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Nos últimos anos, o conceito de processos estruturais tem emergido como uma ferramenta indispensável para enfrentar violações de direitos humanos de natureza sistêmica e complexa. Diferente dos litígios tradicionais, que se restringem à resolução de conflitos pontuais entre partes, os processos estruturais envolvem uma reconfiguração das práticas judiciais, demandando ações coordenadas entre o Judiciário, órgãos governamentais e a sociedade civil.
O conceito de litígio estrutural aqui tomado são aqueles casos que envolvem problemas policêntricos (na expressão inicial de Fuller[1]), que se opõem ao formato bilateral clássico, ou seja, verificam-se questões complexas que afetam várias partes da sociedade e exigem a participação de múltiplos atores e instituições, para sua aferição, tratamento e solução, não bastando mera sentença judicial.
Esses litígios, ao envolverem tantas dimensões, exigem uma reconfiguração da maneira como entendemos a função jurisdicional. Eles não apenas desafiam os tribunais a irem além de uma decisão pontual, mas também implicam um processo contínuo de acompanhamento, colaboração e intervenção que conduzem à formação de uma lide em que o papel do Poder Judiciário também ora enfatiza funções administrativas, ora de mediação, envolvendo mecanismos de equidade. Dessa forma, a função declaratória da jurisdição não será a única desempenhada, mas apenas mais uma em meio a várias[2].
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Todavia, isso não significa que a magistratura abandonará seu papel para assumir uma atuação eminentemente política. Em verdade, o que se busca, por meio da constituição de um litígio estrutural é o atendimento de interesses constitucionais (como por exemplo a defesa dos direitos humanos que é mandato constitucional de todos os poderes instituídos) por meio da intervenção judicial de maneira a se constituir uma lide capaz de lidar com um problema de natureza policêntrica.
Aqui convém destacar a conexão dos litígios estruturais com problemas sistêmicos (estruturais) socialmente enraizados, que versam sobre a realização dos direitos humanos, notadamente, os de natureza econômica, social, cultural e ambiental.
Mais do que uma forma, o que caracteriza um litígio estrutural é seu caráter transformador. É justamente neste campo ativo de defesa dos direitos humanos que as rotas dos litígios estruturais e dos litígios estratégicos de direitos humanos podem se encontrar.
Litígio estrutural e litígio estratégico: intersecções
Embora o litígio estratégico e o estrutural não sejam a mesma coisa, eles frequentemente se cruzam, principalmente em contextos de defesa dos direitos humanos. Ambos exigem dos tribunais uma visão ampliada e mais ativa do seu papel na sociedade.
O litígio estratégico é comumente utilizado por organizações da sociedade civil e movimentos sociais para forçar mudanças institucionais, como no caso de direitos das mulheres, igualdade racial e proteção ambiental. Na América Latina e no Sul Global, como o Poder Judiciário passou a ser visto como capaz de transformação por grupos sociais que anteriormente o encaravam como um fator de dominação social, o litígio estratégico passou a fazer parte desse cenário.
O elemento “estratégico” advém do fato de que, mesmo que a demanda não seja totalmente acolhida, os planos e o preparo para o litígio normalmente virão acompanhados de campanhas de conscientização, empoderamento de grupos vulneráveis, denúncias de violações de direitos, entre outras ferramentas que se espraiam por diversas outras arenas e pressionam o Poder Público.
Dessa maneira, o litígio estratégico, ao mirar em efeitos futuros e em uma pretensão regulatória de determinado problema, compartilha certas características com o litígio estrutural, a saber: a complexidade intrínseca das graves violações de direitos humanos; o caráter transformador que se busca; a deliberação e a participação social; o papel do Judiciário como mediador de conflitos estruturais e sua importância para a proteção de grupos vulneráveis.
