive com motivação eleitoral e ideológica. Caso prevaleça a impunidade, as autoridades sanitárias serão cada vez mais desacreditadas, e a população brasileira estará cada vez mais desprotegida diante das crises sanitárias nacionais e internacionais.
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A sociedade brasileira não pode deixar os crimes da pandemia prescreverem sem as devidas apurações e responsabilizações. Muitas vidas se perderam em vão. Em respeito a essas vidas não temos o direito, como sociedade, de fingir que nada aconteceu e de fazer de conta que as ações e omissões das pessoas que então ocupavam os cargos mais altos do governo federal foram realizadas nos limites da discricionariedade administrativa. Não foram, e há provas robustas a evidenciar isso.
O mínimo que se espera, em respeito aos mortos, é um devido processo legal justo, onde todos os argumentos trazidos pelo Relatório Final de CPI e pela atual representação do CNS e do CNDH sejam considerados e tratados com seriedade e racionalidade, à luz das evidências científicas e da proteção devida ao direito à saúde no Brasil. Espera-se que os indiciamentos da CPI, reforçados pela representação de agora, tenham as devidas consequências jurídicas constitucional e legalmente previstas. Sem anistia e sem prescrição para os crimes da pandemia!