Os desafios do financiamento da militância em campanhas eleitorais com recursos públicos

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O financiamento de campanhas eleitorais é um tema central nas democracias modernas. Este artigo explora as implicações constitucionais e políticas do uso de dinheiro público para financiar atividades de militância política em campanhas eleitorais, analisando os desafios e preocupações que surgem nesse contexto.

Muitos de nós desconhecem que hoje no processo eleitoral brasileiro, mesmo nos processos intrapartidários[1], pessoas são contratadas para agitar bandeiras e pedir votos nas ruas ou aplaudir os candidatos nos seus eventos de rua. São homens e mulheres com bandeiras, bonés, adesivos e panfletos que pedem voto apenas por simples pretensão financeira[2], sem qualquer comprometimento político ou compromisso ideológico.

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A verdadeira militância política, em regra, é caracterizada pelo engajamento voluntário e a motivação genuína dos indivíduos para promover mudanças sociais e políticas[3]. É impulsionada por crenças pessoais, valores éticos e o desejo de contribuir para o bem comum, muitas vezes envolvendo sacrifícios pessoais sem expectativa de recompensa financeira[4].

Consoante procuraremos demonstrar, o financiamento de militância com dinheiro público nas campanhas eleitorais representa um desafio complexo que requer atenção cuidadosa tanto do ponto de vista constitucional quanto político. Para proteger a integridade do processo eleitoral, é crucial implementar salvaguardas que garantam a equidade, a transparência e a confiança pública.

Breve histórico da militância paga

Desde 2012 o fenômeno vem ganhando destaque. Muitos não exercem a atividade por ideologia política, simpatia partidária ou porque são militantes ou filiados de determinada agremiação, mas porque o trabalho temporário é uma forma de aumentar a renda de casa[5], visto que chegam a receber até um salário-mínimo por mês durante as eleições[6].

Em 2014, a chamada militância paga esteve entre os itens que mais custaram dinheiro nas eleições. Foram ao menos R$ 152 milhões gastos na contratação de cabos eleitorais, que serviram também para aparecer em imagens gravadas para os programas do horário eleitoral na TV[7].

Em 2018, segundo artigo publicado na Folha de São Paulo, o campeão de contratações, Ratinho Jr. (PSD) – então postulante ao cargo de Governador do Estado do Paraná – usou cerca de R$ 1 milhão para bancar 1.028 apoiadores[8]. No Distrito Federal, a então candidata Eliana Pedrosa (Pros), gastou mais que o Governador eleito (Ibaneis Rocha) — com um somatório de R$ 337 mil por 615 contratos de apoiadores. Segundo esse mesmo levantamento, cabos eleitorais receberam R$ 197 milhões de dinheiro público. Em média, R$ 923 por pessoa. Mas um grupo de 107 pessoas teve ganhos muito superiores: de R$ 20 mil a R$ 79,8 mil, por apenas 52 dias de campanha[9].

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Em 2020 a pandemia naturalmente fez essa realidade retroceder. Com a proibição total de atividades nas ruas (e carreatas com horário agendado), governos estaduais, prefeituras e a Justiça Eleitoral adotaram medidas devido ao aumento de casos de coronavírus durante a campanha da eleição municipal[10].

A campanha de 2022 foi, mais do que nunca, uma disputa por eleitores nas ruas. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que os candidatos gastaram naquele ano R$ 748 milhões com “atividades de militância e mobilização de rua”. O valor superou em cerca de 89% o registrado em 2018, já com a correção da inflação[11].

Em 2024, segundo indicado pela Folha de São Paulo, o candidato Guilherme Boulos (PSOL) gastou R$ 6 milhões para sua militância de rua na capital paulista, de acordo com a prestação de contas da campanha no TSE. O significativo valor despendido com esse tema fala por si só[12].

Regulamentação normativa da militância paga no Brasil

No Brasil a legislação eleitoral permite o pagamento de pessoal de campanha, mas exige transparência e prestação de contas detalhada sobre como os recursos são utilizados. A Lei nº 9.504/1997 estabelece em seu art. 100-A[13], incluído pela Lei nº 12.891, de 2013, regras para fixar limites quantitativos para a contratação direta ou terceirizada de pessoal para a prestação de serviços referentes a atividades de militância e mobilização de rua nas campanhas eleitorais.

Para a aferição dos limites, são consideradas e somadas as contratações realizadas pelo candidato titular ao cargo eletivo e as que eventualmente tenham sido realizadas pelos respectivos candidatos a vice e a suplente[14]. Em relação aos partidos políticos, o limite de contratação de pessoal estará limitado à soma dos quantitativos dos limites dos cargos eletivos em que o partido tenha candidato concorrendo à eleição[15].

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De acordo com A Lei nº 9.504/1997, art. 100-A, § 6º, são excluídos dos limites fixados de contratação de pessoal, a militância não remunerada, pessoal contratado para apoio administrativo e operacional, fiscais e delegados credenciados para trabalhar nas eleições e os advogados dos candidatos ou dos partidos e coligações.

