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Felizmente, a aprovação do PLC 29/2017 no Senado é iminente. A sociedade, como um todo, sairá ganhando com essa lei especial, amadurecida por mais de 20 anos no Congresso Nacional, onde houve intenso debate com especialistas brasileiros e estrangeiros, inúmeras audiências públicas, centenas de emendas discutidas. Até os que ficaram distraídos nas duas décadas de tramitação tiveram a oportunidade, agora na chegada, de serem ouvidos pelo governo, que fez questão de contemplar todos os setores interessados, sem descurar dos principais destinatários – os segurados, beneficiários, seguradoras e resseguradoras comprometidas com nosso país.
Com a aprovação da Lei de Contrato de Seguro, o país sairá do constrangimento de um regramento faccioso, incompleto, assistemático e nocivo previsto nos dispositivos sobre o contrato de seguro da comissão encarregada da revisão do Código Civil. Se há problemas em diversos dispositivos, entre os tantos elaborados naquela comissão, os relativos ao seguro são os mais infelizes. Evidentemente, pretendeu-se passar a perna no PLC 29/2017.
Para ilustrar os problemas do novo regime proposto, fiquemos apenas no primeiro artigo do capítulo do Código Civil sobre o contrato seguro.
O atual art. 757 inaugura a disciplina do contrato com uma boa definição:
Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada.
Essa é uma das poucas disposições que, em 2002, foram um avanço face à disciplina do Código Civil de 1916.[1] Além de elencar todos os elementos essenciais do contrato de seguro, o dispositivo toma posição em vários aspectos controversos: (i) existe apenas um contrato de seguro, não seguros de pessoa e seguros de dano (teoria unitária do seguro), (ii) o que o seguro protege não é a integridade da “coisa” ou da pessoa, mas a relação de utilidade ou afeição entre o segurado ou beneficiário e esse objeto (teoria do interesse), (iii) o que a seguradora presta não é uma indenização eventual, mas uma garantia sustentada pela operação de seguro (teoria da assunção do risco ou, da garantia), (iv) os riscos assegurados são predeterminados, ou seja, preestabelecidos no instrumento contratual – a qual deve ser interpretado de forma mais favorável ao segurado, por resultar da necessária adesão a um modelo predeterminado, não negociado – e (v) o seguro é uma atividade necessariamente empresarial, desenvolvida por um agente econômico especializado.
A proposta de mudança no artigo é a seguinte:
Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
1º Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim, legalmente autorizada;
2º Todas as entidades organizadas para proteção de riscos de danos ou de pessoas deverão ser autorizadas previamente pelo órgão regulador e atenderão às exigências técnicas, administrativas, jurídicas e financeiras aplicáveis ao segurador.[2]
A redação atual do art. 757, embora boa, pode ser melhorada. A comissão poderia, por exemplo, ter corrigido o uso atécnico de “coisa” no caput. O seguro não garante exclusivamente o interesse sobre coisas (e.g., a propriedade). Protege, também, o interesse sobre bens imateriais (e.g., a propriedade industrial, o crédito, o estabelecimento). Se esse não fosse o caso, seguros de crédito, seguros-garantia e seguros de lucro cessantes seriam proibidos. Logo, o seguro garante o interesse do segurado em relação a bens (objetos de direito) ou pessoas (sujeitos de direito).
Ao invés de aprimorar a redação, os revisores pioraram o artigo em dois pontos.
Primeiro, pularam direto para o seu parágrafo único para inserir um erro de português (a vírgula entre “fim” e “legalmente autorizada”), perdendo a oportunidade de, por exemplo, inserir um dispositivo análogo ao art. 16, 2, da lei portuguesa de seguros (RJCS), evitando o desamparo do segurado em caso de nulidade.[3]
Mais grave, a comissão incluiu um novo parágrafo sobre quem pode ser segurador. Essa invasão em prol de interesses, que se revela em diversos dispositivos espalhados no enorme âmbito de intervenção escolhido pela Comissão Revisora, ajuda a mostrar que os corretores da normatividade propõem parágrafo inconstitucional e tematicamente distante do Código Civil.
A regulação da atividade seguradora é feita pelo Decreto-Lei 73/1966, recebido com lei complementar na Constituição de 1988 por força do seu art. 192 – o que o Supremo Tribunal Federal já afirmou ao menos duas vezes.[4] A repartição das competências é clara: cabe à lei ordinária a disciplina das relações privadas, como os contratos, reservando o art. 192 à lei complementar as regras sobre a organização e funcionamento das entidades seguradoras, bem como as competências dos órgãos que integram o Sistema Nacional de Seguros Privados. Em suma, o direito econômico do seguro é assunto de lei complementar.
Nessa linha, o dispositivo que regula quem pode ser segurador está no art. 24 do Decreto-Lei 73/1966, que permanece inalterado pela sugestão da comissão:
Art. 24. Poderão operar em seguros privados apenas Sociedades Anônimas ou Cooperativas, devidamente autorizadas.
Essas “entidades organizadas para proteção de riscos de danos (sic)” não mencionadas no art. 24 seriam as associações de proteção e das cooperativas, entidades atualmente à margem do sistema jurídico e carentes de qualquer fiscalização.[5] O intuito é reconhecer a existência dessas entidades, mas dificultar seu ingresso no sistema de seguro, forçando a serem “seguradoras” (ou seja, sujeitarem-se ao regime das sociedades anônimas e cooperativas autorizadas do Decreto-Lei): “atenderão às exigências técnicas, administrativas, jurídicas e financeiras aplicáveis ao segurador.”