Não são sinônimos, mas podem ser coincidentes nos casos superação de desigualdades estruturais com impacto, inclusive, sobre problemas do próprio acesso à justiça. Isto porque, em relação à grupos vulneráveis, os litígios estruturais possuem o condão de agir como mecanismo de “paridade de armas”; ao atuarem como um caminho para apresentarem suas demandas e afirmarem seus valores perante a sociedade[3], oferecendo a esses grupos uma oportunidade de obter justiça por meio da representação coletiva e da litigância estratégica.
Nesse sentido, a legitimidade do litígio estrutural se verifica justamente na medida e na qualidade dos debates públicos suscitados anteriormente. Afinal, em um processo em que se discutem direitos pertencentes a toda coletividade, para se verificar efeitos como o amplo contraditório, tornam-se necessárias técnicas de representação que deem conta dessa amplitude, a exemplo de amici curiae e audiências públicas.
Na defesa dos direitos humanos, litígio estrutural e estratégico podem se somar e a Corte Interamericana de Direitos Humanos é um exemplo claro de como esses dois tipos de litígios podem convergir.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos como promotora de transformação
Impulsionada pela litigância estratégica movimentada pela sociedade civil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tem sido um palco relevante para litígios estruturais. Seus casos envolvem violações sistêmicas de direitos humanos que requerem intervenções que vão além da simples punição dos responsáveis. Ao buscar a reparação integral, a Corte tem a capacidade de impor aos Estados medidas que visam corrigir estruturas inteiras, como políticas públicas falhas ou omissões estatais em áreas críticas.
Cada decisão emitida pela Corte tem o potencial de gerar efeitos que se estendem amplamente por um sistema complexo de relações entre Estados e outros atores regionais, como uma teia. Quando a Corte IDH profere uma decisão sobre um caso específico, essa decisão não afeta apenas as partes diretamente envolvidas, mas também pode influenciar futuras interpretações de termos, normas e precedentes em diferentes jurisdições.
Isso se deve ao caráter descentralizado do Direito Internacional[4], em que a jurisprudência e os precedentes desempenham um papel crucial na consolidação e desenvolvimento das normas jurídicas. Cada decisão tece novos fios na rede global de relações jurídicas, conectando diversos Estados e atores que utilizam esses precedentes para moldar suas próprias políticas e decisões judiciais, em um ciclo constante de valoração e interpretação normativa. Assim, as decisões não são eventos isolados; elas reverberam em outras instâncias e têm um impacto mais abrangente, afetando não só o direito aplicável naquele caso específico, mas todo o sistema jurídico internacional.
Por tais razões, é possível apontar que a litigância internacional está intimamente ligada ao litígio estrutural, bem como, observando-se a partir da ótica estrutural, afirmam-se como catalisadoras de diálogos entre jurisdições. No caso dos processos estruturais, estes ganham novas camadas ao serem monitorados por órgãos internacionais, cujos standards podem auxiliar na construção do consenso necessário: o Direito Internacional dos direitos humanos é dotado de diversos mecanismos políticos de monitoramento e um arcabouço normativo único, que pode ser empregado por juízes nacionais de modo a auxiliar na implementação de litígios estruturais.
Ademais, o Direito Internacional se vê abrangido por maior legitimidade ao se comportar como fórum para vítimas, ONGs e membros da sociedade civil, consolidando novos modelos de litigância estratégica[5] em esforços de coordenação com o direito doméstico.
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Com isso, não se quer dizer que não existam obstáculos no relacionamento entre cortes internas e internacionais. Debates quanto à extensão da margem de apreciação, ou à postura doméstica de resistência às “intromissões” do Direito Internacional são densos, contudo, o relacionamento entre ambas ainda se trata de um campo fértil, que pode servir para reforçar processos democráticos e solucionar déficits de legitimidade.
O diálogo entre a Corte Interamericana e o STF
Aponta-se aqui, como exemplo para essa reflexão, o relacionamento entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A interação entre essas jurisdições é essencial para garantir a efetiva proteção dos direitos humanos, sobretudo em processos estruturais.