O descumprimento dos limites com militância paga previstos na Lei sujeita o candidato às penas previstas no art. 299 da Lei n° 4.737, de 15 de julho de 1965[16], mas, consoante o § 9º Resolução TSE nº 23.607, de 2019[17], não impede a apuração de eventual abuso de poder pela Justiça Eleitoral, por meio das vias próprias.

Breve notas à Luz da Ciência Política, da Sociologia e da Filosofia

Na ciência política, o pagamento de militantes deve ser analisado em termos de seu impacto na democracia e no processo eleitoral. De um lado, a militância paga pode ser vista como uma forma de profissionalizar campanhas e aumentar a eficiência da mobilização eleitoral. Por outro lado, pode levantar preocupações sobre a autenticidade do apoio popular e o potencial para distorcer a representação política.

Do ponto de vista sociológico, a prática de pagar militantes pode ser vista como uma mercantilização do ativismo político, onde a participação política é tratada como uma transação econômica. Isso pode afetar as dinâmicas de poder dentro dos movimentos sociais e partidos políticos, potencialmente marginalizando a participação voluntária e baseada em convicções.

Filosoficamente, a militância política paga levanta questões sobre a natureza do engajamento cívico e a autenticidade da ação política. A prática há de ser criticada por transformar um ato que deveria ser baseado em compromisso cívico em uma atividade motivada por incentivos financeiros. Isso toca em debates sobre a ética da participação política e o valor intrínseco do ativismo.

Pagar com dinheiro público por militância no processo eleitoral é problemático por várias razões. Em primeiro lugar, quando indivíduos são pagos para apoiar uma causa ou candidato, isso pode levantar dúvidas sobre a autenticidade dos apoiamentos eleitorais. Demais disso, pagamentos podem ser usados para manipular a opinião pública, criando uma falsa impressão de apoio popular massivo. Isso pode distorcer seriamente o processo democrático e influenciar decisões eleitorais de forma injusta e artificial.

No caso brasileiro, reformas são necessárias para mitigar os riscos associados ao pagamento de militância com recursos públicos, principalmente quando estamos falando de pagamentos por contratos padrão, sem justificativa plausível de valores elevados para serviços simples em curto espaço de tempo[18]. Precisamos de normas legais ou regulamentares que incluam maior transparência, auditorias independentes, limites mais estritos ao uso de fundos públicos e mecanismos robustos de fiscalização.

Conclusões

A militância política tem uma longa história e suas origens revelam a busca por mudanças significativas nas sociedades[19]. Muitos exemplos ilustram como a militância política genuína pode ter impactos profundos e duradouros na sociedade, promovendo justiça social e mudanças significativas. A militância, em princípio, deveria ser movida por convicções pessoais e comprometimento genuíno, e não por incentivos financeiros.

Uma regulamentação mais transparente da militância política paga com dinheiro público para atividades de rua é essencial para garantir a integridade do processo eleitoral brasileiro. Embora a prática possa aumentar a eficiência e alcance das campanhas, ela também levanta preocupações significativas sobre a autenticidade do engajamento cívico e a equidade na representação política.

Para equilibrar esses fatores, é crucial desenvolver estruturas legais que exijam transparência no financiamento e nas atividades de campanha, ao mesmo tempo em que promovam uma cultura de participação política genuína e voluntária. Dessa forma, é possível mitigar os riscos de mercantilização do ativismo político e preservar a essência da democracia participativa.


[1] Disponível em https://m.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1743083-apoiador-de-doria-diz-que-tucano-paga-a-militancia.shtml; Acesso em 4 de novembro de 2024.

[2] Disponível em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/politica/amp/militante-pago-ve-na-campanha-renda-extra-1.600864; Acesso em 4 de novembro de 2024.

[3] Disponível em https://www.politize.com.br/militancia-politica-o-que-e/; Acesso em 4 de novembro de 2024.

[4] Diponível em https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/dicas/quais-as-diferencas-entre-os-termos-militancia-e-ativismo; Acesso em 4 de novembro de 2024.

[5] Disponível em https://oglobo.globo.com/google/amp/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/09/30/de-bandeirinhas-a-entrega-de-panfletos-campanha-eleitoral-e-oportunidade-de-renda-extra-para-cabos-eleitorais.ghtml; Acesso em 4 de novembro de 2024.

[6] Disponível em https://www3.al.ce.gov.br/index.php/oradores-expedientes/item/8288-militante-pago-vê-na-campanha-renda-extra; Acesso em 31 de outubro de 2024.

[7] O PMDB foi quem mais gastou com a contratação de militantes (R$ 41,9 milhões), seguido por PSDB (R$ 26 milhões) e PT (R$ 20,6 milhões). O custo total da militância paga pode ser ainda maior, já que as siglas podem ter declarado gastos desse tipo em outras categorias predefinidas pelo TSE, como despesas com pessoal ou serviços de terceiros. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2014/12/01/interna_politica,595167/despesa-com-militancia-paga-neste-ano-foi-de-r-152-mi.shtml; Acesso em 31 de outubro de 2024.