Além de inconstitucional, a solução é juridicamente anômala: como aplicar a uma associação, que não guarda a menor proximidade aos tipos societários que baseiam o regime atual das seguradoras, as regras do Decreto-Lei sem acomodação? E como ficam as associações de proteção que se organizam, na prática, como mútuas, tipo carente de disciplina depois da revogação do Código Civil de 1916 e do Decreto-Lei 2.063/1940?
É importante ter clara a finalidade do atual parágrafo único do art. 757. O dispositivo não pretende disciplinar quem pode ser segurador, assunto da lei de controle da atividade, mas simplesmente sancionar com a nulidade, por falta de legitimidade (art. 104, I; art. 166, VII, Código Civil), qualquer contrato de seguro que tiver como parte seguradora entidade constituída em desconformidade ao Decreto-Lei 73/1966 e sua regulamentação administrativa ou não autorizada a operar no ramo.
Nesse equívoco o PLC 29/2017 não incorre. O projeto de lei simplesmente reproduz a regra da ilegitimidade do atual parágrafo único do art. 757 no art. 2º,[6] deixando à lei complementar de controle da atividade – como prevê o art. 192 da Constituição – quem deve ser considerado entidade devidamente autorizada a celebrar seguro.
O art. 757 do Código Civil não é exceção. Quase todos os dispositivos do capítulo de seguro do Código (arts. 757-802) são modificados ou para introduzir alterações de redação de qualidade duvidosa (e.g., os arts. 758, 763, 765), ou positivar regras de preocupante vagueza (e.g., o art. 757-A, que cria o conceito de “seguros de grandes riscos” sem estabelecer nenhum critério legal para identificá-los).
Há, também, propostas que partem de uma grave incompreensão do sistema atual (e.g. o art. 771-B, que simplesmente repete o atual art. 762 de forma mais clara sem suprimi-lo, e o art. 766, §2º, que cria um regime mais engessado e favorável ao segurado para o segurado de grandes riscos do que para o segurado-consumidor) ou alterações radicais sem qualquer justificativa (e.g, o art. 771, o qual estabelece um prazo fixo máximo para avisar o sinistro, ou a supressão do art. 786, §2º, que estabelece a ineficácia em favor da seguradora sub-rogada de qualquer ato do segurado que afete o direito ao ressarcimento).
Sintomático o silêncio absoluto da comissão de revisão sobre a Lei de Contrato de Seguro que tramita há mais de duas décadas (2004 a 2024). Considerando o trabalho apresentado, oxalá seja aprovado o PLC 29/2017, como há anos recomendou o senador Rodrigo Pacheco:[7]
A partir da análise realizada, observamos que o PLC 29, de 2017, é um projeto muito bem elaborado, que passou por um longo processo de maturação legislativa, e que foi aprimorado por meio de um amplo debate que envolveu especialistas, representantes do mercado securitário e de integrantes do Governo. Colhemos a impressão de que se trata de uma proposta de inovação legislativa capaz de modernizar e reequilibrar as relações securitárias, de preencher as diversas lacunas atualmente existentes na legislação, merecendo ser, portanto, aprovado sem emendas, dada a sua alta relevância.
O PLC 29/2017 venceu todas as dificuldades depois de cuidadosa elaboração legislativa. O time que está ganhando não se ignora e nele não se mexe.
[1] Basta comparar com a relativa pobreza do art. 1.432 do Código Civil de 1916: Art. 1.432. Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se obriga para com outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizar-lhe o prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato.
[2] Indicamos as modificações em negrito.
[3] Artigo 16.º Autorização legal do segurador 1 – O segurador deve estar legalmente autorizado a exercer a actividade seguradora em Portugal, no âmbito do ramo em que actua, nos termos do regime jurídico de acesso e exercício da actividade seguradora. 2 – Sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, a violação do disposto no número anterior gera nulidade do contrato, mas não exime aquele que aceitou cobrir o risco de outrem do cumprimento das obrigações que para ele decorreriam do contrato ou da lei caso o negócio fosse válido, salvo havendo má fé da contraparte.
[4] Primeiro, ao julgar a constitucionalidade de uma lei ordinária que pretendia quebrar o monopólio estatal do resseguro Em um dos casos, a emenda é especialmente ilustrativa “2. A regulamentação do sistema financeiro nacional, no que concerne à autorização e funcionamento dos estabelecimentos se seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão fiscalizador, é matéria reservada à lei complementar” (ADIn n. 2.223-MC, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 10.10.2002) Mais recentemente, ao suspender cautelarmente a medida provisória que acabava com o DPVAT (ADIn n. 6262-MC, rel. Min. Edson Fachin, j. em 20.12.2019).
[5] A disciplina delas está em discussão nos PLP nº 519/2018 e 101/2023, que modificam justamente o Decreto-Lei nº 73/1966 na restrição a quem pode ser seguradora.
[6] Art. 2º Só podem pactuar contratos de seguro entidades que se encontrem devidamente autorizadas na forma da lei.
[7] Parecer favorável na CCJ, 19.04.2017