É possível vislumbrar um efeito amplificador: ao adotar decisões que dialogam com a jurisprudência internacional, o STF fortalece a legitimidade de suas decisões e garante que o Brasil continue em consonância com os padrões internacionais de direitos humanos. De seu lado, a Corte IDH ao valer-se de ferramentas como o princípio pro persona, o controle de convencionalidade aplicado pelo Judiciário doméstico, além da manifestação de blocos de constitucionalidade presentes em vários Estados na região, aptos a recepcionarem tratados de direitos humanos com valor constitucional, constrói sua presença e cumpre sua função perante o regime internacional de direitos humanos, abrindo oportunidade para um diálogo de coordenação, aproximando-se do judiciário nacional.
Através do aprofundamento do processo dialógico entre STF e Corte IDH, tendo por base os standards protetivos de direitos humanos, avança-se na eliminação de barreiras estruturais de discriminação e efetivação de direitos, sobretudo, em relação aos grupos mais vulneráveis.
O caso das pessoas privadas de liberdade no Brasil é exemplificativo deste diálogo catalisador e revolve em torno de algumas demandas, dentre elas, destaca-se a ADPF 347[6] que reconhece a falência institucional do sistema prisional brasileiro e demanda a elaboração de planos pela União, estados e municípios, em conjunto com o CNJ, e pela elaboração de planos que atendam à superlotação dos presídios, ao passo que regulem a situação de presos provisórios e da criação de varas de execução penal direcionadas. Esta ação dialoga direta e indiretamente com as discussões da Corte IDH nos casos liminares referentes ao presídio Urso Branco[7], Pedrinhas[8], e no Complexo Curado[9].
Também merece destaque o diálogo entre o caso Favela Nova Brasília com a ADPF 635[10]. No caso Favela Nova Brasília v. Brasil[11], a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por falhas na investigação e punição de policiais envolvidos na morte de 26 pessoas, além de casos de tortura e violência sexual ocorridos nas operações policiais.
Essa decisão vai além da reparação individual das vítimas, exigindo reformas estruturais nas práticas de segurança pública para combater a impunidade e garantir investigações adequadas para vítimas da letalidade policial. Ao dialogar com as reparações determinadas pela Corte, a ADPF 635 vai além propondo um modelo de monitoramento contínuo, exigindo que todas as incursões policiais fossem justificadas e supervisionadas por órgãos independentes.
Tais exemplos demonstram o potencial impulsionador do litígio estrutural no âmbito internacional. A Corte Interamericana tem se mostrado um ator crucial na promoção de reformas institucionais em diversos países da América Latina. Suas decisões, além de resolverem conflitos específicos, geram diálogos que possibilitam mudanças impactando toda a estrutura de proteção de direitos humanos de um país. Esse efeito transformador é amplificado quando as cortes nacionais, como o STF, dialogam com essas decisões e as incorporam em sua jurisprudência.
Não se ignora que litígios estruturais são caracterizados por dificuldades, principalmente, no momento do cumprimento das decisões, o que também é visto no cenário internacional. Contudo, a virtude de processos estruturais de direitos humanos está tanto em se empoderar diversos grupos que, ao mesmo tempo, passam a adotar a implementação de mudanças estruturais contida nas ordens das cortes nacionais e internacionais como parte de suas agendas, diversificando a pressão diante dos agentes estatais pela sua reforma.
Isso ocorre em um cenário de comunicação e moderação por parte do Judiciário, que pode, além de aproximar a sociedade civil, trazer a expertise de profissionais da área e promover coordenação entre órgãos públicos do próprio Estado, outrora desconexos, na busca de soluções adequadas e criativas[12].
Para esse cenário, vale a máxima: soluções e remédios estruturais serão tão legítimos quanto forem amplos e transparentes os debates conduzidos em seu interior[13]. São justamente as trocas dialógicas procedimentais e o ambiente de monitoramento e informação que constituem o principal trunfo deste somatório de forças da jurisdição interna-internacional em casos de violações de direitos humanos com características do litígio estrutural.