[8] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/candidatos-gastaram-r-100-milhoes-com-militancia-paga.shtml; Acesso em 31 de outubro de 2024.

[9] Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47478371; Acesso em 31 de outubro de 2024.

[10] Ao menos 36 cidades, em 11 estados, impuseram algum tipo de restrição a atividades de campanha, a maior parte por iniciativa da Justiça. Disponível em https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/noticia/2020/10/29/de-proibicao-de-campanha-nas-ruas-a-carreata-com-hora-marcada-covid-19-impoe-restricoes-em-eleicoes-no-pais.ghtml; Acesso em 31 de outubro de 2024.

[11] Disponível em https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/eleicao-em-numeros/noticia/2022/11/22/gasto-com-campanha-de-rua-quase-dobra-nas-eleicoes-2022-digital-dispara-entre-presidenciaveis.ghtml; Acesso em 31 de outubro de 2024.

[12] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/10/boulos-desembolsa-r-62-milhoes-para-ter-militancia-nas-ruas.shtml; Acesso em 31 de outubro de 2024.

[13] Lei nº 9.504/1997. Art. 100-A. A contratação direta ou terceirizada de pessoal para prestação de serviços referentes a atividades de militância e mobilização de rua nas campanhas eleitorais observará os seguintes limites, impostos a cada candidato: I – em Municípios com até 30.000 (trinta mil) eleitores, não excederá a 1% (um por cento) do eleitorado; II – nos demais Municípios e no Distrito Federal, corresponderá ao número máximo apurado no inciso I, acrescido de 1 (uma) contratação para cada 1.000 (mil) eleitores que exceder o número de 30.000 (trinta mil). § 1° As contratações observarão ainda os seguintes limites nas candidaturas aos cargos a: I – Presidente da República e Senador: em cada Estado, o número estabelecido para o Município com o maior número de eleitores; II – Governador de Estado e do Distrito Federal: no Estado, o dobro do limite estabelecido para o Município com o maior número de eleitores, e, no Distrito Federal, o dobro do número alcançado no inciso II do caput; III – Deputado Federal: na circunscrição, 70% (setenta por cento) do limite estabelecido para o Município com o maior número de eleitores, e, no Distrito Federal, esse mesmo percentual aplicado sobre o limite calculado na forma do inciso II do caput, considerado o eleitorado da maior região administrativa; IV – Deputado Estadual ou Distrital: na circunscrição, 50% (cinquenta por cento) do limite estabelecido para Deputados Federais; V – Prefeito: nos limites previstos nos incisos I e II do caput; VI – Vereador: 50% (cinquenta por cento) dos limites previstos nos incisos I e II do caput, até o máximo de 80% (oitenta por cento) do limite estabelecido para Deputados Estaduais. § 2° Nos cálculos previstos nos incisos I e II do caput e no § 1o, a fração será desprezada, se inferior a 0,5 (meio), e igualada a 1 (um), se igual ou superior. § 3° A contratação de pessoal por candidatos a Vice-Presidente, Vice-Governador, Suplente de Senador e Vice-Prefeito é, para todos os efeitos, contabilizada como contratação pelo titular, e a contratação por partidos fica vinculada aos limites impostos aos seus candidatos. § 4° Na prestação de contas a que estão sujeitos na forma desta Lei, os candidatos são obrigados a discriminar nominalmente as pessoas contratadas, com indicação de seus respectivos números de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). (Revogado pela Lei nº 13.165, de 2015) § 5° O descumprimento dos limites previstos nesta Lei sujeitará o candidato às penas previstas no art. 299 da Lei n° 4.737, de 15 de julho de 1965. § 6° São excluídos dos limites fixados por esta Lei a militância não remunerada, pessoal contratado para apoio administrativo e operacional, fiscais e delegados credenciados para trabalhar nas eleições e os advogados dos candidatos ou dos partidos e coligações.

[14] Resolução TSE nº 23.607, de 2019, art. 41, § 5º

[15]  Resolução TSE nº 23.607, de 2019, art. 41, § 6º

[16] Código Eleitoral. Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita: Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.

[17] Resolução TSE nº 23.607, de 2019, art. 41, § 9º

[18] Segundo a BBC, os gastos com cabos eleitorais cresceram 84% entre 2014 e 2018, já descontada a inflação. É o maior aumento entre todos os tipos de despesa eleitoral. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47478371.amp; Acesso em 4 de novembro de 2024.

[19] Podemos destacar, para ilustrar, o Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, onde, nos anos 1950 e 1960, militantes trabalharam para acabar com a segregação racial e garantir direitos civis iguais para todos os cidadãos, independentemente de sua raça; O movimento pelo Sufrágio Feminino, onde militantes lutaram durante o final do século XIX e início do século XX para garantir o direito de voto às mulheres em muitos países, incluindo o Reino Unido e os Estados Unidos; e o Movimento Trabalhista, quando militantes se organizaram para melhorar as condições de trabalho, garantir direitos laborais e estabelecer sindicatos, principalmente durante a Revolução Industrial.

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