Por um lado, tribunais internos passam a contar com mecanismos de monitoramento internacional, capazes de fornecerem expertise na apresentação de planos de ação estrutural elaborados, além de poderem fornecer respaldo, enquanto autoridade pública internacional, a pretensões e à própria independência judicial. De outro lado, tribunais internacionais sanam suas deficiências quanto à legitimidade e à executoriedade de suas decisões. Por fim, a sociedade civil passa a acessar novas arenas para engajarem na defesa de direitos humanos.
Em conclusão, o litígio estrutural não é apenas uma ferramenta jurídica, mas, quando associado ao litígio estratégico em direitos humanos, um poderoso instrumento de transformação social por meio da combinação de deliberação democrática, participação social e cooperação internacional. Ele nos desafia a ir além das respostas tradicionais e por isso, pode encarar as violações sistêmicas de direitos humanos, exigindo mudanças profundas e duradouras.
[1] CHAYES, Abram. The Role of the Judge in Public Law Litigation. Harvard Law Review, [S.L.], v. 89, n. 7, p. 1281, maio 1976.
[2] Cabe a observação de que funções administrativas e correlatas também fazem parte da atividade judicial cotidiana, não descaracterizando o caráter de intervenção judicial. PUGA, Mariela. La legitimidad de las intervenciones judiciales estructurales. In: CINCA, Carlos Diego Martínez; SCIVOLETTO, Gonzalo. Estado de derecho y legitimidad democrática. Buenos Aires: Editores del Sur, 2020. p. 103-129.
[3] Nota-se que o primeiro caso de litigância estrutural nos Estados Unidos, Brown v. Board of Education of Topeka, foi abordado por Fiss que, ao tecer o conceito de medidas estruturais, reforçou a ideia de que faz parte do Poder Judiciário a atuação de dar significado a valores públicos. FISS, Owen M.. The Forms of Justice. Harvard Law Review, [S.L.], v. 93, n. 1, p. 1-58, nov. 1979.
[4] O caráter descentralizado se refere à ausência de uma única estrutura soberana no ambiente internacional. Dessa maneira, Corte e outros órgãos constroem normatividade através de uma rede de trabalhos que pode se reforçar, ou, a partir de outros interesses, entrar em dissonância. KOSKENIEMMI, Martii. From Apology to Utopia: The Structure of International legal Argument. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
[5] BOGDANDY, Armin Von; VENZKE, Ingo. In Whose Name? A Public Law Theory of International Adjudication. Nova Iorque: Oxford University Press, 2014.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Data do Julgamento: 04/10/2023. Data da Comunicação: 04/10/2023. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560>. Acesso em 20 Out 2024.
[7] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso da Penitenciária Urso Branco. Medidas Provisórias a Respeito da República Federativa do Brasil. Resolução de 2 de Julho de 2004. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_04_portugues.pdf >. Acesso em 20 Out 2024.
[8] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso do Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Medidas Provisórias a Respeito da República Federativa do Brasil. Resolução de 14 de Outubro de 2019.. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_03_por.pdf>. Acesso em 20 Out 2024.
[9] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso do Complexo Penitenciário de Curado. Medidas Provisórias a Respeito da República Federativa do Brasil. Resolução de 28 de Novembro de 2018.. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/curado_se_06_por.pdf>. Acesso em 20 Out 2024.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 DF. Relator: Min. Edson Fachin. Julgamento agendado: 13/11/2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502>. Acesso em 20 Out 2024.
[11] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Favela Nova Brasília v. Brasil. Sentença de 16 de Fevereiro de 2017 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf>. Acesso em 12 Nov 2024.
[12] RODRÍGUEZ-GARAVITO, César. Beyond the Courtroom: The Impact of Judicial Activism on Socioeconomic Rights in Latin America. p. 1669-1698, jun. 2011.
[13] ARENHART, Sérgio Cruz. Processos estruturais no direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, v. 29, n. 1, p. 70-79, fev. 2017. Disponível em: <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/109152?mode=full>. Acesso em: 20 fev. 2024.